Opinião

Política criminal aplicada ao cenário das criptomoedas: avanços e retrocessos

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16 de maio de 2022, 9h04

Existem inúmeras definições sobre Política Criminal. Sobre ela já fazia menção, no século 18, Mello Freire, em Portugal. Hommel e Feuerbach também mencionavam sua necessidade, sendo que foi com Von Liszt, no Programa de Marburg, de 1882, que ela ganhou novos ares, ao depois revisitados por um jovem Roxin, em 1970.[1]

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Entendendo-se, com Zipf, que a política criminal estabelece um setor objetivamente delimitado da Política Jurídica Geral, referindo-se, especificamente, ao encargo e função da Justiça Criminal. À Política Criminal impõe-se, assim, a tarefa de revisar a zona penal, bem como medir a forma de operação das sanções. Segundo a missão da Justiça Criminal,[2] pode-se entender a gama de repercussões assumidas em sua dimensão. De qualquer modo, o alerta de Bricola parece ser, em especial no Brasil, quase sempre esquecido.

Segundo o autor italiano, distinções deveriam ser colocadas, entre outras, em relação à Política Criminal e à Política Penal.[3] A primeira trataria, sim, da política de transformação social e institucional em sentido amplo, enquanto a segunda versaria sobre uma resposta à questão criminal circunscrita ao âmbito do exercício da função punitiva do Estado. Questões distintas deveriam ser distintamente tratadas. Sob tais premissas, seria de se indagar se caberia uma Política Criminal própria às criptomoedas.

Antes de qualquer consideração, mesmo de cunho econômico, é de se verificar e frisar, uma vez mais, que as criptomoedas, a princípio, não são criminosas. Elas podem se destinar a situações criminosas, mas, em si, não o são. Entretanto, a busca de um controle penal, em especial no que diz respeito à seara econômica, é bastante significativa. E, diga-se, normalmente imbuído de um teor bastante duro e punitivista. Para tanto, utilizam-se como justificativa a necessidade de repressão a estelionatos ou à presença de pirâmides financeiras que rondam o mundo cripto, ou, mesmo, o apelo a tipificações de paralelo tão criticadas como a de gestão fraudulenta ou temerária de exchanges. No entanto, é de se dizer que a maior das justificativas hoje utilizada parece ser a necessidade de controle da suposta lavagem de dinheiro que as criptomoedas acabariam por permitir.[4] Muito melhor a escolha, preventista que é, posta, também, no recente Projeto de Lei nº 3825/2019, em relação às previsões realizadas nos artigos 9º, 10 e 11, da Lei nº 9.613/1998.

Um passo atrás se faz, aqui, necessário. Foi nos anos 1990 que toda a discussão sobre lavagem de dinheiro ganhou força na dogmática penal. As discussões, então, eram inúmeras, versando desde que questões relativas ao que se poderia entender por bem jurídico protegido até, mesmo, a lógica da criminalização pretendida. Passados anos, diga-se, boa parte das dúvidas foram deixadas de lado. A realidade se impôs ao pragmatismo penal. Tais recordações vêm à mente, por óbvio, quando se discute, hoje, a temática das criptomoedas.

Três são os cenários distintos que ajudam a explicar muitas das dificuldades. Em primeiro lugar, é de se ter em conta que as criptomoedas são permeadas por preconceitos criminais desde o seu lançamento. O desconhecimento tecnológico, a ignorância dos mistérios da deep web, além de lendas urbanas formadas ao redor de casos como da SilkRoad, dos desvios de dinheiro de tantas exchanges mundo afora e de escândalos envolvendo alegadamente pirâmides financeiras, traçaram um aparente gizar de desmando e ilegalidade incontornável.[5] Mas não só. Noticia-se que, no Brasil, a Polícia Federal e a Polícia Civil de São Paulo chegam a estimar que crimes envolvendo criptomoedas já somariam cerca de R$ 6,5 bilhões, em menos de dois anos,[6] o que já faz gerar toda uma engrenagem de maior busca de repressão penal, como se isso fosse, sim, uma amostra de política criminal. Não o é.

Por outro lado, a índole rebelde das criptomoedas, postando-se em paralelo ao cenário econômico oficial, tampouco facilita as coisas como se apresentam. E quanto mais a se dizer da ampliação de fronteiras hoje sentida, por exemplo, por onde se chega a imaginar sua utilização mesmo, em tokens ou valores mobiliários.[7] Além disso, a alegada quase aversão inicial do sistema bancário ao mundo cripto pode ter feito, ainda que de forma e maneira indiretas, que esse estado de coisas e sentimentos acabasse por se postar de maneira mais complexa. A busca de regulações de negócios dessa ordem, como veículos de investimentos, no entanto, talvez não venha a redundar em resposta ideal para todos.

