Opinião

RE 629.647 e a importância das práticas estruturais na tutela coletiva

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18 de janeiro de 2023, 6h16

O julgamento do RE nº 629.647 (Repercussão Geral nº 1.004), ocorreu no final do ano passado, mas só recentemente o inteiro teor do acórdão foi disponibilizado. Trata-se de importante julgado para reflexão sobre o papel dos legitimados coletivos, a importância do diálogo social e — na visão deste artigo — um espaço para indagar sobre como as práticas estruturais convergem para as preocupações ventiladas na argumentação dos votos.

Em síntese, o Tema de Repercussão Geral nº 1.004 envolvia a discussão relativa à existência de litisconsórcio passivo necessário de sindicato representante de empregados diretamente afetados por acordo celebrado em ação civil pública entre empresa de economia mista e Ministério Público do Trabalho.

O Recurso extraordinário discutia, à luz do artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal a possível inconstitucionalidade, em afronta ao devido processo legal, de acordo celebrado em ação civil pública entre o Ministério Público do Trabalho e empresa de economia mista, quando este ocorre sem a participação de sindicato representante dos empregados diretamente afetados.

Após os debates no processo, ficou assentada tese de repercussão geral em ementa da qual se destacam os seguintes itens:

"2. Na ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Trabalho buscando o reconhecimento da invalidade de contratações sem concurso público, não é necessária a citação de cada empregado, para formação de litisconsórcio passivo. Os interesses dos trabalhadores devem ser tutelados pelo sindicato laboral que representa a categoria.

3. Recurso Extraordinário a que se dá parcial provimento. Tema 1004, fixada a seguinte tese de repercussão geral: “Em ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Trabalho em face de empresa estatal, com o propósito de invalidar a contratação irregular de pessoal, não é cabível o ingresso, no polo passivo da causa, de todos os empregados atingidos, mas é indispensável sua representação pelo sindicato da categoria."

O julgado a um só momento afirma duas premissas interessantes para o tratamento de demandas e situações coletivas.

Primeiro, o Ministério Público do Trabalho, na qualidade de legitimado coletivo defensor da ordem jurídica, pode atuar sem que se tenha que formar litisconsórcio necessário com todos os trabalhadores que possam ser afetados pelo resultado do julgamento. Nesse particular, sobreleva-se a noção de que nem sempre a observância da ordem jurídica trabalhista deve coincidir com incremento patrimonial ou mesmo vantagem dos trabalhadores afetados

É de se rememorar que o Ministério Público do Trabalho atua em defesa da ordem jurídica e do valor social do trabalho — o que na maioria das vezes coincide com a proteção dos direitos dos trabalhadores dado o desenho institucional de nossa constituição, mas nem sempre.

Com efeito, a defesa da realização do concurso público, garantindo-se o acesso igualitário de todos os cidadãos, em detrimento de situações de eventuais seleções direcionadas é um bom exemplo. Outro relevante é exatamente a atuação em face da prevenção de trabalhadores fantasmas ou "loteamentos" em contratos de terceirização com a administração pública.

Nesse particular, é importante destacar que o Ministério Público do Trabalho vem progressivamente refinando suas formas de atuação e entrando inclusive em searas antes associadas somente ao Ministério Público Federal e Ministério Público Estadual, como a exigência de compliance público e políticas de integridade na administração pública no que concerne a gestão de trabalhadores celetistas em contratos de terceirização de mão-de-obra.

Logo, há de se esperar que situações similares a existente no julgado que gerou o tema de repercussão geral passem a ser recorrentes, especialmente diante de um contexto atual onde há uma progressiva "publicização" de serviços públicos, por exemplo, através de organizações sociais.

Essa realidade também convida a Justiça do Trabalho, quando acionada, a apreciar situações nas quais determinadas condutas institucionais e/ou políticas públicas, agora em face do compliance público de forma ampla nas contratações públicas ou afetas aos princípios da administração.

Nesse particular, parece haver uma tendência de reafirmação da competência da Justiça do Trabalho em ações sobre políticas públicas. O paradigma mais recente que se pode evocar, são dois julgados da Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1) do Tribunal Superior do Trabalho nos quais se reiterou a competência da Justiça do Trabalho para apreciar demandas propostas pelo Ministério Público do Trabalho para instar municípios na elaboração e implementação de políticas públicas de combate e erradicação do trabalho infantil (julgados: E-RR-44-21.2013.5.06.0018 e E-RR-24325-63.2014.5.24.0096).

