Território Aduaneiro

Consultas fiscais dos importadores e as soluções antecipadas na aduana

Autor

  • Fernando Pieri Leonardo

    é sócio fundador da HLL & Pieri Advogados mestre em Direito pela UFMG pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa professor de Direito Aduaneiro e Tributário Membro da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG multiplicador do Programa OEA da Receita Federal membro de nº 51 da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.

4 de julho de 2023, 8h00

Um dos pilares do Estado Democrático de Direito é a segurança jurídica e a certeza que as previsões normativas devem promover, permitindo que seus destinatários as conheçam previamente e avaliem as consequências de suas condutas. "O homem necessita de segurança jurídica para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida", na lição de JJ. Gomes Canotilho [1]. O princípio maior do Estado de Direito (artigo 1º) e os princípios da legalidade (artigos 5º, II e 150, I), da irretroatividade (artigo 150, III, "a") e da anterioridade (artigo 150, III, "b") são fundamentos constitucionais responsáveis pela construção do princípio da segurança jurídica [2]. Esse determina que as normas jurídicas sejam conhecidas previamente aos fatos aos quais irão se aplicar, que não se apliquem aos já ocorridos e que seu conteúdo permita um cálculo prévio das consequências da sua aplicação, assegurando previsibilidade. Em torno desse desenho constitucional — de segurança jurídica e previsibilidade, assim como de proteção da confiança — é que devem ser encontrar todas as disposições normativas. No caso, vamos tratar mais amiúde das questões relativas às consultas prévias que podem ser formuladas pelos contribuintes ao Fisco, especificamente, in casu, ao federal. Aqui, no Território Aduaneiro, com foco nas consultas dos importadores à Aduana; essa a temática da nossa coluna de hoje.

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O que temos em vigor? Temos duas modalidades de consultas que podem ser manejadas pelos importadores: sobre a classificação tarifária de mercadorias (IN RFB 2.057/2021) e sobre interpretação da legislação tributária e aduaneira e sobre classificação de serviços, intangíveis e outras operações que produzam variações no patrimônio (IN RFB 2.058/2021). Em que consiste, na prática, a consulta? O importador tendo dúvidas sobre o correto alcance da norma a que está sujeito e desejando cumpri-la, submete uma pergunta à Aduana. Ele narra os fatos, descreve sua situação concreta, indica a sua interpretação do alcance da norma, questionando se seu entendimento está correto. Nesse sentido, "a consulta administrativa destina-se a propiciar ao contribuinte orientação segura a respeito da aplicação da legislação tributária a um caso concreto que envolva sua atividade, permitindo que ampare sua conduta em entendimento vinculante para os órgãos fazendários" [3].

Destaque-se, de logo, que o importador que submete consulta à Aduana revela boa-fé, digna do instituto da denúncia espontânea. Com a consulta, ele evidencia qual o seu entendimento e o procedimento que irá adotar, não obstante sua dúvida, revelando seu claro e inequívoco objetivo de cumprimento das normas. Caso contrário, se não tivesse intuito de conformidade, poderia, ante a dúvida, adotar postura diversa; ou seja, adotar aquele entendimento que lhe parecesse mais favorável sem levar a questão para análise e orientação do Fisco.

