Opinião

Sequestro Internacional de crianças e devido processo convencional

Autores

  • Lorena Bastianetto

    é sócia do escritório Bastianetto Alessi Advogados doutora em Direito Processual pela PUC-MG presidente da Comissão de Direito Internacional da OAB-MG e professora de Direito Processual e Direito Internacional da Escola Superior Dom Helder Câmara.

  • Dierle Nunes

    é professor da UFMG e da PUC-Minas. Membro honorário da Associação Iberoamericana de Direito e Inteligência Artificial. Diretor do Instituto Direito e Inteligência Artificial (Ideia). Doutor em Direito pela PUC-Minas/Universitá degli Studi di Roma "La Sapienza".

31 de janeiro de 2023, 6h37

O sequestro internacional de crianças demanda discussões processuais pertinentes no Brasil, haja vista que o pressuposto de validade processual da competência pode acarretar vícios de cognição graves que colocam em risco a teleologia da Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças (Decreto no 3.413), em vigor no país desde os anos 2000.

Em se tratando dos limites da jurisdição nacional, ou seja, da competência do Brasil para o processamento da causa, sua análise dependerá do contexto fático do caso, uma vez que, nos termos da Convenção, em seu artigo 16, existe uma cisão competencial entre a jurisdição para o julgamento do sequestro ou retenção ilícita de crianças e aquela hábil a conhecer dos direitos de guarda. O direito material envolvido nessa cisão competencial é notável, pois o foro correto (forum conveniens) para decidir sobre a guarda seria aquele da residência habitual da criança, e não do seu domicílio[3].

Façamos aqui uma pausa a fim de que não incorramos em erros quanto aos elementos de conexão consagrados há mais de 80 anos na legislação brasileira. O foro propício da Convenção para a discussão da guarda é o da residência habitual da criança, elemento de conceito divergente do domicílio, este último largamente difundido pela Lindb , especialmente para a normatização do estatuto pessoal[4] em situações que envolvam dois ou mais países.

Apesar de a convenção não prover os parâmetros para a compreensão do que seja a residência habitual, a sua aplicação em mais de 100 países[5] signatários em âmbitos administrativo e judicial, bem como o avanço da literatura especializada, trazem balizamentos de maior solidez a ser analisados pela jurisdição ao determiná-la. Portanto, a residência habitual perpassaria, em um primeiro plano, por uma cognição acerca da intenção conjunta e partilhada dos genitores ou tutores da criança em fixar residência em determinado local[6].

Já a discussão sobre o sequestro ou a retenção ilícita seria de competência do país para o qual a criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida. Nessa cognição, a jurisdição do atual domicílio da criança, ou seja, da sua efetiva localização, decidirá sobre a ilicitude de sua estadia naquele país, o que abarca, inevitavelmente, a declaração do juízo sobre a residência habitual da criança. Assim, ao decidir sobre a ilicitude da transferência ou retenção, o país onde a criança efetivamente se localiza torna-se competente para conhecer sobre qual seria sua residência habitual.

Referida cognição levanta questões processuais importantes acerca do devido processo legal quanto à cisão competencial na Convenção. Além das significativas considerações sobre o foro propício ou de maior conveniência, o artigo 16 requer a compreensão da indesejada litispendência internacional, a qual, a despeito, a nosso ver, da má redação do artigo 24 do CPC/2015, existe e deve ser evitada. Deste modo, ações repetidas sobre guarda em países diversos ou sobre sequestro internacional entre as mesmas partes no país de residência habitual e, concomitantemente, no país de localização — domicílio da criança — não devem prosperar.

O fundamento primacial dessa afirmação funda-se no entendimento do processo como direito a um julgamento justo[7], o que compreende o dever de cooperação não somente entre os sujeitos processuais, mas entre as jurisdições — países signatários —, as quais comprometeram-se por um tratado —, tornando-o norma interna — a atuar em comparticipação para a efetivação da medida típica executiva convencional de retorno imediato da criança nos termos do artigo 12 da Convenção.

Desta forma, os fins convencionais devem promover o reconhecimento das decisões cabíveis a ambas as jurisdições envolvidas, com a interdição da norma do artigo 21 do CPC/2015, a qual, pela sua literalidade, propiciaria, a princípio, que ambas as ações de guarda e a relativa à Convenção da Haia fossem processadas no Brasil pelo critério do domicílio do réu.

No que tange à competência interna, as dificuldades não são menos espinhosas, especialmente pelo fato de que, por disposição constitucional, "as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional"[8] são de competência dos juízes federais. Por sua vez, a discussão sobre a guarda permanece na competência da justiça estadual da vara de família[9].

