A crítica à expressão "fato gerador" em Ataliba e Carvalho
22 de janeiro de 2023, 13h17
São várias as denominações sugeridas para o elemento "antecedente ou suposto das normas que prescrevem as prestações de índole fiscal" (CARVALHO, 2017, p. 268). Dentre essas formas, encontra-se a expressão "fato gerador", cunhada pelo jurista francês Gaston Jèze, em famoso artigo na Revista de Direito Administrativo, publicado em 1945.
Tal terminologia foi amplamente difundida na doutrina brasileira de Direito Tributário, porém não sem críticas severas à expressão. O reconhecimento da polêmica em torno dessa expressão é encontrado em diversos autores. Veja-se Regina Helena Costa, que afirma ser "expressão ensejadora de divergências" (COSTA, 2018, p. 210), posto que a mesma expressão seria utilizada para designar realidades distinta; ou Isabela, Ricardo e Fernando Bonfá de Jesus que separam um tópico próprio em sua obra para discutir a expressão "fato gerador" (BONFÁ DE JESUS et al., 2016, p. 128).O presente trabalho investiga a forma pela qual dois dos maiores tributaristas brasileiros criticam a noção de Gaston Jèze: Geraldo Ataliba e Paulo de Barros Carvalho. Porém, antes de esclarecer a crítica, o presente trabalho pretende esclarecer aquilo que Gaston Jèze se referia com a expressão "fato gerador" e, antes ainda, como o referente do "fato gerador" se insere no conceito de Tributo, tanto de Geraldo Ataliba, quando de Paulo de Barros Carvalho. Para fazê-lo, o texto se articula em três momentos: 1. A conceituação de Tributo para Geraldo Ataliba e Paulo de Barros Carvalho e a importância do "fato gerador"; 2. Gaston Jèze e o "Fato Gerador"; 3. As críticas formuladas por Geraldo Ataliba e por Paulo de Barros Carvalho. Pretendemos, por fim, avaliar se as soluções propostas pelos autores cumprem o papel de melhor esclarecimento da natureza jurídica do fenômeno observado.
A conceituação de Tributo para Geraldo Ataliba e Paulo de Barros Carvalho e a importância do "Fato Gerador"
O objeto principal do tributo é "o comportamento consistente em levar dinheiro aos cofres públicos" (ATALIBA, 2010, p. 23). Isto porque, sem dúvidas alguma, ao analisarmos a essência da norma jurídica tributária, ao vasculhamos o seu mais íntimo recôndito, lá encontramos um mandamento principal, qual seja, a ordem para que seja entregue ao Estado (ou quem lhe faça às vezes) uma determinada soma em dinheiro.
Porém, dentro da sistemática jurídico-tributária, o conceito de tributo possui caráter privativo, próprio, "tributo, para o direito, é coisa diversa de tributo como conceito para outras áreas" (ATALIBA, 2010, p. 25). Ora, por essa razão, além de ser privativo juridicamente tal conceito, a norma jurídico-tributária também possui uma estrutura absolutamente igualitária às demais normas jurídicas existentes. Assim como as demais normas, contém uma hipótese e um comando, sendo o comando unicamente aplicado quando associado à hipótese.
Uma investigação dentre as obras de direito positivo, em lições de doutrina e jurisprudência, levou Paulo de Barros Carvalho (CARVALHO, 2018, p. 51 e ss.) a verificar que são usualmente apontados seis acepções diversas do vocábulo tributo: a) tributo como quantia em dinheiro; b) "tributo" como prestação correspondente ao dever jurídico do sujeito passivo; c) "tributo" como direito subjetivo de que é titular o sujeito ativo; d) "tributo" como sinônimo de relação jurídica tributária; e) "tributo" como sinônimo de relação jurídica tributária; e) "tributo" como norma jurídica tributária; f) "tributo" como norma, fato e relação jurídica.
Geraldo Ataliba é um adepto da conceituação de "tributo" como relação jurídico tributária. Essa conceituação não parte do "conteúdo patrimonial do objeto", nem do dever jurídico do sujeito passivo da obrigação tributária ou do direito subjetivo do sujeito ativo de exigir o tributo. Ela repousa na própria relação jurídica entre os elementos, na obrigação, portanto, que incide sobre toda a relação (CARVALHO, 2018, p. 53). Eis a definição proposta por Geraldo Ataliba:
Juridicamente define-se tributo como obrigação jurídica pecuniária, ex lege, que se não constitui em sanção de ato ilícito, cujo sujeito ativo é uma pessoa pública (ou delegado por lei desta), e cujo sujeito passivo é alguém nessa situação posto pela vontade da lei, obedecido os desígnios constitucionais (explícitos ou implícitos) (ATALIBA, 2010, p. 34)
Ora, a norma jurídico-tributária é uma norma jurídica, mas que institui uma obrigação jurídica pecuniária decorrente da lei, sem que constitua-se essa sanção em ato ilícito. A obrigação jurídica vincula um sujeito ativo que pode exigir o tributo e um sujeito passivo, que deve prestá-lo. Porém, apenas isso não basta. Afinal, as normas jurídicas em regra contém uma hipótese e um comando, isto é, "Se algo x, então y".
