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Proteção do patrimônio cultural brasileiro não admite omissões nem excessos

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

28 de janeiro de 2023, 8h00

O ordenamento constitucional brasileiro conta com diversos dispositivos espalhados pelo seu texto e que consagram o dever do poder público agir para a proteção  de nossos bens culturais, prevendo, por exemplo,  competências administrativas comuns a todos os entes federativos para proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos; impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural (artigo 23, III e IV).

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Segundo se extrai da Carta Magna vigente, a fruição de um patrimônio cultural hígido é corolário da própria dignidade da pessoa humana e da cidadania (fundamentos da República Federativa do Brasil) e constitui direito fundamental de terceira geração, sendo inconteste que a tutela desse direito satisfaz a sociedade como um todo (direito difuso), na medida em que preserva a sua memória e seus valores, assegurando a sua transmissão às gerações futuras (direito intergeracional).

O Supremo Tribunal Federal, a propósito, acolhe expressamente a natureza fundamental do direito ao patrimônio cultural, já tendo a oportunidade de consignar que: "a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 representou um marco evolutivo em termos de reconhecimento e proteção jurídica do patrimônio cultural brasileiro. Reconheceu-se, a nível constitucional expresso, a necessidade de tutelar e salvaguardar o patrimônio histórico-cultural, enquanto direito fundamental de terceira geração, isto é, de titularidade difusa, não individualizado, mas pertencente a uma coletividade" [1].

Como benefício substantivo primário decorrente da normatização constitucional  da defesa do patrimônio cultural é possível apontar a legitimação da função estatal reguladora e protetiva, de forma que a ausência de atuação do poder público é que deve ser justificada, uma vez que a regra é governabilidade afirmativa [2].

A propósito, a Suprema Corte do nosso país, invocando a doutrina alemã existente sobre a temática da tutela dos direitos fundamentais, já afirmou que os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote), podendo-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote) [3].

Como sabido, o Brasil é um país detentor de grande número de produções culturais materiais e imateriais que se encontram em seus mais diversos rincões, abrangendo edificações, monumentos, lugares, rituais, danças, festas,  produções gastronômicas, entre muitas outras.

Contudo, nem toda produção cultural (bem de cultura) pode ser considerada juridicamente, de forma imediata, como patrimônio cultural (bem cultural), sob pena de se inviabilizar a própria dinâmica da vida social e banalizar a atuação protetiva estatal, que sempre deve se  referir a algo de especial, de destacado valor coletivo e relevante interesse público.

A noção de bem cultural, em âmbito mundial, ganhou definição a partir dos estudos da denominada Comissão Franceschini, instituída pela lei italiana  nº 310, de 26 de abril de 1964 (Comissão de inquérito sobre a proteção e valorização das coisas com interesse histórico, arqueológico, artístico e da paisagem), que veio apresentar, em 1966, o seguinte conceito de bem cultural, ao propor na primeira das suas 84 declarações: "Pertencem ao património cultural da Nação todos os bens que tenham referência à história da civilização. Estão submetidos à lei os bens de interesse arqueológico, histórico, ambiental e paisagístico, arquivístico e bibliográfico, bem como qualquer outro bem que constitua testemunho material com valor de civilização".

De maneira mais moderna e tecnicamente precisa, no dizer da nossa Constituição, para integrar o patrimônio cultural do país os bens devem ser portadores de referência à identidade (características próprias materiais ou imateriais, traços distintivos que caracterizam um grupo), à memória (reminiscências escritas ou mantidas pela tradição oral, lembranças de fatos marcantes, símbolos arraigados nas reminiscências coletivas) e à ação (obras, realizações, feitos, fazeres materiais ou imateriais, conquistas) dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (desde os primitivos habitantes indígenas, passando pelos colonizadores europeus, africanos escravizados, imigrantes e demais contribuições culturais mais recentes).

Com efeito, somente devem receber a especial tutela do poder público aqueles produtos mais representativos e significativos da cultura do povo brasileiro, sendo indispensável a "seletividade" da atuação preservacionista.

Conquanto a Carta Magna dispense atributos de monumentalidade ou excepcionalidade (como fazia  expressamente o artigo 1º do Decreto-lei nº 25/37), há necessidade de que os bens se destaquem por suas peculiaridades (especiais atributos de antiguidade, raridade, beleza, exemplaridade, autoria, vínculo com fatos históricos, memoráveis, significância social etc), a ponto de serem considerados, pelo realce, marcos identitários da sociedade brasileira, seja em âmbito local, regional ou nacional, segundo o grau de interesse.