E quais são os efeitos do pedido de esclarecimento da dúvida? São condizentes com a boa-fé e a relação de confiança próprias desse instituto, ou seja, desde o protocolo da consulta até o trigésimo dia seguinte à data da ciência da solução de consulta pelo consulente, ele não estará sujeito a fiscalizações, tampouco a qualquer cobrança de valores por adotar esse, ou aquele, entendimento sobre a questão consultada [4]. Se, por hipótese, entender que é o caso de recolher determinado montante X, por adotar certa posição tarifária da Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM), e a dúvida for solucionada em sentido diverso, com necessidade de um recolhimento de tributos em valor superior, ou seja, do montante Y, após a ciência da solução da consulta terá até o trigésimo dia para efetuá-lo, sem acréscimos moratórios. Esse efeito da consulta, na hipótese da dúvida quanto à classificação tarifária, permite ao importador submeter a mercadoria a despacho aduaneiro de importação naquela que julgue acertada. Ainda que o auditor-fiscal da Receita Federal entenda que outra deva ser a NCM, se há consulta fiscal pendente de resposta, irá respeitar a classificação tarifária adotada pelo declarante e promover o desembaraço aduaneiro. Posteriormente, se sobrevier resposta que indique NCM distinta daquela declarada, caberá ao importador retificar sua declaração — DI/Duimp — recolhendo a diferença de valor dos tributos, sem multa e juros se o fizer até o trigésimo dia da ciência da solução de consulta. Se ultrapassado o trintídio, o importador que não se submeter à solução de consulta, promovendo o recolhimento espontâneo das eventuais diferenças tributárias, descumpre a norma e incorre em ilícito aduaneiro, na medida em que já conhece o alcance da norma jurídica a que está sujeito e se mantém à margem, descumprindo-a. Inobstante, se discorda da resposta que lhe foi dada, poderá ingressar com ação judicial própria, amparado no artigo 5º, XXXV, da CF/88.

Observe-se, aqui, por oportuno, a inexistência, na legislação pátria, do direito de recurso no procedimento [5] de consulta. É dizer, a dúvida é resolvida em instância única e definitiva no âmbito da administração, não havendo previsão para sua revisão por instância superior, nos termos do artigo 48, da Lei no 9.430/96. Mas não foi sempre assim, conforme nos lembram os artigos 48 e 54 do Decreto no 70.235/72. O diploma legal que dispõe sobre o processo administrativo fiscal e dá outras providências, recepcionado pela CF/88 com status de lei ordinária, ratione materiae, previa duas instâncias administrativas para a solução de consultas [6].

Há ainda, hodiernamente, possibilidade de se questionar a solução se for divergente em relação a outra já proferida relativa a mesma matéria, fundada em idêntica norma jurídica, através de um recurso especial sem efeito suspensivo, conforme previsto no artigo 48, §5º, da Lei no 9.430/96. Nesse sentido, seria de se indagar se a ausência de uma possibilidade de recurso estaria em sintonia com o ordenamento jurídico pátrio, considerando os textos do Acordo sobre a Facilitação Comercial — AFC/OMC e da Convenção de Quioto Revisada — CQR/OMA.

Antes de adentrar nessa seara, valem algumas observações, entre elas, reconhecer e exaltar os aprimoramentos pelos quais o procedimento de consulta vem passando ao longo dos anos. No passado, as soluções de consulta eram proferidas por regiões fiscais, o que provocava efeitos muito negativos. Por óbvio, se a solução de consulta proferida por determinada região fiscal favorecesse aos intervenientes, optariam por operar por ela, criando uma desigualdade injustificável. Essa realidade foi alterada em janeiro de 2013, através da Lei nº 12.788, que deu nova redação ao artigo 48, §1º, da Lei nº 9.430/96. Nada mais justo e necessário. Aqui, bom se diga, os efeitos da soluções de consulta são vinculantes para todos os servidores da Receita Federal do Brasil (artigo 33, I, da IN RFB nº 2.057/21). Outro avanço que merece aplausos, foi a criação, para as consultas de classificação tarifária, do Centro de Classificação de Mercadorias (Ceclam), "com a finalidade de solucionar as consultas sobre classificação fiscal de mercadorias" [7]. Um ponto essencial, que realmente merece aprimoramento: o tempo necessário para se obter a solução de consulta. Em regra, os prazos são longos, bem superiores ao dinamismo da realidade, podendo se ter que aguardar meses para se obter uma resposta. Essa demora é comprovada, inclusive pelo fato de que, entre os benefícios assegurados aos intervenientes que são Operadores Econômicos Autorizado (OEA), garante-se celeridade nas soluções de consulta tanto de classificação tarifária (40 dias, conforme o artigo 12, I, da IN RFB no 1.985/20), quanto de interpretação e aplicação da legislação tributária (Portaria RFB no 239/2022) [8].

