Embargos Culturais

Cafeína, de Maurício Torres Assumpção

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

29 de janeiro de 2023, 8h00

Que livro! Uma resenha crítica que comece com uma exclamação dessas só pode ser o anúncio de um livro imbatível. E é. Cafeína, de Maurício Torres Assumpção, publicado em 2020, editado pela LeYa, desponta como um favorito no selo ficção histórica. É um romance histórico que tem muito romance e que tem muita história. Cafeína é um daqueles livros que se lê de uma sentada, sem pausa para nada. O leitor é envolvido por uma trama muitíssimo bem construída, com muitas surpresas, idas e vindas, tudo antecedendo um fim de tirar o fôlego. Difícil escolher a leitura seguinte.

Spacca
Cafeína contempla miríade de assuntos, que transitam da época da lei do ventre livre (1871) até o golpe de Vargas (1930). Um dos temas centrais (há muitos temas centrais) é a decadência da lavoura cafeeira da região de Vassouras, no Rio de Janeiro, o que ocorre ao longo do processo do desmonte da economia escravocrata, que de algum modo continuou em seus elementos estruturais de exploração: é o roteiro da senzala para a favela, que dava sequência ao roteiro macabro que começara na captura e no navio negreiro. É nosso grande problema, quem o diz é Jessé Souza, com quem concordo nesse pormenor.

O livro trata de casamentos forçados, de um coroinha que estudava francês, da prostituição em Paris ao tempo da Belle Époque, de Ruy Barbosa, da crise do encilhamento, da República de Espada, da construção da Torre Eiffel, de Toulouse-Lautrec, da escravidão, do anarquismo, do assassinato de Sadi Carnot (presidente da França), de Isabel (a quem se refere como Condessa D'Eu), de Santos Dumont, de um personagem imaginário que só pode ser Eduardo Prado, entre tantos assuntos, e temas correlatos, que o autor costura com uma qualidade narrativa surpreendente.

Há no livro um argumento histórico explorado de maneira instigante relativo às transformações políticas ocorridas no Brasil e a forma como as mudanças seriam exploradas como oportunidades para negócios. É, especialmente, a trajetória de Antonio, filho de um imigrante português que aproveitou a oportunidade de um casamento, enriquecendo com o café, que quase foi o Barão do Pau Vermelho. Por sugestão do Imperador, que preferia títulos de nobreza com argumentos e referências indígenas, o Barão ficou mesmo Barão de Ibirapiranga. Há uma referência ao "pau-brasil" ainda que talvez fosse mais provável o uso de "Ibirapitanga". Porém, o livro é mais ficção do que relato fitogeográfico, o que deixamos para a primeira parte dos Sertões de Euclides da Cunha.

A narrativa é centrada em um menino, Sebastião Constantino do Rosário, o Tino, de algum modo envolvido numa comédia de erros, não fosse trágico tudo o que viveu. Protegido por um padre e por uma escrava forra o menino (sem saber), e em fuga, viaja para a Europa no mesmo vapor que conduzia D. Pedro 2º, então deposto. Concomitantemente, a narrativa gira em torno do sucessor do Barão de Ibirapiranga, que em Paris comandou a construção de torrefação de café, que de fato existe, e cujo endereço o autor registra ao fim do livro, inclusive ilustrando com fotografias do local, antes e hoje.

A fronteira entre ficção e realidade, entre história e fatos é absolutamente enigmática. É encantadora a técnica narrativa, com abundância de pormenores, que transitam das "pastilhas terebentinas" aos cabarés parisienses da época. Há referências ao funeral de D. Pedro 2º, a tentativas de aviação com balões, ao início da história do cinema. Nesse último caso, o autor registra uma das primeiras exibições do cinematógrafo, na qual um trem que se movia na tela, na direção dos espectadores, fazia com que esses saíssem correndo.

O autor, que é brasileiro (carioca), mas que me parece reside na Europa, havia publicado em 2014, também pela LeYa, A História do Brasil nas Ruas de Paris, de onde substancializou muita informação que retomou em Cafeína. O meu entusiasmo pelo livro decorre de sua técnica narrativa. Creio que as modernas técnicas de pesquisa (inclusive em fontes primárias) tornaram a parte histórica a menos difícil na composição da ficção histórica.

Especialmente em relação a tempos mais recentes há uma profusão de jornais, revistas, entrevistas, documentários, biografias e autobiografias, sempre a serviço do ficcionista. No entanto, o escritor precisa de uma narrativa plausível, acreditável, verossímil e cativante que segure o leitor. Há aí um pouco de técnica de romance policial, que Jô Soares (O Xangô de Baker Street) e José Almeida Júnior (O Homem que Odiava Getúlio Vargas) exploraram muito bem. Em Cafeína esse requisito é plenamente satisfeito, o leitor que se prepare para muita surpresa.

Um senão poderia se oposto a algum anacronismo (o caso do ministério público no século XIX) mas que o autor em outras partes do livro evita muito bem, quando cita os artigos do código penal então vigente, relativos ao estelionato.

Um excelente livro que coloca ao leitor um problema: o que ler em seguida? Creio que essa pergunta, nada ingênua, melhor expressa o meu fascínio com um livro impressionante.

Autores

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

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