No caso, segundo Ataliba,
"essa relação jurídica (…) surge com a realização in concretu, num determinado momento, de um fato, previsto em lei anterior e que dela (lei) recebeu a força jurídica para determinar o nascimento de uma obrigação de pagar um tributo" (ATALIBA, 2010, p. 53).
E eis aqui o nosso problema, pois a doutrina tradicional brasileira tende a denominar como "fato gerador" tanto a "figura conceptual e hipotética – consistente no enunciado descritivo do fato, contido na lei – como o próprio fato concreto(…)" (ATALIBA, 2010, p. 54).
Por que isso ocorre? De onde provêm tal expressão? Para responder a isso, precisamos retornar a 1945.
Gaston Jèze e o "fato gerando"
Em 1945, na prestigiosa Revista de Direito Administrativo, foi publicado o artigo O Fato Gerador do Impôsto: contribuição à teoria do crédito do impôsto, da pena de Gaston Jèze, importante jurista francês vinculado à "École du Service Public" (KATO, 2015, p; 592).
Algumas palavras sobre a trajetória de Gaston Jèze podem ser elucidadoras. O autor fez seus estudos jurídicos em Toulouse, onde obteve aos vinte e três anos o título de doutor após apresentar uma tese sobre o direito romano e o direito civil. Porém, essa formação civilista não perdurou muito tempo em sua carreira. Logo migrou para os estudos do direito público. Em 1898, com seu colega Max Boucard, publicou aquele que seria o primeiro trabalho sobre direito financeiro na França (área até então vista como um apêndice à economia política). Em 1901, tornou-se professor da Faculdade de Direito de Lille, onde obteve a titularidade em 1905.
Sua carreira efetivamente decolou a partir de 1903. Ele criará e publicará constantemente trabalhos em Direito Financeiro, mas especialmente será, com Maurice Hauriou, um daqueles que defenderá de maneira mais enfática a necessidade dos comentários jurisprudenciais pelos juristas. Quando ele se torna diretor da Revue de droit public et de la Science Politique, nela passará a escrever os seus comentários (KATO, 2015, p. 594). Em 1908, Gaston Jèze se tornará, ademais, diretor da Revue pratique du contentieux et des impôts, e em 1909 ele se tornará professor da Faculdade de Direito de Paris.
A principal contribuição de Jèze ao Direito, apesar de ter sido um importante membro da "École du Service Public", pode ser vinculada ao seu método de trabalho jurídico. Isto é, como diria Molinier, "é antes de tudo pelo método de estudo dos fenômenos financeiros que ele formulou e utilizou que Gaston Jèze fez [uma] obra inovadora" (MOLINIER apud KATO, 2015, p. 597, tradução nossa).
Qual é esse método? Basicamente, a necessidade de que os juristas observassem o direito como um fenômeno social, isso é, sem uma distinção entre normas e fatos sociais, o que produz uma ideia de "osmose estreita entre o direito e os fatos sociais que eram já sublinhados por Duguit e que Jèze retoma inteiramente por sua conta" (BEAUD apud KATO, 2015, p. 598, tradução nossa).
Esse método fica bastante claro no texto sobre "o fato gerador do impôsto". Esse texto foi inicialmente publicado em 1937 na Revue de Droit Public et de la Science Politique. Nele, por óbvio, a discussão é historicamente situada e pretende discutir com o contexto francês. Para nossos propósitos, basta a discussão inicial do artigo.
Jèze, no alvorecer do texto, diz que um elemento essencial para o debate sobre a técnica do crédito de imposto é o "fato gerador", uma expressão que constantemente aparecia à época nos estudos doutrinários e nas decisões dos tribunais. Porém, o que é ele? É "o fato ou o conjunto de fatos que permitem aos agentes do fisco exercerem sua competência legal de criar um crédito de tal importância, a título de tal tal impôsto, contra tal contribuinte" (JÈZE, 1945, p. 50).
Como exemplo, ele nos dá a introdução na fronteira de uma mercadoria que, se compreendida nos termos da lei aduaneira, será o fato gerador do imposto de importação para o importador.
À primeira vista, tal conceito não parece gerar maiores problemas e dúvidas. Mas, podemos nos perguntar: será que efetivamente é benéfica a aproximação da realidade social com a norma jurídica a ponto de romper qualquer tipo de distinção entre o fato previsto na norma e o fato previsto na realidade? Do ponto de vista de Gaston Jèze e seu método, sim.
Porém, para Geraldo Ataliba e Paulo de Barros Carvalho, não. Vejamos o porquê.
