Opinião

Sinalização ou julgamento-alerta para eventual superação de precedentes

Autor

  • Bruno Augusto Sampaio Fuga

    é advogado professor doutor em Direito Processual Civil pela PUC-SP (2020) pós-doutorando pela USP membro titular efetivo da Academia de Letras de Londrina (PR) mestre em Direito pela UEL (linha de Processo Civil) pós-graduado em Processo Civil (2009) pós-graduado em Filosofia Jurídica e Política pela UEL (2011) coordenador da Comissão de Processo Constitucional da OAB Londrina membro do IBPD e IAP conselheiro da OAB Londrina e editor-chefe da Editora Thoth.

25 de janeiro de 2023, 15h24

Na sinalização, o tribunal respeita o precedente julgando um determinado caso, porém sinaliza que o precedente pode ser revogado a qualquer momento [1]. Na sinalização não ocorre um overruling (superação), mas é necessário comunicar e orientar jurisdicionados a respeito de que o precedente poderá ser revogado para não prejudicar negócios ou afazeres  é então uma possível preparação para o overruling [2].

Tem essa técnica caráter preventivo para antecipar possível revisão do posicionamento [3] e é útil para estabelecer um diálogo democrático no processo de superação de jurisprudência [4].

A sinalização tem sentido, inclusive, pois as mudanças ocorrem lentamente, tendo em vista que a sociedade é um organismo vivo e não há alterações bruscas. Nada justifica que alterações ocorram da noite para o dia, em situações de normal desenvolvimento [5] e, inclusive, onde não estejam preparadas para a mudança de entendimento [6].

A técnica de sinalização tem por objeto resguardar a confiança justificada depositada no precedente, estando essa técnica diretamente ligada com o overruling. Tem ela a finalidade de comunicar aos jurisdicionados e aos advogados que o precedente está em vias de ser revogado [7], mas não é uma técnica obrigatória para os tribunais [8].

Sobre o tema, no Brasil, o Enunciado 320 do FPCC pontua que: "Os tribunais poderão sinalizar aos jurisdicionados sobre a possibilidade de mudança de entendimento da corte, com a eventual superação ou a criação de exceções ao precedente para casos futuros".

Concordamos com referido posicionamento, afirmando também que além de ser permitido, deve ser incentivado e ao afinal explicaremos.

O assunto guarda respaldo, inclusive, no artigo 21 e 23 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Destacamos também que a decisão de alerta, ou technique of signaling, deve ser realizada com a devida publicidade, por meios eletrônicos como a internet [9].

O signaling deverá também ser realizado pela corte com competência para superar o precedente e "é possível de que seja realizado de forma incidental, ou seja, em obiter dictum" [10], embora não desejável, pois indicando eventual sinalização, essa fundamentação deve fazer parte da ratio e com ampla publicidade.

No Brasil, o pleno do STF ao se voltar sobre o tema, com relatoria do Min. Sydney Sanches, no HC 70.514, "rejeitou a arguição de inconstitucionalidade do §5º do artigo 5º da lei nº 1.060, de 05.02.50, com a redação da lei nº 7.871, de 08.11.89, no que concerne ao prazo em dobro fixado para recurso do defensor público, por entendê-la ainda constitucional". Essa técnica ficou conhecida como a declaração de "lei ainda constitucional", em "processo de inconstitucionalização" [11] ou "norma em trânsito para a inconstitucionalidade".

Outro exemplo tem ligação com o texto do artigo 68 do Código de Processo Penal [12], pois no RE 147.776/SP decidiu o STF ser constitucional a disposição, pelo menos até o momento em que as defensorias públicas estivessem organizadas nos termos do artigo 134 da CF.

O "processo de inconstitucionalização" ocorre quando a corte "deixa no ar a impressão de que algo não estava bem". Na a ADI 1.232 o Tribunal decidiu que o critério definido pelo §3º do artigo 20 da LOAS não padecia, por si só, de qualquer inconstitucionalidade. No julgamento da Rcl 4.374, considerou-se que a decisão do Tribunal na ADI 1.232 fora proferida no ano de 1998, poucos anos após a edição da LOAS (1993), em contexto econômico e social específico. O Supremo Tribunal Federal constatou, portanto, que diversos fatores estavam a indicar que, ao longo dos vários anos, desde a sua promulgação, o §3º do artigo 20 da LOAS passou por um processo de inconstitucionalização. No momento do julgamento da Rcl. 4.374, em 2013, podemos verificar também a inconstitucionalidade (superveniente) do próprio critério definido pelo §3º do artigo 20 da LOAS (mudanças fáticas e jurídicas). A Rcl 4.374 foi julgada improcedente e declarada a inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do §3º do artigo 20 da LOAS (revelou-se, desse modo, incompatível com a Constituição a utilização de renda familiar mensal per capita inferior a 1/4 do salário mínimo, como critério para a concessão de benefício assistencial a idosos ou deficientes). No mesmo dia, o Supremo Tribunal Federal julgou, em conjunto, os RE 567.985 e 580.963 e também declarou a inconstitucionalidade parcial do §3º do artigo 20 da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS  Lei nº 8.742/93). O julgamento da ADI 1.232 é representativo daqueles momentos em que uma Corte Constitucional decide impregnada do sentimento de que em algum momento sua decisão certamente será revista [13].

