Tribuna da Defensoria

O ANPP sob o enfoque do princípio da intervenção mínima do Direito Penal

Autor

  • Emerson de Paula Betta

    é defensor público titular do órgão da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro junto à 2ª Vara Criminal de Nova Iguaçu e pós-graduado em Direito Constitucional pelo IDP.

17 de janeiro de 2023, 8h00

A Lei 13.964 de 24 de dezembro de 2019 trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), o qual surge na vertente internacional da expansão dos espaços de consenso e justiça negociada em âmbito penal [1].

Na vertente da Transação Penal e Suspensão Condicional do Processo, trazidos pela Lei 9.099 de 1995, o ANPP revela-se, de acordo com a majoritária doutrina e jurisprudência, mais um instituto de justiça penal negociada. Porém, para nós, e como abaixo será exposto, na mesma linha dos institutos acima mencionados, principalmente quanto a transação penal, o ANPP revela uma política criminal de intervenção mínima do Direito Penal, em apreço e obediência ao direito fundamental de liberdade, alternativa para uma episódica "descriminalização material" do fato formalmente previsto como crime e concretamente indiciado, a depender de presença de requisitos legalmente previstos, e aceitação e cumprimento de condições.

Passados quase três anos de vigência da referida lei e das respectivas normas jurídicas, observa-se nos tribunais nacionais, bem como na doutrina, divergências acerca de sua conformação e aplicação. Insta referenciar que em amplitude, o tema da justiça penal negociada vem sendo objeto de analise e críticas em âmbito doutrinário.

De modo amplo e geral observa-se que as divergências situam-se no embate da prevalência: a – de um lado do interesse do Indivíduo que sofre indiciamento/acusação penal por parte do Estado visando garantir seus Direitos Fundamentais; b – e de outro o interesse da coletividade, através da já comum vertente de aplicação da lei penal com vistas a pretensa proteção de determinados bens jurídicos, bem como e mais especificamente na temática em exame, de uma otimização e eficiência da prestação jurisdicional penal, com viés inclusive econômico em relação a diminuição de gastos [2].

Pode-se de forma geral, extrair da Constituição Brasileira de 1988, nos seus Fundamentos (artigo 1º); Objetivos (artigo 3º); Princípios (artigo 4º) e Direitos Fundamentais expressa ou implicitamente previstos, dentre outras normas, que ambos os interesses acima aduzidos encontram, em termos genéricos, embasamentos em nossa Lei Maior, pelo que e como não é novidade, sua conformação deve obrigatoriamente observar sopesamentos e ponderações para resolver colisões e conformar racionalmente os interesses com o bom e correto aproveitamento do instituto, de forma a preservar o núcleo essencial dos Direitos Fundamentais em jogo.

Ancorado nos fundamentos e diretrizes constitucionais acima apontados, ambas as vertentes encontram suporte nos chamados enunciados gerais da liberdade e igualdade (vistos aqui inicialmente como Direitos Gerais [3]), aceitos como vigas mestras do Constitucionalismo Moderno/Contemporâneo e principalmente na nossa Carta Política que abriga tanto o Estado-Liberal quanto o Estado-Social.

Uma analise minuciosa do ANPP em todas as suas nuances, revela a necessidade de profunda pesquisa que o presente ensaio não comporta.

Neste momento e como acima apontado, será feita uma analise do instituo propondo uma visão de sua natureza preponderante de norma penal material, como meio alternativo de resolução do suposto conflito penal.

Sem nenhuma pretensão de esgotar a discussão sobre a temática específica metodológica, tem-se certo consenso que verificar a natureza jurídica de um instituto, em síntese significa avaliar sua essência; principais características; onde ele se encaixa de acordo com as normas jurídicas as quais deve obediência; podendo ainda passar pela analise de sua finalidade almejada e suas consequências.

Sabe-se por outro lado que definir a natureza jurídica de um instituto por vezes não é tarefa fácil e isenta de problemas, haja vista as dificuldades que podem decorrer de: existência da pluralidades de características; inexistência de catalogo específico no ordenamento jurídico; bem como de divergências doutrinárias.

