Licitações e Contratos

Lei nº 14.133/2021 e o fim da licitação do "tipo vale tudo"

Autor

  • Jonas Lima

    é sócio de Jonas Lima Advocacia especialista em Direito Público pelo IDP especialista em compliance regulatório pela Universidade da Pensilvânia ex-assessor da Presidência da República (CGU).

27 de janeiro de 2023, 15h12

A nova Lei de Licitações e Contratos, que acabou com a terminologia dos tipos de licitação, passando a enfatizar os critérios de julgamento, tornou superada a jurisprudência que se limitava a tratar de exequibilidade de proposta e chance de licitante explicar preço negativo, taxa negativa ou desconto em uma licitação na qual, simultaneamente, outros licitantes ofertavam preço.

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A coexistência de critérios sempre foi inconstitucional (quebra de isonomia na competição), ilegal (nada, em lei licitatória alguma, autorizava dois modos de compor custos e formar preços nas propostas) e anticoncorrencial (a prática implicava em falsear a livre concorrência).

Como se verá adiante, a nova lei veio acabar com a prática da banalização de mercado baseada em precedentes que apenas se limitavam a afirmar que empresas poderiam fazer negociações e que taxas negativas ou descontos poderiam surgir nas propostas, como se fosse possível haver uma licitação do "tipo vale tudo".

Entes públicos eram ludibriados pelo preço "mais baixo", mas as disputas não transparentes, sendo impossível aferir, na licitação, o que realmente estaria para ocorrer na futura execução do contrato e seus dissimulados "custos sombra".

De modo subjetivo, determinados licitantes alegavam utilizar negociações com terceiros (nunca documentalmente comprovadas durante a licitação), de modo que estavam baseando propostas em mencionadas fontes de receitas de terceiras empresas, estranhas ao contrato, para bancar descontos ou preços negativos.

O tempo mostrou que "nada é de graça" e "custos sobra" apareciam como fraudes, com valores dissimulados que elevavam o verdadeiro custo pela execução do contrato, vale repetir.

Isso chegou ao fim com o artigo 33, incisos I e II, da Lei nº 14.133/2021 (nova Lei de Licitações e Contratos), que enfatizou a existência de critérios distintos:

"Art. 33. O julgamento das propostas será realizado de acordo com os seguintes critérios:
I – MENOR PREÇO;

II – MAIOR DESCONTO;" (grifos nossos).

Mas antes mesmo dessa alteração normativa já não se poderia banalizar mercados com parte dos licitantes ofertando preços e parte ofertando valores abaixo de zero, alegando descontos que seriam suportados com outros ganhos, como no exemplo da taxa de administração negativa.

Como se poderia alegar critério objetivo se um edital continha dois critérios (preço ou preço negativo, que se considerava desconto em valores contábeis e tributários de terceiros)?

A coexistência de duas regras para as propostas, de bases diferentes, respeitava a isonomia?

Proposta alegadamente baseada em receitas de terceiras empresas tinha base legal?

Onde havia a autorização expressa em lei para deixar competidores apresentarem propostas com cálculos partindo de premissas diferentes?

Existe partida de jogo com competidores seguindo regras e outros criando suas próprias regras?

Sem considerar várias questões legais, a jurisprudência abriu portas para que certos licitantes fizessem o que bem entendessem nas licitações, quanto a preços, sem atentar que a conta desse modo de proceder chegaria mais adiante, dissimulada nas fraudes que deixavam o contrato, nas suas consequências práticas, desvantajoso.

Foram muitas as constatações de fraudes dissimuladas dentro da via das taxas de administração negativas de vale alimentação ou refeição, pois valores, adiante, acabam elevados no preço final ao usuário.

De nada adiantava continuar no paradigma de que a administração pública precisaria conseguir preços mais baixos, pois se prejudicava mercados (em aspectos concorrenciais), bem como a própria administração pública (chegando a danos significativos), ou seja, havia uma alegação de economicidade (artigo 70 da Constituição Federal) e vantajosidade (artigo 3º da Lei nº 8.666/93) que se revelava por demais limitada.

Não bastava abrir chance para licitante explicar preço. Havia de graves questões no contexto.

Note-se que, pelo princípio do julgamento objetivo, dos artigos 3º, 40, inciso VII ("critério para julgamento, com disposições claras e parâmetros objetivos"), 44 e 45, todos da Lei nº 8.666/93, nunca houve permissão legal para licitação com dois critérios de compor custos e formar preços, duas formas simultâneas de elaboração de proposta (preço de alguns licitantes e desconto para outros).

Como já alertado, isso tudo sempre foi inconstitucional, pela quebra da isonomia prevista no caput do artigo 37 da Constituição e da igualdade de tratamento entre licitantes, do inciso XXI, do mesmo artigo.

