Opinião

Fraude com criptoativos e crimes contra o sistema financeiro nacional

Autores

  • Octavio Orzari

    é sócio do escritório Machado de Almeida Castro & Orzari mestre e doutorando em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca.

  • Vinícius André de Sousa

    é advogado do escritório Machado de Almeida Castro & Orzari Advogados e pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pelo IDP.

3 de julho de 2023, 6h08

A Lei nº 14.478/2022 pretende regulamentar a prestação de serviços de ativos virtuais (criptoativos ou criptomoedas), definindo-os como representação virtual de valor que pode ser transferida eletronicamente para pagamentos ou investimentos [1]. Entre outras alterações, a lei acrescentou um novo crime ao Código Penal, no capítulo "do estelionato e outras fraudes". É o crime do artigo 171-A que tem o nomen iuris de "fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros".

Dada a complexidade e a velocidade inovadora do tema dos criptoativos, o professor Renato de Mello Jorge Silveira pertinentemente alerta para a "ilusão penal" que permeia a política criminal diante de novas e complexas situações vividas em sociedade [2]. Por sua vez, Roberta Simões Nascimento traz relevantes reflexões sobre a importância do "contexto que originou a lei" e do suporte empírico e argumentativo dado à norma no processo de sua elaboração [3].

No processo legislativo que originou a Lei nº 14.478/2022 verifica-se, sobretudo nas audiências públicas realizadas, preocupação com a ocorrência das chamadas "pirâmides financeiras", tendo sido suscitada, por exemplo, em emendas e projetos apensados, nova modalidade de crime contra a economia popular e até mesmo a criação de tipo penal de gestão fraudulenta de "exchange de criptoativos" [4].

De plano, percebe-se que o novo tipo penal do artigo 171-A do CP agrupa, na mesma modalidade de fraude, criptoativos, valores mobiliários e ativos financeiros, e equipara à instituição financeira pessoa jurídica de serviços de ativos virtuais (Lei nº 7.492/1986, artigo 1º, parágrafo único, inciso I-A, na redação da Lei nº 14.478/2022).

Até o advento da Lei nº 14.478/2022, era evidente que não se aplicavam os crimes contra o sistema financeiro nacional da Lei nº 7.492/1986 a fraudes com criptoativos, uma vez que não são moedas ou valores mobiliários (artigo 1º, caput, da Lei nº 7.492/1986). Tal entendimento somente poderia ser excepcionado nos casos de "contratos de investimento coletivo" cujo objeto de investimento era criptoativos "quando ofertados publicamente" (Lei nº 6.385/1976, artigo 2º, IX), o que poderia ser considerado valor mobiliário e atrair a regulação da Comissão de Valores Mobiliários.

Se dúvida havia em investigações ou decisões judiciais, as inovações da Lei nº 14.478/2022 comprovam a inaplicabilidade dos crimes contra o sistema financeiro a condutas pretéritas envolvendo criptoativos.

Para as condutas futuras, foi criado um tipo especial de fraude decorrente do clássico delito de estelionato com aumento de pena e, com isso, afastando a possibilidade de acordo de não persecução penal. Contudo, enquanto no estelionato pressupõe-se o resultado de obtenção da vantagem ilícita, na fraude com ativos virtuais bastaria a intenção — elemento volitivo de realização do plano do agente, segundo Roxin — de obtenção de vantagem ilícita, não estando explícito no texto normativo o resultado de obtenção da vantagem ilícita.

Apesar dessa construção típica, o crime do artigo 171-A tem como bem jurídico preponderante o patrimônio e, por isso, foi alocado no título do Código Penal dos crimes contra o patrimônio. Assim, para ser aplicado, é indispensável a lesão ao patrimônio, pois não se pode antecipar a punição de meros atos preparatórios presumindo-se a intenção delituosa, sobretudo quando há, com a Lei nº 14.478/2022, equiparação da pessoa jurídica que opera ativos virtuais à instituição financeira e, inclusive, a possibilidade, em tese, de sanção penal pelas mais diversas fraudes na sua gestão.

A par disso, é importante diferenciar as hipóteses de tipicidade do novo delito e dos crimes financeiros que passam a ser aplicáveis, notadamente de gestão fraudulenta e apropriação de recursos de instituição financeira (artigos 4º e 5º da Lei nº 7.492/1986). O caminho nos parece ser aplicar o artigo 171-A do CP quando houver condutas autônomas voltadas para manter vítimas específicas e individualizadas em erro, e a Lei nº 7.492/1986 quando as condutas forem praticadas no âmbito da instituição financeira e causarem prejuízos genéricos aos clientes e ao sistema financeiro nacional. Tal análise é equivalente à que já era realizada para definir se houve crime contra economia popular ou estelionato [5].