No entanto, talvez a questão mais complexa, e que aqui deve ser enfrentada, diz respeito ao fato de que existe uma perene ilusão de que o Direito Penal tem o condão de resolver tantos e tantos problemas. A ilusão penal destacada por vários penalistas, segundo a qual infere-se que o Direito Penal ou que criminalizações várias têm a capacidade de refrear o crime é um enorme obstáculo quando se está a trabalhar em campos novos. E nada mais novo do que as criptomoedas. Daí se justifica, também em parte, a busca a toda hora por respostas penais a temas envolvendo criptomoedas. Contudo, a situação quase que bipolar que vive a ciência penal, pregando, de um lado, por mais crime e punição e, por outro, por menos intervenção e repressão, parece também afetar a abordagem econômica, no caso específico, de uma vertente específica e normativa desse universo. Hoje já se discute o crime de estelionato com criptomoedas, como se isso, unicamente, viesse a regular penalmente a questão. Não vai, frise-se desde logo.

Por certo, e a experiência internacional caminha nesse sentido, diversos crimes se farão presentes no palco de utilização das criptomoedas. Algumas tipificações talvez façam algum sentido, principalmente ao se imaginar a não adequação da justaposição dos mundos concreto e virtual. Outras tantas, no entanto, apenas refletem uma política penal desmedida e desnecessária, como seriam desnecessárias propostas vistas como de crimes em ambientes coletivos ou de particulares cruezas, já vistas, genericamente, dentro de um escopo de torpeza. Aqui, cada vez mais claro, a sobriedade que o legislador penal deve ter, afastando-se, pois, de adjetivações casuísticas e desenhos momentâneos.

Se existe certo consenso de que alguma regulação se faz necessária, o tema de qual regulação seria é absoluto dissenso. E isso faz a tensão aumentar, ainda mais, quando se imagina a utilização do ferramental penal. A tentação a se evitar — e nisso o criminalista pode vir a ter certa dose de culpa — diz respeito a se tentar focar leituras político-criminais a temas de real importância. E, fundamental, se recordar que se o Direito Penal deve sim se dedicar a ultima ratio, não pode vir a se aventurar a assumir papéis pré-regulatórios, dizendo o que vai ter por crime antes mesmo de se saber, ou entender, como as criptomoedas podem se postar no cenário econômico global.

Tome-se, enfim, o ensinamento de Bricola uma vez mais, e não se permita que, sob uma desculpa política criminal venham a se traçar políticas penais (ilusórias) com o único escopo de limitar as operações cripto. Uma política criminal é algo bem mais complexo do que isso, com fins e metas bem postas. E estas jamais podem ceder espaço a preconceitos, lendas urbanas e intuições de quem quer que seja, sob o risco de se ter retrocessos que venham a obstar quaisquer avanços. E avanços são inerentes ao espaço sempre crescente das criptomoedas.

Que venha, pois, a regulação (ou alguma regulação), pois ela, em si, é um claro e verdadeiro desenho de uma política, também criminal, a se evitar o uso do próprio Direito Penal. Mas que se tenham em mente, desde logo, as dificuldades de estipulação de parâmetros em um mercado global e, por derradeiro, que se definam os modais do que regular, sob pena de se ter unicamente mais Direito Penal, sem qualquer sorte de efetividade. Enfim, que se venha a saber, aprioristicamente, o que, como e de que forma regular. Essa, ainda parece ser uma dúvida não respondida.


[1] Cf. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal supraindividual: interesses difusos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 158 e ss.

[2]ZIPF, Heinz. Introducción a la política criminal. Trad. Miguel Izquierdo Macías-Picavea. Madrid: Edersa, 1979. p. 3 e ss.

3]BRICOLA, Franco. Política criminal y derecho penal. Revue Internationale de Droit Penal 49/107, n. 1, 1978; BRICOLA, Franco. Politica criminale e scienza del diritto penale. Bologna: Mulino, 1997. p. 101 e ss.

[4] Cf. MARTELANE, Roy. Criptoativos. In: PINTO, Alexandre Evaristo; EROLES, Pedro; MOSQUERA, Roberto Quiroga (coord.). Criptoativos. Estudos regulatórios e tributários. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 213 e ss.

[5] Cf. LAMAS SUÁREZ, Gerardo Luis. Cibercrimen, bitcoins y lavado de activos. Lima: Lamas, 2019, p. 129 e ss.

[7] Cf. NAJJARIAN, Ilene Patrícia de Noronha. O token fungível, infungível e a mobilização de riquezas. In: PINTO, Alexandre Evaristo; EROLES, Pedro; MOSQUERA, Roberto Quiroga (coord.). Criptoativos. Estudos regulatórios e tributários. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 87 e ss. COSTA, Isac. Plunc, plact, zum: tokens, valores mobiliários e a CVM. In: PINTO, Alexandre Evaristo; EROLES, Pedro; MOSQUERA, Roberto Quiroga (coord.). Criptoativos. Estudos regulatórios e tributários. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 151 e ss. GUERREIRO, José Alexandre Tavares; BUSCHINELLI, Gabriel Saad Kik. ICOs (Initial Coin Offering) e a disciplina dos valores mobiliários. In: PINTO, Alexandre Evaristo; EROLES, Pedro; MOSQUERA, Roberto Quiroga (coord.). Criptoativos. Estudos regulatórios e tributários. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 467 e ss.

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