As críticas formuladas por Geraldo Ataliba e por Paulo de Barros Carvalho
Como visto acima, são várias as denominações sugeridas para o elemento antecedente das normas que "prescrevem as prestações de índole fiscal" (CARVALHO, 2017, p. 268)e, dentre essas formas, prevaleceu durante muito tempo a expressão "fato ferador", cunhada por Gaston Jèze, em famoso artigo na Revista de Direito Administrativo, publicado em 1973.
Apesar da doutrina tradicional brasileira utilizar tal terminologia, apesar de tal terminologia ser consagrada no artigo 4º do Código Tributário Nacional, Geraldo Ataliba sugere que ela produz uma confusão terminológica. Isso porque acaba levando-nos a denominar duas realidades distintas por uma mesma expressão. Quais são essas realidades? Ora, justamente 1) a descrição do fato previsto na norma e 2) o fato efetivamente acontecido na realidade, num determinado tempo e local, que faria nascer a obrigação tributária. Para a primeira realidade, o nome sugerido por Ataliba é "hipótese de incidência" e para a segunda, "fato imponível". Isso porque, segundo ele,
"Há (…) dois momentos lógicos (e cronológicos): primeiramente, a lei descreve um fato e di-lo capaz (potencialmente) de gerar (dar nascimento a) uma obrigação. Depois, ocorre o fato; vale dizer: acontece, realiza-se". (ATALIBA, 2010, p. 55).
Se o fato imponível se reveste das características previstas na hipótese de incidência, então a relação jurídica se estabelece e nasce a obrigação tributária.
Geraldo Ataliba, ademais sugere que o vício terminológico de Gaston Jèze possui uma explicação psicológica. Essa explicação (que não é enunciada) deveria ser a mesma que levou, no direito penal, com a palavra crime, a "uma equivocidade nominal, já que crime designa a descrição hipotética legal de um fato, da mesma forma que designa a própria prática daquele fato" (ATALIBA, 2010, p. 55)
Paulo de Barros Carvalho tece também críticas semelhantes à redução de duas realidades essencialmente diversas a uma mesma elocução. Isto porque a expressão "fato gerador" se referiria "a) a descrição legislativa do fato que faz nascer a relação jurídica tributária; e b) o próprio acontecimento relatado no antecedente da norma individual e concreta do ato de aplicação" (CARVALHO, 2016, p. 269). Ora, ao fazer tal redução se incorre em um "vício muito grave", pois como ensinara Bobbio, segundo Paulo de Barros Carvalho, "o rigoroso cuidado na terminologia não é exigência ditada pela gramática para a beleza do estilo, mas é uma exigência fundamental para construir qualquer ciência" (CARVALHO, 2016, 269-270). E que não se argumente no sentido de que a tradição disciplina a continuidade da utilização do termo e que a lei a prescreve. Pois, se assim for, o estudioso do Direito permaneceria na superfície do fenômeno, incapaz de conhecer as profundezas do direito vigente e — o que é pior! — seria incapaz de contribuir para o aperfeiçoamento das instituições jurídicas que são fortalecidas pela vigília crítica do jurista (CARVALHO, 2016, p. 270).
O autor, então, sugere que empreguemos o termo Hipótese tributária para caracterizar "a descrição normativa de um evento que, concretizado no nível das realidades materiais e relatado no antecedente de norma individual e concreta, fará irromper o vínculo abstrato que o legislador estipulou na consequência" (CARVALHO, 2016, p. 270); e o termo Evento jurídico tributário para o efetivamente ocorrido no espaço e tempo (que, quando convertido no relato linguístico, torna-se fato jurídico tributário).
O exercício de estabelecer distinções realizado pelos autores, ao nosso entender, é essencial para o bom progresso da dogmática tributária brasileira. Essa é uma das razões pelas quais Geraldo Ataliba e Paulo de Barros Carvalho sempre serão mestres da disciplina e uma das razões pelas quais frequentar novamente os seus trabalhos e suas razões sempre será necessário para a renovação dos estudos tributaristas.
Referências
ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. São Paulo: Malheiros, 2010.
BONFÁ DE JESUS, Isabela; BONFÁ DE JESUS, Fernando; BONFÁ DE JESUS, Ricardo. Manual de Direito e Processo Tributário. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2016.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: SaraivaJur, 2016.
COSTA, Regina Helena. Curso de Direito Tributário: Constituição e Código Tributário Nacional. São Paulo: SaraivaJur, 2018.
JEZE, G. P. A. O fato gerador do imposto. Revista de Direito Administrativo, [S. l.], v. 2, nº 1, p. 50–63, 1945. DOI: 10.12660/rda.v2.1945.8116. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/8116. Acesso em: 13 dez. 2022..
KATO, Mariana Almeida. La Vie et L'oeuvre de Gaston Jèze. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2015, vol. 7, n. 13, Jul.-Dez. p. 591-604.
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