Na prática, a instância única e a demora na solução acabam desestimulando a utilização do instituto, quando não o inviabilizam. E mais, quando é manejada a consulta, o importador — consulente, ad exemplum, se vê diante da seguinte situação: tendo a dúvida e a incerteza, tem que optar e decide adotar, em suas operações, aquela NCM que acredita correta. Se depende da mercadoria para o seu processo produtivo, importará de forma recorrente e empregará o insumo na sua atividade fabril, compondo seus custos a partir dos tributos que recolhe na posição tarifária definida, calculando, assim, sua margem de lucro e compondo seu preço. Se muito tempo depois recebe uma solução de consulta determinando outra classificação tarifária para o produto, que lhe impõe maior carga de tributos, terá um ônus maior a ser suportado em face do longo período de espera pela orientação administrativa.

Ademais, caso não se conforme com o entendimento oficial, o que poderá fazer será verificar se há outras soluções de consulta que sejam divergentes e manejar um recurso especial para uniformização do entendimento, ou, por derradeiro, recorrer-se do Poder Judiciário. Sabidamente, um processo de conhecimento, em rito ordinário, com produção de prova pericial, longo e tortuoso, sem suspensão automática do crédito tributário. É dizer, para enfrentar a divergência sobre o quantum devido, decorrente dessa, ou daquela NCM, vê-se obrigado a oferecer garantia em pecúnia, salvo se obtiver uma decisão judicial de tutela antecipada, nos termos do artigo 151, V, do Código Tributário Nacional (CTN).

Isso posto, voltemos nosso olhar para os tratados internacionais mencionados anteriormente. O que dizem sobre o tema o AFC/OMC e a CQR/OMA?

O AFC/OMC[9], em sua cláusula terceira, trata das nossas consultas fiscais sob o título de Soluções Antecipadas, estabelecendo em seu artigo 3º, no item 3.1: "Cada Membro emitirá, de modo razoável e em prazo pré-determinado, uma solução antecipada para o requerente que tenha apresentado um requerimento por escrito que contenha todas as informações necessárias.” Nos termos do artigo 3º, parágrafo 6º, letra "b" do AFC/OMC, os países membros devem publicar o prazo dentro do qual a solução antecipada será emitida, assim como prover, "mediante pedido por escrito do requerente, uma revisão da solução antecipada ou da decisão de revogar, modificar ou invalidar uma solução antecipada", conforme parágrafo 7º, do mesmo artigo 3º. É de se observar a nota ao dispositivo visando assegurar que a revisão seja garantida por parte do funcionário, repartição, ou da autoridade que emitiu a solução, por uma autoridade administrativa superior ou independente, ou por uma autoridade judicial. No caso brasileiro, existe a garantia de revisão por autoridade judicial, portanto não se pode dizer haja descumprimento do AFC.

A CQR/OMA [10], em seu capítulo dez, prevê o direito de recurso a ser assegurado pela Aduana aos intervenientes. Nesse sentido, dispõe no seu artigo 10.2: "qualquer pessoa que seja diretamente afetada por uma decisão ou omissão das Administrações Aduaneiras terá o direito de interpor recurso". Os artigos seguintes; 10.4 e 10.5, da CQR, determinam que as Aduanas devem assegurar o direito de duas instâncias, sendo a primeira perante as administrações aduaneiras, e a segunda para uma autoridade independente da administração aduaneira. Se a solução de consulta for compreendida como uma decisão da administração aduaneira que afeta o interveniente, em observância aos dispositivos citados da CQR, dever-se-ia lhe assegurar o direito ao recurso, tanto para uma primeira instância vinculada à Aduana, como a segunda instância independente.

