Plutarco, Ruy Castro, Lira Neto e o fascínio das biografias
22 de janeiro de 2023, 8h00
A Cia. das Letras lançou no fim do ano passado dois livros que tratam do fascinante tema das biografias. O pai fundador do gênero seria Plutarco (46-120 d.C.), grego, que nasceu na Beócia, região de camponeses pouco ilustrados, justificando o adjetivo "beócio", aplicado aos mais rústicos e menos cultos. Teria visitado Alexandria, Roma, partes da Grécia e da Itália. Criador do gênero biográfico, comparou gregos e romanos, em Vidas Paralelas, que algumas traduções trazem como Vidas Comparadas. Plutarco enfatizou o exemplo moral, a virtude, o bom comportamento. Não desprezava uma anedota; é um escritor memorável.
Entre nós a forma de escrever biografias foi marcada por uma revolução no gênero, no fim do século XX. Fernando Morais (Olga), Jorge Caldeira (Mauá), Albert Dines (Stefan Zweig), Ruy Castro (Nelson Rodrigues, Garrincha, Carmen Miranda), Lira Neto (José de Alencar, Padre Cícero, Getúlio) foram os protagonistas dessa revolução. Nas livrarias (que sobraram) há hoje sessões de biografia, que estão entre as mais procuradas.
Há discussões gravíssimas sobre a liberdade do biógrafo (e Ruy Castro foi incomodado por isso). É exemplo do problema a celeuma causada em torno da biografia de Roberto Carlos, fonte de muito problemas para Paulo César de Araújo, que saiu vitorioso da contenda no Supremo Tribunal Federal. A questão foi debatida na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.815-DF, requerida pela Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel) e relatada pela ministra Cármen Lúcia.
A ministra relatora enfatizou que "(…) 5. Biografia é história. A vida não se desenvolve apenas a partir da soleira da porta de casa. 6. Autorização prévia para biografia constitui censura prévia particular. O recolhimento de obras é censura judicial, a substituir a administrativa. (…) 7. A liberdade é constitucionalmente garantida, não se podendo anular por outra norma constitucional (inc. IV do art. 60), menos ainda por norma de hierarquia inferior (lei civil), ainda que sob o argumento de se estar a resguardar e proteger outro direito constitucionalmente assegurado, qual seja, o da inviolabilidade do direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem (…)". Essa decisão é um marco no direito brasileiro.
Aqueles que gostamos de biografias nos deliciamos com esses dois livros recentemente publicados pela Cia. da Letras. Ruy Castro (A Vida por Escrito, Ciência e Arte da Biografia) explora o significado de uma biografia, como documento literário, e também como documento histórico. Trata de aspectos operacionais que marcam essas empreitadas, a exemplo da escolha do biografado, da apuração de informações, do processo de escrita da biografia, da edição do livro. A revelação dos motivos pelos quais Ruy Castro havia optado por biografar Garrincha, por exemplo, vale a leitura do livro. É um exemplo de vida e de superação. Não há como se sensibilizar com os motivos pelos quais Ruy Castro biografou o famoso jogador de futebol.
Ruy Castro inicia o livro narrando a história de um refém em sequestro ocorrido em 8 de dezembro de 1992, a quem os sequestradores deixaram como alternativa de leitura o cartapácio de Guimarães Rosa. O sequestrado, que era um empresário, pediu que o livro fosse trocado pela biografia que Ruy Castro havia escrito sobre Nelson Rodrigues. Essa narrativa, e seu desate, comprovam o poder que biografias exercem sobre nossas escolhas e comportamentos. Eu adoro biografias porque tenho a impressão de que estou vivendo outras vidas. Eu me senti Nelson Rodrigues quando li esse monumento literário que é O Anjo Pornográfico.
Lira Neto (A Arte da Biografia, Como Escrever Histórias de Vida) apresenta-nos primeiramente uma história das biografias. Problematiza a extensão e limites da missão do biógrafo (o que quer e o que pode uma biografia?), sugere formas de trabalho (por onde começar a pesquisa?), fala um pouco do ofício (senso de detetive, olhar de antropólogo, espírito de arqueólogo), discorre sobre os limites éticos do biógrafo, que é quem detém o controle da narrativa (é o narrador quem tem as rédeas). Insiste que uma biografia deve ser uma leitura cativante (o leitor não pode cochilar).
Para os interessados nesse gênero bibliográfico eu acrescentaria a leitura da obra-prima de François Dosse (O Desafio Biográfico — Escrever uma Vida, editado pela Edusp). Para esse historiador francês (que biografou intelectuais franceses como Paul Ricoeur, Michel de Certeau e Gilles Deleuze) a biografia é um verdadeiro romance, muitas vezes localizado entre o jornalismo e a história. Não nos esqueçamos que Ruy Castro e Lira Neto são também reconhecidos jornalistas.
Não há acordo se biografia é literatura ou é ciência. Para atormentar o interessado há também o romance biográfico, que dissolveria essa última (ciência) em favor daquela primeira (literatura). De interesse para o Direito há as biografias de San Tiago Dantas (escrita por Pedro Dutra), de Pedro Lessa (escrita por Roberto Rosas), de Clóvis Beviláqua e de Teixeira de Freitas (ambas de Sílvio Meira), de Ruy Barbosa (de Luís Viana Filho) e de Tobias Barreto (de minha autoria).
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