Opinião

Estelionato sentimental: aplicativos de relacionamento facilitam prática de golpe

Autor

  • Cida Silva

    é criminalista sócia do escritório Campos & Antonioli Advogados Associados atuante no segmento de segurança bancária.

27 de janeiro de 2023, 18h23

Tramita no Senado projeto de lei, já aprovado pela Câmara dos Deputados, que cria um tipo penal específico para golpes que utilizam relacionamento afetivo para tirar vantagem da vítima, seja por meio da extorsão, histórias fantasiosas que ludibriam o alvo ou induzir o outro a lhe ceder recursos mediante história fictícia. No mundo real ou virtual, trata-se do crime de "estelionato sentimental", que tem como principal agravante casos em que a vítima é um idoso, circunstância em que a pena é triplicada.

O aperto na legislação tem endereço certo: os golpes praticados por meio de aplicativos de relacionamento, que surfaram a onda do isolamento social provocado pela pandemia de Covid-19 e se tornaram, muitas vezes, a único meio de contato entre as pessoas: o espaço virtual. Eis que a nuvem de relações estabelecidas se transformou em oportunidade para criminosos, cujas vítimas preferenciais são mulheres, com boas condições financeiras, em especial idosas. Conforme dados levantados pela Hibou Pesquisas, tabulados em junho de 2022 para o estudo Golpe Amororo Digital, de cada dez mulheres, quatro já caíram em algum golpe praticado por meio de aplicativo de relacionamento. Em meio a likes e matches, em busca do amor, ao final, encontram um bandido.

Era previsível que a rede mundial servisse como meio para permite aos criminosos entrar na vida de mulheres que buscam amor e, nesse intuito, abrem sua intimidade, dados bancários e até enviam recursos para falsários.

Controvérsia jurídica
Há uma controvérsia jurídica sobre a necessidade de um tipo específico para golpes que têm como ponto de partida uma relação amorosa entre vítima e algoz. A corrente contrária à especificidade entende que o tipo estelionato, do artigo 171 do Código Penal, já abrange também práticas criminosas engendradas por meio de um falso relacionamento sentimental, alimentado estrategicamente para tirar vantagem das vítimas, em sua maioria mulheres

Até então, o "Estelionato Sentimental" era a prática criminosa enquadrada no artigo 171 do Código Penal  ato de "obter para si ou para outrem vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício ardil, ou qualquer outro meio fraudulento". Com a nova medida, é possível que a penalização, de acordo com os danos financeiros, faixa etária e demais critérios, iniba a ação dos golpistas.

De acordo com a pesquisa da Hibou, "Golpe Amoroso Digital", as três práticas mais comuns relatadas pelas mulheres entrevistadas estão relacionadas às finanças. Em 53% dos casos, o golpista pediu dinheiro emprestado; em 25% solicitou ajuda para pagar alguma conta. Entre as vítimas de perdas financeiras causadas pelo golpe, 12% afirmam que perderam mais de R$ 5.000; 20%, entre R$ 500 e R$ 2.000; 10% até R$ 500; e 3%, de R$ 2.000 a R$ 5.000.

Surfando a onda
Os aplicativos de relacionamento surfaram a onda da pandemia de Covid-19 e, na maioria dos casos, se transformaram em alternativa mais viável para conhecer um novo parceiro (a). Ainda que seja um falso "estar próximo", as pessoas se acomodaram ao contato via web e levaram essa prática para sua vida amorosa. Com maior número de usuários, era de se esperar que também aumentassem os golpes praticados nessa nuvem de relações estabelecidas pelos apps de relacionamento.

Ainda que haja mecanismos de proteção, as plataformas não conseguem garantir 100% de proteção aos seus usuários de boa-fé que transitam e se relacionam por essa via. Crimes anteriormente cometidos presencialmente, a partir de uma abordagem pessoal em via pública, migraram para os meios virtuais.

Golpes via app
Seguem as principais modalidades dos crimes praticados via app de relacionamento:

Golpe do amor ("estelionato sentimental"): Começa por meio de um relacionamento online. Geralmente o golpista finge ser pessoa que vive no exterior, bem-sucedida financeiramente e que busca um relacionamento sério. Depois de ganhar a confiança da vítima, diz que quer viajar para conhecê-la pessoalmente. Pede depósito em dinheiro, número do cartão e crédito para pagar a passagem, sob a promessa de reembolso quando se encontrarem. Justifica o pedido com a história de que suas contas foram bloqueadas momentaneamente por alguma discussão judicial. A maioria das vítimas são mulheres, com boa situação financeira.

