Controvérsias Jurídicas

Lei de Migração não aceita extradição para condenado à prisão perpétua

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

27 de janeiro de 2023, 13h27

A extradição ocorre quando um Estado entrega a outro país um indivíduo que cometeu um crime punível segundo seu sistema jurídico, a fim de que lá seja processado ou cumpra a pena por esse ilícito. Doutrinariamente, a extradição é subdividida em duas espécies, sendo a ativa referente ao pedido feito pelo Estado brasileiro a país estrangeiro acerca de foragido do seu sistema jurídico. Por sua vez, a extradição passiva diz respeito ao pedido recebido pelo Estado brasileiro para extraditar foragido ao sistema jurídico do solicitante.

Spacca
Cite-se como exemplo o notório caso de Cesare Battisti, condenado em território italiano por quatro homicídios com sentença penal transitada em julgado. Militante político de extrema esquerda, depois de integrar por anos o Partido Comunista Italiano (PCI), aderiu à Lotta Continua (LC), movimento de esquerda extraparlamentar ativo entre 1973 e 1979. Também fez parte do Autonomia Operária e, finalmente, foi introduzido ao Proletários Armados pelo Comunismo.

De orientação marxista autonomista, o grupo foi responsabilizado pelos homicídios de Pierluigi Torregiani (fevereiro de 1979), Andrea Campagna (abril de 1979), Antonio Santoro (junho de 1978) e Lino Sabadin (junho de 1978), resultando na pena de prisão perpétua. Preso em 2007, no Brasil, em operação conjunta da Interpol com as polícias brasileira, italiana e francesa, Battisti solicitou o reconhecimento de sua condição de refugiado pelo Conare (Comitê Nacional de Refugiados) e a suspensão do prosseguimento do pedido de extradição feito pela Itália, nos termos do artigo 34 da Lei nº 9.474/97.

Ocorre que, em decisão administrativa, o Conare indeferiu o pedido de refúgio, o que motivou interposição de recurso junto ao ministro da Justiça, o qual, por sua vez, diante da atuação política do extraditando, reconheceu sua condição de refugiado, nos termos do artigo 1º, I, da Lei nº 9.474/97. Em decorrência dessa decisão, a defesa requereu a imediata liberação de Battisti e a extinção do processo de extradição. Embora o ministro da Justiça tivesse decidido pela não extradição, a questão ainda teria de ser analisada pelo STF, nos termos do artigo 77, VII, c.c. os §§ 2º e 3º da Lei nº 6.815/80, a quem compete decidir em última instância acerca da natureza política dos delitos cometidos pelo extraditando, até mesmo em respeito à separação dos poderes, pressuposto do Estado democrático de Direito.

 Submetido, então, ao exame do Supremo (Ext. 1.085), restava definir a natureza jurídica da decisão do ministro da Justiça e o grau de vinculação da Corte à deliberação administrativa de órgão. Sobre a questão, afirmou o ministro Gilmar Mendes:

"É dizer que, para fins de aplicação do artigo 33 da Lei nº 9.474/97, a decisão administrativa do Conare ou do Ministério da Justiça, pela concessão de refúgio, não pode obstar, de modo absoluto, todo e qualquer pedido de extradição apresentado à Suprema Corte."[1]

Em sessão realizada em 18 de novembro de 2009, decidiu o Supremo Tribunal Federal pela ilegalidade da concessão de status de refugiado político ao extraditando, tendo em vista que os crimes por ele cometidos em território italiano eram de natureza comum, em nada se relacionando com sua atuação política. Ademais, em observância à Lei nº 6.815/80 e ao tratado bilateral firmado entre Brasil e Itália, a Corte deferiu o pedido extradicional.

Ao deferir o pedido italiano, a Corte comunicou aos órgãos competentes do Poder Executivo para dar prosseguimento à entrega do extraditando ao país solicitante, nos termos do artigo 86 da Lei n° 6.815/80. Nota-se, portanto, que a natureza jurídica da decisão emanada do STF é declaratória, não deixando margem para discussão da conveniência da extradição. Ao receber a comunicação da decisão do Poder Judiciário, restaria ao Ministério da Justiça proceder com os trâmites legais da extradição, tendo em vista o dever do Brasil de entregar o extraditando e o direito da Itália em recebê-lo.

No entanto, mesmo diante da determinação do STF, o então presidente da República, em seu último dia de governo, concedeu a condição de refugiado político ao extraditando, renovando os argumentos de que o posicionamento político de Battisti foi determinante para o cometimento dos homicídios. O STF, novamente instado a se manifestar, decidiu por maioria de votos, que a última palavra sobre a entrega ou não do italiano caberia ao presidente da República, sob alegação de que a negativa consistiria em um ato de soberania nacional sem possibilidade de revisão pelo Judiciário (entendimento dos ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Ayres Brito e Marco Aurélio).