É esse um exemplo de inconstitucionalidade progressiva ou processo de inconstitucionalização, não é uma sinalização de inconstitucionalidade, ainda que feita em relação a algum momento no futuro [14].

Na Itália a Corte Constitucional utiliza técnica semelhante denominada warning decicions. Nela a inconstitucionalidade não é reconhecida, mas a decisão envia uma mensagem ao Parlamento, justificando que o texto normativo é aceitável apenas de forma temporária ou de que um determinado texto normativo tem sua constitucionalidade dependente da realização de certas condições [15].

Propondo um "novo conceito de sinalização", Ravi Peixoto afirma que nesta hipótese seria necessário aos jurisdicionados terem o conhecimento de quais condições fáticas devem acontecer para superação da ratio decidendi. Para ele, seria necessário não apenas indicar a perda de confiabilidade do precedente, mas também indicar em que momento e se haverá a sua superação [16].

De acordo com Cabral, a técnica do "julgamento-alerta" é diferente do signaling, pois neste a Corte reconhece que o julgamento estaria errado e deve ser superado, enquanto que no julgamento-alerta não há essa certeza [17]. Afirmamos também que em ambos os casos as Cortes inferiores não poderão aplicar institutos jurídicos para os quais a existência de um entendimento consolidado na jurisprudência seja pressuposto [18].

Entendemos, porém, que tanto o julgamento de "julgamento-alerta" ou technique of signaling são semelhantes. A sinalização aponta uma eventual necessidade de superação, sem, contudo, afirmar ser essa sinalização segura de revogação, se total ou parcial e também não se manifesta sobre eventual modulação. Assim, não se entende necessária a distinção destes institutos, pois ambos alertam sobre a eventual (diga-se eventual) necessidade de superação do entendimento firmado em "precedente".

No caso do sistema brasileiro, pode (e sendo necessário deve) haver a sinalização, mas o overruling (total ou parcial) deve respeitar o disposto no artigo 927 do Código de Processo Civil de 2015. A sinalização ou julgamento-alerta contribuirá para a segurança jurídica e poderá afetar, inclusive, as considerações sobre eventual modulação dos efeitos da decisão em overruling.  

Destacamos que a technique of signaling difere da prospective overruling, pois neste último há uma efetiva superação. A technique of signaling não é sinônimo também de ressalva de entendimento. A sinalização pode ser realizada apenas pela corte competência para a superação do precedente, enquanto a ressalva de entendimento pode ser realizada por qualquer julgador.

Neste sentido também a técnica de sinalização se difere do transformation e distinção inconsistente (distinguished inconsistente). Nestes casos há a aceitação de fundamento contrário à preservação do precedente [19] sem, contudo, comunicar essa decisão de forma expressa aos jurisdicionais.

Por fim, o assunto tem relação com os temas rescisória e impugnação (CPC, artigo 525, §12) [20] na hipótese de rescisória por violação de norma jurídica (artigo 966, V). Eventual trânsito em julgado com decisão violando norma jurídica, cuja sinalização já tinha destaque em julgamento, poderia reforçar a tese de cabimento de rescisória. 

 


[1] Ver sobre o tema também em FUGA, Bruno Augusto Sampaio. Superação de precedentes: da necessária via processual e o uso da reclamação para superar e interpretar precedentes. Editora Thoth, 2020.

[2]MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios.  5. ed.  São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 240

[3] PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. 3 ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2018, p. 258.