Nesse sentido, considerar o crime do artigo 171-A como um crime material, que depende do resultado para sua consumação, individualizando-se os prejuízos de pessoas específicas, parece-nos o mais adequado para evitar a cumulação indevida com crimes da Lei nº 7.492/1986. Por mais que a cumulação possa ter sido a intenção não explicitada do legislador para, deste modo, punir mais severamente uma modalidade de fraude que se difundiu, há que se repudiar a dupla apenação por força do princípio do ne bis in idem e se prezar pela coerência sistemática.

Com isso, conforma-se o tipo penal do artigo 171-A do CP à Constituição, pois passa a obedecer ao princípio da ofensividade e ter dimensionada a sua tipicidade material.

Nessa esteira, pela lógica da regra geral para o estelionato instituída pela Lei nº 13.964/2019, o crime do artigo 171-A do CP poderia ser de ação penal condicionada à representação, pois a vítima, ao buscar investimentos com certo risco e percebendo-se lesada em seu patrimônio em razão de grave fraude, auxilia e participa da deflagração a atividade persecutória do Estado, que deve ser racionalizada.

Ainda de lege ferenda, por tutelar o patrimônio, esse delito se mostra coerente com a possibilidade normativa de celebração de acordo de não persecução penal, que pode ter também como objeto a reparação do prejuízo patrimonial da vítima, evitando-se um longo, desgastante e custoso processo penal. Se a intenção do legislador foi contemplar as vítimas de fraudes, seria interessante que oferecesse um instrumento de incentivo para a recuperação dos valores perdidos.

Mesmo assim, não faltará ferramenta para a alegada finalidade de repressão penal — finalidade que deve ser conformada à Constituição e dosada em observância da subsidiariedade ou ultima ratio penal [6], priorizando-se a reparação dos danos, sobretudo em crimes patrimoniais sem violência —, pois os crimes contra o sistema financeiro, que tutelam bem jurídico transindividual ou macrossocial, são de ação penal pública (e, observe-se, atendem ao requisito objetivo da pena mínima para a celebração do acordo de não persecução penal).

A ver como os tribunais aplicarão o crime do artigo 171-A do CP e quais serão os rumos da política criminal relativa aos criptoativos.

 


[1] DURAN, Camila Villard; STEINBERG, Daniel Fideles; CUNHA FILHO, Marcelo de Castro. Criptoativos no Brasil: o que são e como regular? Recomendações aos Projetos de lei 2060/2019 e 2303/2015. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2019. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/56a-legislatura/banco-central-regular-moedas-virtuais/apresentacoes-em-eventos/CamilaDuranProfessoraDoutoradaUSP.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.

[2] SILVEIRA. Renato de Mello Jorge. Política criminal aplicada ao cenário das criptomoedas: avanços e retrocessos. In revista Consultor Jurídico, 16 mai. 2022. Disponível: https://www.conjur.com.br/2022-mai-16/renato-silveira-politica-criminal-aplicada-criptomoedas. Acesso em: 23 jun. 2023.

[3] NASCIMENTO, Roberta Simões. O argumento da intenção do legislador: anotações teóricas sobre uso e significado. In Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 58, n. 232, out./dez. 2021, p. 167‑193. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/232/ril_v58_n232_p167. Acesso em: 23 jun. 2023.

[4] Projeto de Lei nº 2.303/2015, disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pl+-2303-2015. Acesso em: 23 jun. 2023.

[5] "Assim, narrados casos de prejuízos genéricos por infinidade de usuários, sem verificação de conduta transcendente, mas mera cooptação pelo site eletrônico, ainda que possível identificar algumas vítimas, verifica-se apenas o crime contra a economia popular. Porém, havendo o aliciamento particularizado, mediante induzimento e convencimento, de vítimas determinadas, através de emissários dos agentes criminosos principais, torna-se possível falar, em tese, em concurso de crimes entre o delito contra a economia popular e o estelionato. Isto porque, paralelamente ao ato voltado contra o público em geral (sítio eletrônico para angariar vítimas), verificam-se condutas autônomas de aliciadores voltadas contra o patrimônio particular de vítimas específicas, cuja adesão ao site (instrumento para a fraude) se revela apenas como exaurimento do estelionato" (STJ, RHC nº 161.635, 5ª Turma, rel. min. Ribeiro Dantas, DJe 30/8/2022).

[6] ORZARI, Octavio. Os desafios do legislador e a criminalização de condutas. In Processo Legislativo: teoria e prática. Orgs. Caio Morau e Carlos Oliveira. São Paulo: JusPodivm, 2022, p. 319-335.

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