Verificados tais atributos, é dever (e não mera opção) a ação protetiva em prol da proteção e preservação de tais bens, havendo a possibilidade, inclusive, do acionamento do Poder Judiciário para a correção de omissões lesivas, sem que se fale em ingerência indevida, pois o dever de agir a tal respeito toca ao Poder Público como um todo e nenhum tipo de lesão ou ameaça a direito poderá ser suprimida da apreciação judicial, nos exatos termos preconizados pela Constituição Federal em seus artigos 5º, XXXV, 23, III e IV e 216, §1º.

Contudo, repita-se, a tutela do patrimônio cultural não pode ser banalizada.  Na literatura internacional, "fúria patrimonial", "alquimia do patrimônio", "paixão patrimonial", "patrimoniomania", "abusos do patrimônio", "maquinaria patrimonial" e "histeria do patrimônio" são algumas das expressões utilizadas para rotular  a proteção infundada e desenfreada, que carece de fundamentos teóricos e metodológicos para a seleção de signos que verdadeiramente devem ser protegidos.

O ponto de equilíbrio há de ser encontrado mediante a análise criteriosa de cada bem e da avaliação cuidadosa de seus atributos e significados.

Segundo a lição de José Casalta Nabais [4]:

"como acontece um pouco com todo o amplo campo do direito, também neste domínio não há bens ou valores jurídicos absolutos, mas bens ou valores jurídicos de algum modo relativos, bens cuja realização superlativa ou integral afecta, muitas vezes de forma irremediável, outros bens ou valores jurídico-constitucionais, o que implica o apelo às ideias de harmonização ou concordância prática, de ponderação ou equilíbrio, de proporcionalidade e de graduabilidade, ideias estas a que, como havemos de ver, o direito do património cultural faz um constante e particular apelo. Nomeadamente, no recorte e aplicação dos instrumentos de protecção e valorização do património cultural, há que proceder a uma ponderação permanente entre a defesa e a valorização do património cultural e a salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, como, por exemplo, os direitos de propriedade privada, de reserva da vida privada individual, familiar e comunitária, da liberdade religiosa, de preservação da vida comunitária e do correspondente pressuposto ou suporte económico, etc."

O processo de seleção de bens culturais normalmente compreende duas fases. 

A primeira é constituída pela avaliação técnica multidisciplinar com o objetivo de identificar os valores (atributos) de determinado bem e delimitar o objeto da proteção. No caso do tombamento de imóveis, por exemplo, essa fase se materializa em um dossiê, onde são apontados todos os elementos históricos e técnicos sobre o bem, com definição objetiva da área a ser protegida e o seu entorno.

Conforme leciona Carla Amado Gomes,  a avaliação do valor cultural de um bem situa-se num domínio em que o Direito é dependente de juízos apoiados em conhecimentos de outras ciências, ou seja, o reconhecimento da culturalidade de um bem é uma operação de subsunção de elementos fáticos  coisas  em conceitos indeterminados [5].

A segunda fase compreende a formalização da proteção por meio da decisão do poder público, na maioria das vezes mediante pronunciamento prévio de órgãos colegiados com participação de técnicos e da sociedade.

O sábio Aristóteles afirmava: "virtus in medium est" (a virtude está no meio) e o velho Baltasar Gracián ensina que "é muito importante saber escolher. É necessário, sobretudo, discernimento, Sem ele não existe capacidade para escolher o melhor" [6].

Por isso, o processo de seleção de bens culturais deve sempre buscar a criteriosa e adequada fundamentação técnica prévia, a legitimação da escolha com o necessário respaldo social e a formalização protetiva obedecidos os trâmites legais, tudo primando pelo equilíbrio e pela razoabilidade, a fim de se evitar, de um lado, a inadmissível omissão ou o descaso; e, de outro, a banalização  ou o excesso.

 


[1] STF; RE-AgR 1.222.920; SC; Segunda Turma; relator ministro Ricardo Lewandowski; Julg. 20/03/2020; DJE 31/03/2020; Pág. 97.

[2] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza Miranda. Introdução ao Direito do Patrimônio Cultural Brasileiro. Belo Horizonte. 2021. 3i. p.37.

[3] STF – Habeas Corpus 106.163/RJ. Relator ministro Gilmar Mendes. J. 06.03.2012.

[4] Noção e Âmbito do Direito do Património Cultural. Coimbra. 2002. p. 15.

[5] Textos dispersos de Direito do Patrimônio Cultural e de Direito do Urbanismo. Lisboa: AAFD. 2008. p. 31.

[6] A arte da sabedoria. Barueri: Faro Editorial. 2018. p. 33.

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