Opinião

Reflexão acerca dos cem anos do imposto sobre a renda

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31 de dezembro de 2022, 7h17

Neste ano de 2022 o imposto sobre a renda, ao menos na sua configuração mais moderna, completou um século de existência. O tributo foi criado no dia 31 de dezembro pela Lei nº 4.625/1922, publicado no Diário Oficial da União em 2 de janeiro de 1923 e republicado no dia 5 de janeiro [1].

Assim, no contexto de reforma tributária e abrindo as comemorações de um dos impostos mais relevantes da República Federativa do Brasil, passo a escrever essas breves linhas como uma forma de homenagem e de reflexão para que o nosso modelo possa vir a ser cada vez mais aprimorado de modo a alcançar a justiça fiscal no Estado Democrático de Direito.

Inicialmente, o Brasil é mundialmente conhecido como o país dos memes [2] e, quando se fala em imposto sobre a renda, não pode ser diferente. Há um deles muito divertido, que utiliza os personagens da antiga série televisiva American Chopper, na qual o protagonista, Paul Teutur, que é conhecido por ser mais enérgico em suas manifestações, representa a Receita Federal e outro personagem da série representa o contribuinte.

Assim, no suposto diálogo travado entre os dois atores, dividido em oito tiras, logo na primeira cena, Paul Teutur (Receita Federal) aparece em sua mesa de escritório indagando ao contribuinte se este já declarou seu imposto sobre a renda. Imediatamente, no quadro seguinte, o contribuinte retruca questionando à Receita Federal (representada por Paul) quanto ele teria que pagar. Paul se vira e responde secamente, "quem tem que calcular é você". Na sequência o contribuinte responde com outra pergunta: "e se eu calcular errado?". O contribuinte é prontamente respondido na quinta cena pela Receita Federal, nos seguintes termos: "eu sei exatamente quanto você deve e se você errar, será multado". No sexto quadro, o contribuinte rebate novamente com um último questionamento à Receita Federal: "Ora, se você sabe quanto eu devo, porque não me fala quanto é que devo pagar?". Na penúltima cena, Paul Teutur (Receita Federal) responde que a lei diz que é o contribuinte que deve saber quanto deve pagar. E no quadro final o contribuinte aparece frustrado, se retirando do recinto.

Apesar do conteúdo aparentar uma mera sátira um tanto quanto inocente ao procedimento de cobrança engendrado no âmbito do imposto sobre a renda, o seu teor contém uma crítica bastante interessante ao modelo atual, que será objeto de análise mais aprofundada neste artigo, especialmente neste momento em que se discutem aspectos relevantes e passíveis de serem modificados na legislação para efeito de reforma tributária, tal como se verá nos parágrafos subsequentes.

Fazendo uma breve digressão histórica do tributo, cumpre assinalar que durante a elaboração do anteprojeto de imposto sobre a renda, ainda na década de 20, discutiu-se muito a respeito da obrigatoriedade de apresentação da declaração por parte do contribuinte e concluiu-se que esta era uma etapa primordial para se realizar o lançamento do tributo, haja vista que o sistema proposto não podia prescindir da declaração, pois naquela época não havia muitos meios para o Estado cruzar informações e o sistema baseava-se, fundamentalmente, no princípio da confiança.

Cabe aqui rememorar que nos primórdios da declaração do imposto sobre a renda, esta ainda era feita em papel e posteriormente processada manualmente pelo Fisco. De modo que o ato da entrega da declaração era realizado fisicamente junto às delegacias fiscais, as quais estavam incumbidas de efetuar o lançamento do imposto de renda nos estados, além de organizar o cadastro dos contribuintes.

Muitos anos depois, especificamente em 1991, um acontecimento deu ensejo a uma etapa que constituiu verdadeiro marco no que tange a praticabilidade e eficiência com relação ao cumprimento das obrigações tributárias acessórias, quando foi efetivamente instituída a declaração do IRPF por intermédio do computador. Dessa maneira, o programa da Receita Federal passou a permitir o preenchimento da declaração seguido da gravação em disquete para ser entregue na SRF [3]. Parecia, então, que os 67 anos anteriores de entrega do formulário em papel estavam chegando ao fim.

De conseguinte, segundo os registros da Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), em 1997 [4] foi criado o programa Receitanet, que possibilitou o cumprimento das obrigações tributárias acessórias pela internet, sem necessidade de o contribuinte dirigir-se a um local autorizado para realizar a entrega da declaração. Bastava realizar o download dos programas do IRPF e Receitanet e o cidadão estava em condições de preencher e enviar a sua declaração sem sair de casa ou do trabalho [5]. Com isso, não havia mais a necessidade dos formulários em papel, tampouco da entrega dos disquetes, haja vista que todo o procedimento era online. Trocando em miúdos, desde 1997 que não há "voto impresso" no ambiente do imposto sobre a renda na Receita Federal.

Outro passo significativo ocorreu no ano de 2014, quando houve a introdução da declaração pré-preenchida, que possuía informações relativas a rendimentos, deduções, bens e direitos, dívidas e ônus reais as quais são automaticamente carregadas pelo sistema.