Sempre foi inadmissível a conduta de licitantes "fora da raia", afirmando que possuíam contratos em valores similares e fariam "qualquer negócio", contando com receitas de terceiros, algo subjetivo, quando a própria Lei nº 8.666/93, em seu artigo 44, § 1º, sempre estabeleceu: "§ 1º. É vedada a utilização de qualquer elemento, critério ou fator sigiloso, secreto, subjetivo ou reservado que possa ainda que indiretamente elidir o princípio da igualdade entre os licitantes".

Como em uma via de trânsito todos seguem a mesma direção, proibida a contramão, o ambiente concorrencial nas contratações públicas assim deveria ter sido por anos, mas não foi.

Agora cabe outro sério alerta: mesmo com o artigo 33, incisos I E II, da Lei n º 14.133/2021 (nova Lei de Licitações e Contratos), que enfatizou separadamente os critérios (menor preço/maior desconto), não poderá haver desconto em qualquer tipo de objeto.

Observe-se, por exemplo, o caso dos cartões de vale alimentação ou refeição, que desde o artigo 175 do Decreto nº 10.854/2021 estavam com a seguinte regra vigente:

"Art. 175. As pessoas jurídicas beneficiárias, no âmbito do contrato firmado com fornecedoras de alimentação ou facilitadora de aquisição de refeições ou gêneros alimentícios, não poderão exigir ou receber qualquer tipo de deságio ou imposição de descontos sobre o valor contratado, prazos de repasse que descaracterizem a natureza pré-paga dos valores a serem disponibilizados aos trabalhadores, ou outras verbas e benefícios diretos ou indiretos de qualquer natureza não vinculados diretamente à promoção de saúde e segurança alimentar do trabalhador" (grifo nosso).

E a Medida Provisória nº 1.108/2022, que restou convertida na Lei nº 14.442/2022, confirmou:

"Art. 3º O empregador, ao contratar pessoa jurídica para o fornecimento do auxílio-alimentação de que trata o art. 2º desta Lei, não poderá exigir ou receber:
I – qualquer tipo de deságio ou imposição de descontos sobre o valor contratado;" (grifos nossos).

Já no agenciamento de viagens, com o fim das comissões pelas companhias aéreas, em 2012, foi editada a Instrução Normativa nº 07/2012 — MPOG, que instituiu o modelo de contratação para passagens aéreas nacionais e internacionais no governo federal, para preservar o julgamento objetivo, nesses termos:

"Art. 2º (…) § 1º A licitação deverá utilizar o critério de julgamento menor preço, apurado pelo menor valor ofertado pela prestação do serviço de Agenciamento de Viagens".

Isso já impedia desconto em tarifa da companhia aérea, ou seja, desconto em receita contábil e tributária de outra empresa (não licitante).

Antes disso, a Instrução Normativa nº 1234/2012 — RFB, com relação à retenção de tributos na fonte, já determinava em seu artigo 12, § 1º, inciso II, alínea "b", que a agência de viagens deveria apresentar faturas separadas, de sua receita própria e da companhia aérea (transportadora), ou seja, ilícito prometer desconto em algo que é receita e de contabilidade de outra empresa (Darf com o código 6175 e no CNPJ de cada companhia aérea, logo, inadmissível a alteração de valor).

Por fim, também para preservar o princípio da isonomia, do artigo 37 da Constituição, bem como, o princípio do julgamento objetivo, adveio a Instrução Normativa nº 3/2015-MPOG:

"Art. 6º A remuneração total a ser paga à agência de turismo será apurada a partir do valor ofertado pela prestação do serviço de agenciamento de viagens, multiplicado pela quantidade de passagens emitidas, remarcadas ou canceladas e serviços correlatos.
(…)
Art. 7º — O instrumento convocatório deverá prever que a licitante classificada em primeiro lugar, na fase de lances, apresente planilha de custos que demonstre a compatibilidade entre os custos e as receitas estimados para a execução do serviço.
(…)

§ 5º. Eventuais incentivos, sob qualquer título, recebidos pelas agências de turismo das companhias aéreas, não poderão ser considerados para aferição da exequibilidade da proposta" (grifos nossos).

Assim, nem mesmo com permissão de desconto na Lei nº 14.133/2021 ele poderá ser aplicado em editais de todo tipo de objeto, o que impõe considerar a legislação específica, caso a caso, até pelo princípio da especialidade das normas.

Editais de licitação não podem ser motores de concorrência desleal, até porque, constituem infrações concorrenciais os atos, inclusive, de pessoas jurídicas de direito público (entes públicos) nos termos do artigo 36, caput e inciso I, da Lei nº 12.529/2011 (Sistema Brasileiro de Defesa Concorrencial), "sob qualquer forma manifestados", que possam produzir, entre outros efeitos, os seguintes: "limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa".

Enfim, não se pode adotar a Lei nº 14.133/2021 de forma isolada, inclusive, quanto a descontos.

Autores

  • é advogado especialista em licitações e contratos, pós-graduado em Direito Público pelo IDP e Compliance Regulatório pela Universidade da Pensilvânia e sócio do escritório Jonas Lima Sociedade de Advocacia.

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