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Arrecadação cessante e indenização a ente federativo por dano ambiental

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

5 de julho de 2023, 10h30

Acidentes ambientais, seja qual for a gravidade, devem receber ampla atenção por parte das autoridades e, com máxima celeridade, eficiência e suficiência, impor ao agente causador imediato dever de reparação e de indenização a todos os afetados pelas suas consequências. Porém, após a aplicação dos regimes de ajustamento de condutas ou quaisquer outros instrumentos, multas e indenizações, aqueles eventos não podem servir de justificativa para renovadas reparações ou compensações indiscriminadas para qualquer ente público que se sinta lesado pelo que deixou de alegar ao tempo do emprego das medidas previstas na legislação.

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A questão que se coloca é saber quantas vezes um ente público pode alegar cobranças de indenizações para além daquelas fixadas nos instrumentos previstos em lei para atender aos deveres de reparação. Ou seja, se a responsabilização pode ser infinita até que satisfaça todo o ímpeto de reparação do ente público, qualquer que seja o motivo, até chegar ao esgotamento da capacidade econômica das pessoas envolvidas.

A reparação integral do meio ambiente não engloba recuperação até mesmo de não consumada arrecadação fiscal por transferências de receitas não recebidas e alegadas a posteriori dos termos de responsabilidade firmados. Não é essa a exegese do princípio de proteção ambiental entabulado no artigo 225 do texto constitucional. Os conceitos de "arrecadação cessante" ou de "receitas transferidas não recebidas" não são albergados pelo princípio de reparação integral do meio ambiente degradado.

A responsabilidade pela reparação dos danos causados pelo desastre ambiental deve ser tratada de acordo com os limites e as obrigações acordados à luz da responsabilidade aquiliana. Qualquer tentativa de impor novas obrigações com base nesse evento evidencia-se contrária aos princípios legais e ao equilíbrio necessário entre a segurança jurídica das partes envolvidas e a confiabilidade das instituições. Afinal, o objetivo principal das indenizações é reparar os danos sofridos, não perpetuar compensações financeiras indefinidamente, até o ponto de inviabilizar economicamente a atividade empresarial.

De acordo com o Código Civil brasileiro, a reparação por danos deve buscar restabelecer a situação anterior ao evento danoso ou, quando isso não for possível, compensar a vítima de maneira justa e proporcional. É por isso que o Código Civil define no artigo 944 que a indenização se mede pela extensão do dano, prevendo hipótese expressa de limitação de indenização no parágrafo único, segundo o qual se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização.

Se o próprio legislador previu hipótese de limitação à reparação por danos, é correto afirmar que o princípio da reparação integral, muitas vezes aplicado no âmbito de danos ambientais, reclama uma hermenêutica coerente com sua função. Não por acaso, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou sobre o tema, para confirmar que a previsão do artigo 944 minimiza a indenização a ser paga pelo causador do dano, mitigando, em alguma medida, o princípio da integral reparação, que decerto não é absoluto.

Isso se torna relevante, sobretudo quando falamos de atividades consideradas como de risco. O risco faz parte da vida em sociedade e é inerente a atividades imprescindíveis para a economia de um país, como a mineração que, a despeito de ser uma atividade lícita em sua essência, pode acarretar danos ambientais e civis passíveis de serem objeto de responsabilização, sempre nos limites da previsão jurídica e segundo os parâmetros de proporcionalidade, sob pena de se inviabilizar a atividade econômica e o próprio desenvolvimento social.

De fato, ocorrido o evento danoso, por mais triste e penoso que seja, este será submetido às consequências previstas pelo sistema jurídico, conforme os diferentes bens jurídicos afetados (meio ambiente, patrimônio, vida). O dano deve ser reconhecido, mensurado, reparado e indenizado. Mas, sempre, segundo e nos limites da lei; nunca além ou fora dela. O Direito Ambiental não é um direito de vingança social. Não é um direito do inimigo. É, sim, um direito de preservação, de conformidade e, quando ocorrido algum dano, de reparação especial.

Como dito, no contexto das atividades de alto risco, acidentes ambientais, embora não desejáveis, podem acontecer. Não por outra razão, são mais fiscalizadas pelos órgãos regulatórios e oneradas com a imposição de medidas preventivas e reparatórias mais elevadas.

Para melhor compreensão destes limites, tomemos em análise recentes ações judiciais propostas por municípios os quais, ante a ocorrência de acidentes ambientais nos respectivos territórios, pleiteiam indenização às empresas relacionadas ao evento, por uma alegada arrecadação cessante que se teria verificado por conta da paralisação de algumas atividades econômicas.

Portanto, para além de todas as indenizações já consumadas, bem como dos termos de ajustamento de conduta firmados, os municípios postulam reparação por suposta perda de receitas vinculadas a tributos cujos fatos geradores "deixaram de ocorrer" por conta da Interrupção de certas atividades econômicas interrompidas por conta do acidente ambiental.

Sustentam, os municípios, que suportaram perdas de arrecadação fiscal por conta de alegadas receitas tributárias que não teriam sido arrecadadas, em razão da paralisação de certas atividades econômicas, como hidrelétricas e outros.