Nessa toada, passou-se a exigir que os médicos, de forma geral, clínicas médicas e hospitais obrigar-se-iam a informar à Receita Federal todas as operações financeiras que foram efetuadas com seus pacientes. Assim, antes mesmo de a pessoa física declarar as despesas médicas em sua declaração de ajuste anual do imposto sobre a renda, a Receita Federal já consegue visualizar de antemão todas essas informações e, assim que as mesmas são enviadas pelo contribuinte, ocorre o cruzamento de dados.

Finalmente, em 2021, uma iniciativa da Receita Federal em parceria com o Serpro, criou o Cadastro Compartilhado da Receita Federal (b-Cadastros) que permite que os dados das bases do CPF, CNPJ, CAEPF [6], CNO [7] e Simples Nacional sejam compartilhados com órgãos públicos e entidades conveniadas por intermédio da tecnologia de Blockchain.

Essas medidas demonstram que, com o avanço da tecnologia, houve o incremento da capacidade de compartilhamento e cruzamento de dados por parte da Receita Federal, demonstrando assim toda a sua capacidade de saber exatamente quanto cada contribuinte deve e quanto ele deve pagar.

Outro aspecto importante a ser destacado, é o cediço desconhecimento por parte do contribuinte médio de toda a complexidade da legislação tributária para saber averiguar, apurar, identificar e calcular o valor efetivamente devido a título de imposto sobre a renda.

Noutro giro, retoma-se a pergunta elaborada pelo contribuinte em face da Receita Federal constante na sexta tirinha do meme transposta no introito deste artigo: "Ora, se você sabe quanto eu devo, porque não me fala quanto é que devo pagar?".

A explanação surge na seção II do Código Tributário Nacional onde estão arroladas as modalidades de lançamento que se subdivide em lançamento de ofício, lançamento por declaração e lançamento por homologação. Lembrando que o lançamento é o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo o caso, propor a aplicação de penalidade cabível [8].

Voltando às modalidades de lançamento, os artigos 147 a 150 do CTN delimitam os seus contornos. No primeiro caso, o lançamento de ofício, o ônus de detectar a ocorrência do fato gerador e realizar o lançamento é exclusiva do fisco, não havendo participação do sujeito passivo. No segundo, por declaração, há uma colaboração inicial do contribuinte ou responsável tributário, prestando as devidas informações para a instauração do procedimento pela Fazenda Pública. Por último, o lançamento por homologação, o fisco limita-se a homologar expressa ou tacitamente os atos do contribuinte de prestação de informações e pagamento [9]. Nesse sentido, o sujeito passivo, ao verificar a ocorrência do fato gerador, presta ao fisco todas as informações necessárias, apura o valor devido e, ato contínuo procede ao recolhimento do tributo que virá a ser homologado posteriormente ou não pela autoridade competente.

Nesse diapasão, pelo teor do artigo 150 do CTN, o lançamento por homologação, que ocorre quanto aos tributos cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa. De modo que tal modalidade se encaixa no imposto sobre a renda, que apesar de conter uma declaração de rendimentos prestada pelo contribuinte, a modalidade de lançamento adequada de acordo com a lógica constante no CTN é por homologação e não por declaração. Mas a bem da verdade é que com uma mudança legislativa (na forma do artigo 146, III, "b" da CRFB/1988) poderia ser diferente.

Frise-se que no tempo da instituição do imposto sobre a renda (1922) ou ainda, mesmo no período de publicação do CTN (ano de 1966), fazia mais sentido que as informações ficassem somente a cargo do contribuinte. Na sequência, considerando toda a dificuldade de fiscalização da população naquele contexto, bem como das pessoas jurídicas tributadas por parte do fisco, era razoável que demandasse uma lógica do lançamento por homologação e que tivesse um prazo alargado para validar as contas e os pagamentos realizados pelo contribuinte. Repise-se, todo esse procedimento era realizado antigamente em papel impresso e entregue fisicamente. Ocorre que os tempos mudaram!

Hodiernamente, o cruzamento de informações, os bancos de dados compartilhados e a capacidade de interligação dos dados das pessoas físicas e jurídicas aumentou significativamente por parte da Receita Federal com dados bancários, previdenciários, hospitalares. Sem olvidar o Cadastro Compartilhado da Receita Federal (b-Cadastros) em blockchain que permite que os dados das bases do CPF, CNPJ, CAEPF, CNO e Simples Nacional. Isso sem contar que algumas declarações já chegam previamente preenchidas pela própria Receita com auxílio da tecnologia.

Portanto, não faz mais sentido que atualmente todo ônus continue sendo do contribuinte que, apesar de possuir grande aptidão para informar os fatos passíveis de tributação, por outro lado, também possui uma enorme defasagem no que concerne a complexidade da legislação tributária brasileira, justamente por ser um cidadão comum sem conhecimentos profundos de contabilidade e direito tributário. Sem olvidar que a autoridade fazendária hoje, cem anos depois da criação do imposto sobre a renda, já tem condições de cruzar dados financeiros, bancários, transações e outros diversos fatores que demonstram fatos-acréscimos [10]. Noutros termos, já tem idade suficiente para fazer as contas sozinha.