Vejam que há um duplo plano de cisão competencial em relação às matérias direta e indiretamente afetas à aplicabilidade da Convenção. Mencionada cisão ocorre em níveis convencional e constitucional, sendo que a cisão convencional  deve ser primeiramente cumprida para posterior análise da cisão competencial interna segundo as normas brasileiras. A fundamentação que alicerça nosso posicionamento baseia-se no artigo 46 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados[10], o qual, como regra geral, interdita a possibilidade de invocar-se violação ao direito interno para descumprimento de um tratado. Ademais, sob o viés processual, não há norma brasileira que contradiga a cisão competencial do artigo 16 da Convenção da Haia, uma vez que o CPC/2015 é expresso, em seu artigo 13, sobre a especialidade dos tratados em relação às normas processuais brasileiras — normas gerais no tema que aqui se versa.

Portanto, o Brasil deve evitar o processamento, na sua jurisdição, de ações sobre a subtração ou retenção internacional ilícitas envolvendo as mesmas partes, haja vista que o direito de guarda deve ser discutido pelo país de residência habitual da criança, elemento, por sua vez, a ser declarado pela jurisdição do local onde a criança efetivamente se encontre. Nessa vertente processual, se a criança foi transferida ou está sendo retida ilicitamente no Brasil, a jurisdição nacional só processará e julgará sobre a ilicitude da transferência ou retenção no juízo federal. A cognição da ilicitude do domicílio da criança no Brasil obstaria, ao menos para retenções ou subtrações ilícitas de menos de um ano — artigo 12 da Convenção —, o conhecimento do juízo estadual da vara de família sobre guarda, uma vez que esse juízo seria um forum non conveniens.

Na mesma esteira, se a criança brasileira ou de residência habitual no país foi transferida ou está retida ilicitamente fora do território nacional, é na jurisdição estrangeira que a ação da Convenção da Haia deve ser processada, cabendo ao Brasil apenas a ação de guarda pelo juízo estadual da vara de família.

Claramente que a temática tratada na Convenção da Haia é tormentosa e causadora de severos sofrimento e angústia nas famílias multinacionais. Naturalmente, as partes envolvidas, Autoridades Centrais ou órgãos com capacidade postulatória — a depender da normatização dos direitos internos — podem duplicar ações em jurisdições diversas com fins à obtenção de uma resposta mais célere e efetiva, proveniente de qualquer jurisdição que seja. No entanto, a complexidade e emergência da temática tratada não pode gerar obscuridades processuais que podem acarretar prejuízos irreparáveis para as partes envolvidas, além das discussões sobre o descumprimento convencional, que implica a responsabilidade do Brasil por atos internacionalmente ilícitos[11].

Recentemente, foi publicada a Resolução no 449/2022[12], do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que dispõe sobre a tramitação das ações judiciais fundadas na Convenção da Haia. Nessa resolução, o artigo 2º dispõe:

Na interpretação e aplicação da Convenção da Haia de 1980, observar-se-ão as normas de direito internacional privado previstas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em especial no art. 7º, aplicando-se, conforme o caso, o direito privado do Estado de residência habitual da criança ou o Código Civil brasileiro.

Vejam que a literalidade do dispositivo tende a incorrer o juízo em erros processuais graves, como a intelecção de equivalência entre o conceito de domicílio e residência habitual. Além disso, a interpretação de tratados não pode ser feita em acordo com o direito interno de um país, mas sim, em consonância com o Direito Internacional e com o processo convencional.

Ainda, cabe ressaltar que a resolução não esclarece aos juízes que, quando a criança brasileira ou de residência habitual no Brasil estiver ilicitamente em território estrangeiro, o processo convencional aponta para a incompetência da jurisdição brasileira para o tema, reservada a competência do juízo estadual, a depender do caso, para processar o direito de guarda se o Brasil for, pela decisão estrangeira, reconhecidamente a residência habitual da criança.

Feitas estas breves considerações, é importante frisar que o escopo dos tratados é a cooperação entre os países signatários, e não a criação de impedimentos e desconfianças de decisões forâneas em acordo com o processo convencional sobre a temática. Assim sendo, se o Brasil for apenas competente para julgar a ação de guarda, haja vista a criança estar ilicitamente em outro país, o juízo estadual da vara de família não deve medir esforços para a efetivação dos direitos de guarda, atuando em cooperação com o estado estrangeiro para o efetivo retorno da criança. A cooperação internacional não é somente cabível ao juízo federal, é um instituto processual civil que pode ser utilizado por diversas autoridades, em especial pela via do auxílio direto. Nos termos do processo convencional e do processo civil brasileiro[13], pessoas e instituições[14] podem recorrer às Autoridades Centrais para as providências cabíveis em relação à efetividade decisional da tutela concedida em acordo com as competências internacional — limites da jurisdição — e interna da jurisdição pertinente.