Contrariamente, os ministros Gilmar Mentes, Ellen Gracie e Cezar Peluso votaram no sentido da cassação da decisão do Poder Executivo, determinando o envio do extraditando para a Itália. Reforçando a natureza jurídica declaratória da decisão do STF, Gilmar explicitou que o Estado brasileiro, representado na pessoa do presidente da República, seria obrigado a cumprir a decisão anterior de extradição, sob pena de caracterização de verdadeira ação rescisória ante a decisão do Supremo.

"A decisão do Supremo, nesses casos, é de natureza preponderantemente declaratória, atestando certeza jurídica quanto à configuração dos requisitos para o cumprimento do tratado ou do pacto de reciprocidade pelo Brasil. Como toda decisão de conteúdo declaratório, estabelece um preceito, uma regra de conduta, consistente no dever de extraditar, pelo Brasil, e no direito de obter a extradição, pelo Estado requerente, em cumprimento ao pacto internacional. Não há na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entendimento que consagre ao Chefe do Poder Executivo irrestrita discricionariedade na execução da extradição já concedida[2]."

Desta forma, embora tivesse declarado a ilegalidade da decisão do ministro da Justiça pela concessão de asilo político a Battisti, o STF acabou concordando que a palavra final ficasse com o presidente da República, frustrando-se assim, o pedido de extradição. Nossa posição coincide com a do entendimento divergente, tendo em vista que a existência de tratado bilateral de extradição gera o dever de cumprimento das obrigações pactuadas em âmbito internacional por parte do Poder Executivo. Ainda que exista certa margem de discricionariedade, sua dimensão não pode ser absoluta, posto que seu alcance será sempre limitado pelo ordenamento jurídico interno e pelo tratado internacional.

Com efeito, "apesar de reconhecer a discricionariedade do presidente da República quanto à execução da decisão que deferiu o pedido extradicional, esta Corte deixou consignado que esta discricionariedade está delimitada pelos termos do tratado celebrado com a República da Itália. Tem o presidente da República, portanto, a obrigação de agir nos termos do Tratado celebrado com o Estado requerente".[3]

A discricionariedade absoluta confronta com o ordenamento legal e constitucional, uma vez que o STF é o foro competente para a decisão final. Entendimento diverso implicaria na perda de efetividade das decisões do Judiciário e permitiria ao agente político o emprego dos mais variados pretextos para justificar o descumprimento de uma ordem judicial.

O cenário de insegurança jurídica permaneceu e, em 12 de janeiro de 2019, o então presidente Jair Bolsonaro revogou a concessão do asilo político e acolheu o pedido de extradição de Césare Battisti, o qual finalmente foi preso na cidade de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, quando já tentava empreender nova fuga. Imensurável, também, os prejuízos causados nas relações diplomáticas dos países.

Se o debate tivesse assumido contornos mais jurídicos do que ideológicos, o pedido de extradição poderia ter enfrentado uma dificuldade inesperada, não por se tratar de crime político, o que não parece ser o caso, mas pela ameaça de imposição de prisão perpétua. Isso porque a Lei de Migração contempla esse tipo de penalidade como uma das situações de não acolhimento do pedido de extradição.

Nossa jurisprudência já assentou que "o Brasil deve negar a extradição se houver possibilidade concreta de o Estado requerente condenar o extraditando a prisão perpétua ou a pena de morte, sanções que são expressamente proibidas pela Constituição brasileira (artigo 5º, XLVII). Além disso, é possível negar a extradição se houver uma excessiva abertura dos tipos penais no Estado requerente, o que viola o princípio da legalidade (CF, artigo 5º, XXXIX). As hipóteses previstas na lei nas quais a extradição é proibida podem ser expandidas pela jurisprudência para atender ao respeito a outros direitos fundamentais do extraditando".[4]

Embora a extradição seja um ato de soberania interna, sempre caberá ao Poder Judiciário decidir se o pedido reúne condições à luz da nossa Constituição, dos tratados internacionais e do ordenamento infraconstitucional. Se ao presidente da República compete decidir sobre o pedido de extradição, cabe ao Poder Judiciário a última palavra sobre sua conformidade ao sistema jurídico interno e aos tratados internacionais.


[1] MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 14ª edição, São Paulo. Ed. Saraiva Educação, 2019, p. 786.

[2] MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 14ª edição, São Paulo. Ed. Saraiva Educação, 2019, p. 786.

[3] STF. Plenário. Reclamação 11.243. Rel. Min. Luiz Fux, voto Min. Gilmar Mendes, j. 08/06/2011, p. 06.

[4] STF. 2ª Turma. Ext. 1428/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 07/05/2019.

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

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