Na União Europeia, o Código Aduaneiro da União (CAU), em seu artigo 33, conjugado com o artigo 44, asseguram a consulta fiscal e o direito ao recurso em face de suas decisões, seguindo os ditames da CQR [11]. No direito aduaneiro argentino, assegura-se a consulta fiscal e o direito de impugnação à decisão, conforme artigo 1.053, do seu Código Aduaneiro. Esse recurso deverá ser apresentado no prazo de dez dias, sem efeito suspensivo da solução de consulta [12]. Visando dar amplitude e maior eficácia ao instituto da consulta fiscal, recomendável seria termos a possibilidade de revisão da solução na esfera administrativa. Essa sistemática, além conferir maior legitimidade a decisão, garantiria maior segurança jurídica e previsibilidade aos intervenientes-consulentes, tendo o efeito, certamente, de reduzir a litigiosidade da matéria, seja na esfera administrativa, seja na judicial.

 


[1] "Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da proteção à confiança como elementos constitutivos do Estado de Direito." CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição Coimbra: Almedina, 4ª ed., 2000, p. 256.

[2] ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2ª ed., p. 303 .

[3]Recurso Especial no 670.601 – PR, Relator Min. Teori Albino Zavascki, 1ª T. do STJ, julgado por unanimidade. Disponível em: Link Acesso em 30/06/23. Desse julgado se extrai lição, citada pelo Relator de um outro acórdão da relatoria do min. Castro Meira: A consulta fiscal é decorrência do princípio da segurança jurídica, já que permite ao contribuinte conhecer, com antecedência, a interpretação oficial e autorizada sobre a incidência da norma tributária e, portanto, planejar a vida fiscal, prevenir conflitos e evitar a aplicação de penalidades.

[4] IN RFB no 2.057/2021: Art. 18. A consulta eficaz, formulada antes do prazo legal para recolhimento de tributo, impede a aplicação de multa de mora e de juros de mora relativamente à mercadoria objeto da consulta, a partir da data de sua protocolização até o 30º dia seguinte à data da ciência da solução de consulta pelo consulente. (…) Art. 21. Ressalvado o disposto no art. 19, nenhum procedimento fiscal será instaurado contra o sujeito passivo relativamente à mercadoria consultada, a partir da data de apresentação da consulta até o 30º dia subsequente à data da ciência da solução da consulta pelo consulente.

[5] Procedimento administrativo e não processo pela ausência do contraditório e da ampla defesa na consulta fiscal. Nesse sentido MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro (Administrativo e Judicial). São Paulo: Dialética, 4ª ed., 2005, p. 166-172.

[6] Disponível em: link. Acesso em 30/06/2023.

[7] CECLAM foi criado pela Portaria no 1.921/RFB, de 2017. Disponível em: link, acesso em 30/06/2023.

[8] Disponível em: link, acesso em 30/06/2023.

[9] Disponível em: link acesso em 30/06/2023. "…la autoridad deberá emitir la resolución anticipada dentro de um plazo razonable, (…), deberá prever uma revisión a las negativas o a las que modifique o revoque…(…). Esta es uma de las medidas que tiene enormes efectos de facilitición y que además otorga certeza jurídica a los importadores em sus relaciones com la Aduana…". PONCE, Andrés Rohde. La Facilitación del Comércio. México: Caaarem, 2021, p. 213.

[10] Disponível em: link acesso em 30/06/2023.

[11] RIJO, José. Direito Aduaneiro da União Europeia. Notas de enquadramento normativo, doutrinário e jurisprudencial. Coimbra: Almedina, 2020, p. 146-172.

[12] COTTER, Juan. Derecho Aduanero. Tomo II. Buenos Aires: AbeledoPerrot, 2014, 1ª ed., p. 959-975.

Autores

  • é sócio fundador da HLL & Pieri Advogados, mestre em Direito pela UFMG, pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa, professor de Direito Aduaneiro e Tributário, Membro da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB, presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG, multiplicador do Programa OEA da Receita Federal, membro de nº 51 da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.

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