Registre-se que o princípio cooperativo deve ser aplicado tanto na seara do direito material como processual, de modo que o caráter colaborativo se torna importante vetor interpretativo o qual deve reger as relações jurídicas, inclusive tributárias.

Este pensamento vai ao encontro das propostas elaboradas pela Comissão de Juristas para a Reforma do Processo Tributário cuja a ideia é tentar disponibilizar mecanismos de solucionar disputas antes mesmo do ajuizamento de ações judiciais [11]. Extraindo-se, portanto, como pontos nevrálgicos subjacentes dessas medidas supra referidas os ideais de cooperação, razoável duração do processo, boa-fé e o cooperativismo. Reduzindo assim a morosidade e a litigiosidade com ganho em eficiência e eficácia.

Para finalizar, em uma palestra ministrada no TEDc Maastricht [12], o professor holandês Paul Rulkens conta que em 1942, Albert Einstein lecionava na Universidade de Oxford e, num belo dia, havia acabado de dar um exame de física para sua turma do último ano. Ele estava caminhando pelo campus com seu assistente e, de repente, o assistente olhou para Albert Einstein e disse: "Dr. Einstein, esse exame que você deu para a turma do último ano de física não é exatamente o mesmo exame que você deu para a mesma classe há um ano atrás?".

"— 'Sim, sim', disse Einstein, 'é exatamente o mesmo'.

 'Mas Dr. Einstein, como você poderia fazer isso?', Disse a assistente.

 'Bem', disse Einstein, 'as respostas mudaram'".

Em outras palavras, o que é verdade para Einstein em 1942 é ainda mais verdadeiro para hoje. Vivemos em um mundo em que as perguntas podem ser as mesmas, mas as respostas mudaram.

Talvez o meme do American Chopper termine perdendo a graça caso a modalidade de lançamento do imposto sobre a renda deixe de ser por homologação (como é hoje) e passe a ser por declaração [13], por exemplo. Mesmo que para isso seja desenhado um modelo facultativo (escolha do contribuinte).

Mas vale a reflexão e, quem sabe, a felicidade de todos no final.

 


[1] Segundo pesquisa realizada no âmbito da Receita Federal do Brasil, talvez a primeira disposição brasileira acerca do imposto sobre a renda, mas que não tinha especificamente essa mesma nomenclatura, pode ter surgido no início do reinado de dom Pedro II, com a edição da Lei nº 317, de 21 de outubro de 1843. Mas considera-se aqui tal como na obra de Cristóvão Nóbrega, Cristóvão Barcelos. RECEITA FEDERAL DO BRASIL. História do Imposto de Renda no Brasil: um enfoque da pessoa física (1922 – 2013). Disponível em: https://www.ibet.com.br/wp-content/uploads/2016/05/Imp.-Renda.pdf. Acesso em 21 de dezembro 2022. p. 24 e 31.

[2] Trata-se de uma imagem, informação ou ideia que é reiteradamente difundida através da Internet e que corresponde a uma versão humorística, irônica ou satírica de uma outra imagem, fato ou ideia.

[4] A Secretaria da Receita Federal do Brasil já havia feito uma experiência anteriormente, em que permitia a entrega por meio da internet, mas com limitações. Porém, a abrangência maior ocorreu em 1997, com o advento do programa Receitanet.

[5] Idem.

[6] Cadastro de Atividades Econômicas da Pessoa Física.

[7] Cadastro Nacional de Obras.

[8] ABRAHAM, Marcus. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2018, p.230.

[9] Parcela da doutrina se refere a uma hipótese de lançamento por arbitramento (artigo 148 do CTN), que ocorre a partir de procedimento instaurado quando o fisco entender que houve omissão ou má fé nas declarações e documentos expedidos pelo contribuinte.

HORVATH, Estevão. Lançamento tributário e "autolançamento". São Paulo: Dialética, 1997. p.33.

[10] "(…) o conceito de 'renda e proventos de qualquer natureza' é informado por fatos (positivos) que contribuem para o acréscimo e fatos (negativos) que contribuem para o decréscimo do valor do patrimônio (…)". QUEIROZ, Luís Cesar Souza de. Imposto sobre a Renda: requisitos para uma tributação constitucional. Rio de Janeiro: Editora GZ, 2021, p. 203.

[11] Declaração do professor Marcus Lívio Gomes. As propostas da comissão de juristas para a reforma do processo tributário. Disponível em: https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/as-propostas-da-comissao-de-juristas-para-a-reforma-do-processo-tributario-22082022. Acesso em 21 de dezembro de 2022.

[12] Rulkens, Paul. Why the majority is always wrong. TEDx Maastricht. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VNGFep6rncY. Acesso em 21 de dezembro de 2022.

[13] A ideia foi ventilada pelo meu orientador de doutorado professor doutor Luís Cesar Souza de Queiroz, o qual abordou o tema em sala e a quem atribui-se todos os méritos inspiratórios deste artigo. Já os eventuais defeitos, estes são de exclusiva responsabilidade do autor.

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