O necessário código de direito financeiro para o Brasil
31 de janeiro de 2023, 8h00
Somos pródigos em constitucionalizar direitos. Isso ocorreu na Constituinte de 1987/88, e foi ampliado ao longo do tempo por meio de mais de 130 emendas constitucionais. No âmbito do direito financeiro o que já era vasto foi intensificado a partir da Emenda Constitucional 95/16, que criou o teto de gastos, e, na sequência, diversas ECs foram necessariamente aprovadas para alteração desse dispositivo a fim de criar goteiras financeiras para que o país permanecesse funcionando. Basta ver que a versão original do artigo 167 já era enorme, e hoje, até o momento em que estas linhas estão sendo escritas, já foi alterado e acrescido dos artigos 167-A até o 167-G, todos envolvendo matéria de direito financeiro. Não custa lembrar uma definição de direito financeiro para se dar conta de sua amplitude e importância: ramo do direito que estuda como o Estado organiza e controla a arrecadação, o gasto, a dívida, e como tudo isso é repartido, em busca da concretização de um Estado de direito Democrático e Republicano. Tal definição contempla as diversas áreas em que este se divide: orçamento, controle, receita, despesa, dívida e federalismo fiscal, visando alcançar os objetivos constitucionais.
Será que precisamos de tantas regras de direito financeiro na Constituição? Penso que não.
Existem normas de estrutura, normas de organização e normas que apontam objetivos (na dicção de Eros Grau, normas-objetivo). Na Constituição devem estar as normas que veiculam os objetivos da sociedade em relação ao direito financeiro, como a que determina o uso dos recursos públicos visando a redução das desigualdades regionais e sociais e a erradicação da pobreza (artigo 3º, III) ou a que estabelece o âmbito do controle financeiro e orçamentário do país (artigo 70, CF). Embora algumas normas de estrutura pudessem estar fora da Constituição, nela possuem espaço, como a que estabelece a composição dos Tribunais de Contas (artigo 73, CF). Todavia, grande parte das normas de conduta, que são aplicadas à regulação da conjuntura, não deveriam estar na Constituição — um bom exemplo é a norma que estabelece procedimentos prudenciais para ajustes fiscais, vedando condutas quando a relação entre receitas e despesas correntes superar 95% em 12 meses (artigo 167-A, CF), sem falar em grande parte das normas constantes do ADCT.
O direito financeiro hoje é regulado por uma enormidade de normas constitucionais e legais esparsas, e muitas vezes conflitantes entre si, sem falar em sua aplicação dúbia para Estados e Municípios, o que aumenta exponencialmente a complexidade da matéria. Possuem destaques a vetusta Lei 4.320/64 e a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/00), dentre muitas outras. Existem Resoluções do Senado acerca dos limites da dívida pública, bem como sobre a partilha do ICMS. Existem até mesmo normas advindas de Emendas Constitucionais que não foram encartadas no texto da Constituição, como se vê na EC 109/21, cujo importante artigo 5º, determina que o superavit financeiro dos fundos públicos poderá ser usado para amortizar a dívida pública — são normas constitucionais sem pouso na Constituição, que vagam ao léu.
Enfim, transformamos o âmbito financeiro de nossa Constituição em regulamentação normativa da Secretaria do Tesouro Nacional. De certo modo, isso já havia sido feito em matéria tributária, inserindo disposições que são mais adequadas à instrução normativa da Receita Federal ou de receitas estaduais.
A situação chegou a tal ponto que na EC 126, de 21/12/22, consta uma disposição juridicamente esdrúxula, porém politicamente adequada, pela qual se determina prazo para que o presidente da República encaminhe ao Congresso um projeto de lei complementar com o objetivo de "instituir regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do país" (artigo 6º) , tendo sido prescrito que: "Ficam revogados os artigos 106, 107, 109, 110, 111, 111-A, 112 e 114 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias após a sanção da lei complementar prevista no artigo 6º desta Emenda Constitucional" (artigo 9º). É isso mesmo! Lei complementar revogando automaticamente diversos artigos da Constituição — Kelsen e o positivismo jurídico deve estar se revirando no túmulo, embora a ideia e a intenção sejam boas.
É imprescindível que o ordenamento financeiro seja reanalisado a fim de que exista segurança jurídica. Inserir tudo que se imagina na Constituição não a tornará mais forte e respeitada, apenas ampliará a luta surda que se vê pela partilha dos escassos recursos públicos (reserva do possível) e escolhas trágicas, conforme escrevi tempos atrás.
É imprescindível que se dê um freio de arrumação em tudo isso, em nome da tão decantada governabilidade e da imprescindível segurança jurídica. É necessário criar um Código de Direito Financeiro para que estas normas se tornem mais estáveis, claras e coerentes entre si, e, espera-se, sejam efetivamente cumpridas.
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