[4] CABRAL, Antonio do Passo. Estabilidade e alteração de jurisprudência consolidada: proteção da confiança e a técnica do julgamento-alerta. In: O papel da jurisprudência no STJ / coordenação Isabel Galloti…[et al.] 1 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 51. Sobre o tema: "A formação dos precedentes precisa ser paulatina e ladeada pelas possibilidades argumentativas fornecidas pelas várias experiências processuais. Há de se preservar a participação, tanto dos advogados e das partes, maiores interessados em determinado resultado, como dos juízes e tribunais. Só assim é possível a formação democrática do precedente, legitimando a atuação dos tribunais superiores". MACÊDO, Lucas Buril de. Reclamação constitucional fundada em precedentes obrigatórios no CPC/2015. In: Novo CPC doutrina selecionada, v. 6: processo nos tribunais e meios de impugnação às decisões judiciais. Coordenador geral, Fredie Didier Jr; organizadores, Lucas Buril de Macêdo, Ravi Peixoto, Alexandre Freire, Salvador: Juspodivm, 2016, p. 288.

[5] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso Especial, recurso extraordinário e a nova função dos tribunais superiores no direito brasileiro: (de acordo com o CPC de 2015 e a Lei 13.256/16). Teresa Arruda Alvim Wambier, Bruno Dantas. 3. ed rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 127.

[6] EISENBERG, Melvim Aron. The nature of the common law. Harvard University Press. Cambridge, Massachusetts. London, England. 1991, p. 122.

[7] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios.  5. ed.  São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 242; MARQUES, Leonardo Albuquerque. Elementos para uma otimização do desempenho institucional do STJ à luz do direito e economia. In: O papel da jurisprudência no STJ / coordenação Isabel Galloti…[et al.] 1 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 211; MACÊDO, Lucas Buril de. 5. Transformação, sinalização e superação antecipada e sua pertinência ao sistema de precedentes brasileiro. Revista de Processo Comparado. Vol. 3 (junho-nov, 2016).

[8] CABRAL, Antonio do Passo. A técnica do julgamento-alerta na mudança de jurisprudência consolidada. Revista de Processo, Repro. Ano 38, 221, Julho 2013, p. 34.

[9] CABRAL, Antonio do Passo. A técnica do julgamento-alerta na mudança de jurisprudência consolidada. Revista de Processo Repro. Ano 38, 221, Julho 2013, p. 41.

[10] TRIGO, Alberto Lucas Albuquerque da Costa. A sinalização na superação do precedente. Signaling in the overruling of a precedent. Revista de Processo. Ano 43, vol 276, fevereiro/2018, p. 419.

[11] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco.  13. ed. rev. atual.  São Paulo: Saraiva, 2017.

PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. 3 ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2018, p. 262; citada também por BARROSO, Luís Roberto; MELLO, Patrícia Perrone Campo. O papel criativo dos tribunais  técnicas de decisão em controle de constitucionalidade. Revista da AJURIS – Porto Alegre, v. 46, nº 146, Junho, 2019, p. 309.

Sobre o tema: "se o que fundamenta a técnica da sinalização é, especialmente, a proteção da confiança justificada depositada no precedente que está a merecer revogação". SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de direito constitucional / Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero.  7. ed.  São Paulo: Saraiva Educação, 2018 (e-book).

[12] Artigo 68. Quando o titular do direito à reparação do dano for pobre (artigo 32, §§1o e 2o), a execução da sentença condenatória (artigo 63) ou a ação civil (artigo 64) será promovida, a seu requerimento, pelo Ministério Público.

[13] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco.  13. ed. rev. atual.  São Paulo: Saraiva, 2017.

[14] TRIGO, Alberto Lucas Albuquerque da Costa. A sinalização na superação do precedente. Signaling in the overruling of a precedent. Revista de Processo. Ano 43, vol 276, fevereiro/2018, p. 412.

[15] PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. 3 ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2018, p. 262.

[16] PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. 3 ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2018, p. 264.

[17] CABRAL, Antonio do Passo. A técnica do julgamento-alerta na mudança de jurisprudência consolidada. Revista de Processo Repro. Ano 38, 221, Julho 2013, p. 39.

[18] Neste sentido, ao comentar sobre o "julgamento-alerta", CABRAL, Antonio do Passo. A técnica do julgamento-alerta na mudança de jurisprudência consolidada. Revista de Processo Repro. Ano 38, 221, Julho 2013, p. 36.

[19] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios.  5. ed.  São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 93

[20] Ver sobre o tema em FUGA, Bruno Augusto Sampaio. Superação de precedentes: da necessária via processual e o uso da reclamação para superar e interpretar precedentes. Editora Thoth, 2020.

Autores

  • é advogado, professor, doutor em Direito Processual Civil pela PUC/SP, pós-doutorando pela USP, membro titular efetivo da Academia de Letras de Londrina, mestre em Direito pela UEL (linha de Processo Civil), pós-graduado em Processo Civil, pós-graduado em Filosofia Jurídica e Política pela UEL, coordenador e fundador da Comissão de Processo Civil da OAB/Londrina e vice coordenador da comissão.

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