Catfishing: Um dos mais conhecidos no mundo virtual. Ocorre a partir da criação de uma identidade falsa no mundo virtual, com o objetivo de enganar outros usuários com quem o golpista se relaciona emocionalmente. Catfishing é a junção do nome em inglês de dois animais, gato (cat) e peixe (fish). Estabelecido o vínculo sentimental, o golpista usa a relação de confiança que construiu para enganar, obter vantagem, principalmente financeira, a partir de perfis fake. Geralmente se utilizam de imagens de pessoas bonitas e atraentes, viúvas ou "divorciadas e bem resolvidas emocionalmente". 

Esse tipo de crime, caracterizado como extorsão, está previsto no artigo 158 do Código Penal crime de extorsão. Dependendo de cada caso em concreto, existe a possibilidade de outros crimes concorrerem simultaneamente. No Brasil, o catfishing não é um crime por si só. Entretanto, dependendo do caso, a prática pode se enquadrar em crimes como estelionato, falsidade ideológica ou extorsão.

Sextorsão: É a ameaça de divulgar imagens íntimas da vítima, obrigando-a a fazer algo contra sua vontade, seja por vingança ou extorsão financeira. Os golpistas ganham a confiança da vítima, fazendo-a acreditar que existe um relacionamento virtual, pedem fotos e vídeos íntimas e, posteriormente, ameaçam expor as imagens em redes sociais.  Em que pese existir a semelhança com outro ilícito penal, o crime de sextorsão se destaca pela finalidade específica de obter a vantagem econômica, configurando chantagem para sua obtenção. Independentemente da classificação e ocorrência nos tipos penais descritos no Código Penal e na Legislação extravagante, envolvem sempre ameaça, chantagem, exposição da intimidade da vítima e vontade na obtenção de vantagens, incorrendo nos seguintes crimes: Ameaça (artigo 147), Extorsão (artigo 158) Estelionato (artigo 171), todos do Código Penal.

O novo PL, além de contemplar a prática específica do estelionato emocional com respectivas agravantes, prevê também situações nas quais deve haver o endurecimento da pena para o crime de estelionato. Pelo texto, se o crime for cometido contra uma pessoa idosa ou vulnerável, aplica-se a pena em triplo.

A proposta, que aguarda apreciação no Senado, inclui no rol de crimes de estelionato o ato de "viabilizar a utilização de contas bancárias por terceiros para o cometimento de fraude" e fraude eletrônica, neste último caso, O texto prevê como agravante quando o crime for cometido por duplicação de dispositivo eletrônico ou aplicativo de internet.

Assim, o delito previsto no artigo 171 (Estelionato) do Código Penal, se aprovado sem aletarações no Senao, terá a seguinte redação:

"Artigo 2º O artigo 171 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de
1940, Código Penal, passa a vigorar acrescido do seguinte inciso VII:

'Artigo 171 – ………………………………………………………………………….
…………………………………………………………………………………………
§2º…………………………………………………………………………………..
…………………………………………………………………………………………
Estelionato sentimental
VII – induz a vítima, com a promessa de constituição de relação
afetiva, a entregar bens ou valores para si ou para outrem.
……………………………………………………………………………….
Estelionato contra idoso ou pessoa que, por enfermidade
ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento
para a prática do ato.

(………..)
§4º Aplica-se a pena em dobro se o crime for cometido contra
idoso ou pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental,
não tem o necessário discernimento para a prática do ato."

Golpe do encontro (mais violento): Ultimamente esse tipo de golpe tem se mostrado cada vez mais violento e grave. A maioria das vítimas são homens. Nessa modalidade de golpe, a vítima conhece alguém por aplicativo de relacionamento e marca um encontro presencial. Quando a vítima chega ao local combinado, é surpreendida por criminosos. Tem seus bens roubados e até pode ser sequestrada pelos bandidos. Em meio ao sequestro relâmpago, é obrigado a fornecer senhas bancárias e realizar transferências via Pix e até pedir empréstimo pessoal. Em resumo: todas as operações financeiras realizáveis por meio do celular são feitas em benefício dos criminosos, mediante coação violenta da vítima.

Há notícias veiculadas pela mídia de várias situações envolvendo o "golpe do encontro", com desdobramentos mais graves, quando consumado o delito, incorrendo em vários outros crimes concomitantemente. Existem casos em que houve a morte das vítimas em decorrência do falso encontro.

Os crimes nessa modalidade geralmente se enquadram nos artigos: 148 (sequestro e cárcere privado), 159 (extorsão mediante sequestro), 157 (roubo), dentre outros crimes previstos no Código Penal.

Seria necessário que esses apps criassem ferramentas mais eficientes para confirmar a veracidade dos perfis que se cadastram, a fim de proteger os usuários que estão naquele espaço realmente com o propósito de encontrar um parceiro.

A melhor defesa é a precaução. Portanto, desconfie sem moderação!

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