Importante concluir que decisões estrangeiras são reconhecidas no Brasil por um juízo de delibação pelas vias da homologação de decisão estrangeira e da concessão de exequatur à carta rogatória. Entretanto, em um sistema de justiça global, especialmente em temáticas tão aflitivas e urgentes que impõem cisões competenciais como no caso do sequestro internacional de crianças, a cooperação dos países signatários da Convenção para a consideração das decisões pertinentes a cada jurisdição é parte indissociável da finalidade do devido processo legal com vistas à simetria e à efetividade protetiva do melhor interesse da criança.

Por fim, uma última e eminente consideração sobre decisão recentíssima do STJ em sede do REsp 2.038.760, a qual estabelece que "é admissível a fixação da guarda compartilhada na hipótese em que os pais residam em países diferentes, não havendo impedimento para que um dos genitores mude de país".[15] "Referida tese não pode, em qualquer circunstância, legitimar a transferência ou retenção ilícita de crianças, somente sendo aplicável para casos que não abarquem a Convenção da Haia.

 


[3] Cf. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Recurso Especial (Resp) nº 1.196.954/ES. Disponível em: https://www.stj.jus.br. Acesso em: 02 jan. 2023; e Superior Tribunal de Justiça (STJ). Recurso Especial (Resp) nº 1.959.226/SP. Disponível em: https://www.stj.jus.br. Acesso em: 02 jan. 2023. Conferir também Corte Constitucional Republica de Colombia. Sentencia T-202/18 da Corte Constitucional da Colombia. Disponível em: https://www.corteconstitucional.gov.co. Acesso em: 02 jan. 2023. Ver ainda: Corte Suprema de Justicia de la Nación Argentina. Fallos: 343:1362 da Corte Suprema de Justicia de la Nación de 2020. Disponível em: https://sj.csjn.gov.ar. Acesso em: 02 jan. 2023.

 

[4] A respeito, ver Art. 7º do Decreto-Lei 4.657/1942 (BRASIL Decreto-Lei no 4.657, de 4 de setembro de1942. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657.htm. Acesso em: 02 jan. 2023.

[5] Cf. Hague Conference on Private International Law-HCCH. 28: Convenção de 25 de outubro de 1980 sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, 1-XII-1983 Disponível em: https://www.hcch.net/en/instruments/conventions/status-table/?cid=24. Acesso em: 02 jan. 2023.

[6] Cf. Gitter v. Gitter 396 F.3d 124 – 2dCir. 2005, USA.

[7] Cf. United Nations. General Assembly. Fourth Report on Peremptory Norms of general international law (jus cogens) by Dire Tladi, Special Rapporteur de 2019. A/CN.4/727, p. 55. (United Nations. General Assembly. Fourth report on peremptory norms of general international law (jus cogens) by Dire Tladi, Special Rapporteur. Seventy-first session Geneva, 29 April–7 June and 8 July–9 August 2019. Disponível em: https://legal.un.org/docs/?symbol=A/CN.4/727. Acesso em: 02 jan. 2023.

[8] Cf. Art. 109, III da CF/1988 (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: Acesso em: 02 jan. 2023).

[9] Cf. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). Conflito de Competência (CC) 132100/BA. Relator: Ministro Felix Fischer. 13 de janeiro de 2014. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 02 jan. 2023.

[10] Cf. BRASIL. Decreto no 7.030, de 14 de dezembro de 2009. Promulga a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7030.htm. Acesso em: 02 jan. 2023.

[11] Cf. PROJETO DA Comissão de Direito Internacional Das Nações Unidas sobre Responsabilidade Internacional dos Estados, Tradução: Prof. Dr. Aziz Tuffi Saliba. Disponível em: https://iusgentium.ufsc.br/wp-content/uploads/2015/09/Projeto-da-CDI-sobre-Responsabilidade-Internacional-dos-Estados.pdf. Acesso em: 02 jan. 2023.

[12] Cf. BRASIL. Poder Judiciário. Conselho Nacional de Justiça. Resolução no 449, de 30 de março de 2022. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original131217202204016246fa3199959.pdf. Acesso em: 02 jan. 2023.

[13] Cf. especialmente ao disposto nos Arts. 28 a 34 do CPC/2015 (BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015.

[14] Cf. Art. 29 da Convenção de Haia.

Autores

  • é sócia do escritório Bastianetto Alessi Advogados, doutora em Direito Processual pela PUC-MG, presidente da Comissão de Direito Internacional da OAB-MG e professora de Direito Processual e Direito Internacional da Escola Superior Dom Helder Câmara.

  • é sócio do escritório do Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia), doutor em Direito Processual, professor adjunto na PUC Minas e UFMG, membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do CPC/2015 e diretor acadêmico do Instituto de Direito e Inteligência Artificial (Ideia).

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