Receita pública implica ingresso financeiro que integra o patrimônio do ente federado, com disponibilidade e em caráter definitivo. E as receitas que os municípios alegam ter "perdido" sequer correspondem a fatos geradores realizados.

A pretensão, porém, além de expandir indevidamente o âmbito de responsabilidade do contribuinte, com violação à proporcionalidade e segurança jurídica e reivindicação de indenizações desproporcionais e infinitas, confunde os conceitos de tributo com o de indenização, em afronta ao conceito constitucional de tributo, assim como ao próprio artigo 3º do CTN, o qual prescreve que o tributo não pode ser sanção a ato ilícito.

Os valores alegadamente "perdidos" pelos municípios sequer constituem fato gerador tributário do ICMS (Estado) ou mesmo fatispecie de royalties do artigo 20, § 1º, da CF (União), para autorizar algum repasse adicional ao município. Ou seja, não há "receita pública" perdida a ser reparada. Essas receitas nunca se materializaram ou pertenceram aos municípios, já que não consumado o fato gerador.

Ora, em nossa ordem jurídica, descabe falar em qualquer tipo de direito adquirido sobre expectativa de arrecadação, mormente das receitas estimadas, a partir de fatos geradores projetados, mas não realizados. Não há que se falar em perda de arrecadação fiscal (ou arrecadação cessante), porque não houve fato gerador tributário praticado para autorizar a cobrança do tributo e o repasse da parcela de direito aos estados.

A interrupção de uma atividade econômica não tem o condão de repercutir culpa ou dolo que autorize indenização pela arrecadação que não se realizou por parte de outro ente tributante. E mesmo que a exigência de reparação privada e proporcional ao que alega como "perdas" tenha origem no ato ilícito, diante da assunção das obrigações reparatórias pela parte, descabe falar em qualquer intuito de bis in idem para autorizar tal adicional de indenização para o poder público.

Não é possível afirmar, por presunção, que um acidente ambiental resulte em diminuição da carga tributária estimada para o período, já que, embora certas atividades econômicas possam vir a ser, temporariamente, interrompidas, outras são acionadas para reparação dos danos ocorridos. Assim, enquanto certos tipos de fatos geradores de tributos deixam de ser praticados, outros tipos de receitas são carreadas aos cofres públicos do ente afetado, como indenização ou reparação pelos danos.

Destarte, ainda que aquela receita seja, de fato, menor do que a esperada, desvela-se incorreto falar em perda de arrecadação tributária no período como ilícito passível de reparação, dada a ausência de materialização concreta do fato gerador. A título de receitas transferidas, o beneficiário tem apenas mera expectativa de receita por parte do ente federado. Assim, nos termos dos artigos 186 e 927 do Código Civil, descabida qualquer pretensão do ente federado ao recebimento de indenização.

Não ocorre, todavia, perda de arrecadação tributária, uma vez que o ente federado jamais gozou de direito sobre receitas incertas e futuras. Não há como se perder aquilo que não se tem. Por isso, quanto ao recebimento de receita transferida, enquanto os fatos geradores não forem realizados, não haverá nascimento da obrigação e do crédito tributários do ente titular da competência que autorize seu surgimento. Logo, a receita tributária estimada para o período permanece como mera expectativa de arrecadação pelo ente federado.

A figura de "arrecadação cessante" é estranha ao sistema jurídico brasileiro. Deveras, não há nada de ilícito ou antijurídico que justifique reparação ao ente governamental por "quebra" da expectativa de receitas transferidas. Por isso, quando uma atividade econômica seja paralisada, por qualquer motivo, toda estimativa de arrecadação deve se adequar à nova realidade, sem que haja qualquer ilegalidade ou lesão ao erário público.

Do mesmo modo como o Estado de Direito atua para certificar que o dano seja reparado pelo agente causador, não pode ele deixar de assegurar a proteção deste contra eventuais excessos ou mesmo o arbítrio da administração pública, a exemplo de pretender obter reparação por suposta arrecadação cessante. Sob o Estado Democrático de Direito não há espaço para indenizações e sanções abusivas, pelo princípio de proibição de excesso, haurido do princípio da proporcionalidade, que impõe a observância a limites, previsíveis e seguros.

Em conclusão, a tentativa do poder público, por meio de seus entes federados, de reivindicar valores a título de arrecadação cessante como reparação a dano ambiental, pela redução ou "perda" de receitas transferidas, em virtude da cessação de atividade econômica da qual se originam fatos geradores de tributos de alheia competência ou de compensações financeiras (ICMS ou royalties), desvela-se contrária aos institutos da responsabilidade civil e do dever de indenizar por dano ambiental previsto no artigo 225 da Constituição. Afinal, o objetivo principal das indenizações ao meio ambiente é reparar os danos sofridos, não perpetuar infinitas cobranças, ao arrepio da segurança jurídica e da certeza jurídica decorrentes dos instrumentos firmados de boa fé e de plena conformidade com a legalidade para pôr fim aos litígios existentes.

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