Desta perspectiva de contato com políticas públicas e situações que podem atingir negativamente conjuntos de trabalhadores é que a segunda premissa decorrente do Tema de Repercussão Geral se apresenta.

O segundo ponto do julgado foi exatamente de garantir a presença do sindicato da categoria no curso da demanda para que aquela coletividade de trabalhadores afetados e que seriam desligados pudesse ter representação também no plano coletivo.

A sensação deste estudo sobre a lógica que perpassa o julgado não é tanto de que a intervenção sindical poderia ser instrumento para sanar a inconstitucionalidade de admissão sem concurso, mas de que a Suprema Corte está a reafirmar a importância de que demandas coletivas estejam sujeitas ao diálogo social — o que também parece guardar coerência e correspondência com o que decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 999.435, Tema de Repercussão Geral nº 638, no qual se colocou em posição de destaque a intervenção sindical prévia como exigência procedimental imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores, não se confundindo com autorização prévia por parte da entidade sindical ou necessidade prévia de celebração de convenção ou acordo coletivo.

Assim, toda essa linha de julgados parece chamar a atenção e ser um recado para que a ordem jurídica e as instituições atentem para a necessidade do diálogo social.

A ideia de um diálogo social pode ser considerada fundamental no modelo sindical atual porque permite a negociação e a cooperação entre empregadores e trabalhadores para alcançar objetivos comuns. Isso pode incluir questões como salários, condições de trabalho, direitos dos trabalhadores e políticas públicas. O diálogo social também pode ajudar a prevenir conflitos e garantir que as necessidades e interesses de ambas as partes sejam levados em consideração. Além disso, o diálogo social pode contribuir para a estabilidade econômica e social do país, bem como para o desenvolvimento de relações de trabalho saudáveis.

Por corolário lógico, quando se fala em diálogo social no curso de um processo, evoca-se imediatamente a noção de práticas estruturais para a atuação judiciária ou mesmo posturas resolutivas para o Ministério Público. O Processo Estrutural é, por excelência, o paradigma mais refinado existente para o tratamento de demandas complexas e com efeitos sociais diversos.

É neste ponto que se acha interessante derivar a mensagem do julgado — sempre que a atuação do Ministério Público do Trabalho em suas demandas possa representar efeitos negativos para determinado conjunto de trabalhadores, a participação da entidade sindical é meio apto a promover o diálogo social na construção da solução do processo.

Permita-se algumas reflexões de como práticas de processo estrutural poderiam ser úteis ao caso paradigma do Tema nº 1.004.

Embora não se possa divergir a situação de inconstitucionalidade plena da admissão sem concurso público, a forma de reparação da ordem jurídica, por sua vez, pode e deve ser pautada na realidade concreta dos múltiplos interesses em conflito. Por exemplo, a atuação sindical poderia intervir para auxiliar no cronograma de dispensas com menor prejuízo seja para o funcionamento da entidade, seja minorando os impactos sociais advindos dos desligamentos.

Seria possível ainda pensar que a processo considerasse chamar a responsabilidade o ente ou eventuais responsáveis pela admissão irregular, pleiteando-se ainda a adoção de medidas de realocação profissional para os trabalhadores afetados. Os sindicatos poderiam até mesmo ser intervenientes úteis para, inusitadamente, auxiliar na melhor e mais rápida forma de consecução da pretensão ministerial.

Assim, a beleza do processo estrutural está exatamente em identificar que para além do resultado final de observância da ordem jurídica, o iter procedimental também pode ser palco de construções convergentes de modo a que, ao fim e ao cabo, o direito seja observado — e da forma socialmente mais eficiente possível.

Por fim, fica também uma reflexão agora voltada para a percepção do papel dos próprios sindicatos e sua importância de convocação a tomar voz nos processos coletivos. Processos estruturais evocam o diálogo social e este, por sua vez, orienta para que o Judiciário possa contar com a participação processual colaborativa dos vários legitimados coletivos.

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