Nada obstante temos que, em respeito a Direitos Fundamentais catalogados, vedado será impor uma natureza jurídica a determinado instituto, com o fim de utilizá-lo para uma finalidade predeterminada com simples viés utilitário, ao arrepio de normas e fins constitucionais.

Trilhando o caminho acima colocado, inicialmente podemos apontar que o ANPP encaixa-se genericamente como instituto jurídico que visa, através de determinadas regras e condições, regular de forma alternativa um conflito social decorrente de uma suposta conduta catalogada em lei como de natureza penal. Tal conclusão parte da analise da norma escrita no art. 28-A caput [4] do CPP, que remete sua incidência a determinados tipos penais e faz menção a sua necessidade e suficiência para reprovação e prevenção da conduta; bem como das normas escritas no artigo 28-A §§12 13 [5] do CPP que fixam a extinção da punibilidade como consequência de sua aplicação se satisfeitas as condições impostas, não gerando reincidência. Uma "descriminalização material episódica condicionada".

Trata-se de uma intervenção mais branda na esfera de liberdade do individuo de acordo com os Princípios da Intervenção Mínima, da Última Ratio, e da Subsidiariedade, afetos ao Direito Penal. Um método alternativo de política criminal de caráter eminentemente penal material, reduzindo a interferência do Estado no Direito Geral de Liberdade do indivíduo em observância ao seu Direito Fundamental.

Dentre outros podemos embasar a analise nos estudos e proposições do professor Alessandro Baratta [vi] quando realizando suas pesquisas através da sua criminologia crítica, elabora sistematização de Princípios de Direito Penal Mínimo dividindo-os inicialmente em dois grandes grupos, Intrassistemáticos e Extrassistemáticos, propondo entre esses últimos Princípios Metodológicos da Construção Alternativa dos Conflitos e dos Problemas Sociais, para especificar, dentre outros, o Princípio da Subtração Metodológica dos Conceitos de Criminalidade e de Pena, onde já previa a experimentação de métodos alternativos de resolução de conflitos penais.

Propugna o professor Alessandro Baratta:

"O Princípio da Subtração Metodológica dos Conceitos de Criminalidade e de Pena propõe o uso, em uma função heurística, de um experimento metodológico: a subtração hipotética de determinados conceitos de um arsenal preestabelecido ou a suspensão (epoché) de sua validade. Recomenda-se aos atores implicados na interpretação dos conflitos e problemas e na busca de soluções, realizar esse experimento, prescindindo, por certo tempo, do emprego dos conceitos de criminalidade e de pena, para verificar se e como os conflitos e os problemas poderiam ser construídos, bem como a respostas ótimas em uma ótica distinta da punitiva. (…)" [7].

Verifica-se na doutrina e na jurisprudência, intenso debate acerca da natureza jurídica do ANPP, se seria um instituto processual ou material penal, ou se teria mesmo caráter híbrido. A nós nos parece na linha acima proposta, que, sem embargo de aspectos processuais previstos para sua aplicação, bem como a sua total regulamentação em um código processual, o aspecto material impõe-se de forma imperativa, analisada sua essência, características, finalidades (autorizadas pela CRFB/1988) e consequências, em observância a obediência aos parâmetros constitucionais.

Podemos de forma exemplificativa e hipotética, e na linha do que propugna o ANPP, colocar uma hipótese que bem evidenciaria o raciocínio aqui exposto. Imagine-se que o legislador decidisse por razões de política criminal, eleger que uma única e determinada conduta tipificada como crime, comportasse uma forma de satisfação daquele eventual conflito social penal de forma alternativa mais branda a depender de determinados requisitos e condições:

"Art. 155 – Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:

Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 1º – A pena aumenta-se de um terço, se o crime é praticado durante o repouso noturno.

§ 2º – revogado.

§ 3º – Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico.

§3º-A – Não sendo, de acordo com as regras processuais vigentes, caso de arquivamento da conduta prevista no caput e §1º deste artigo, e sendo o indiciado primário, o Ministério Público proporá, como opção à resolução do mérito, acordo de não persecução penal, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa ou alternativamente de acordo com as circunstâncias do caso concreto:

I – reparar o dano ….. (…);

§ 3-B. Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade.

§ 3-C. A celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal não constarão de certidão de antecedentes criminais."

Por certo, na hipotética inovação legislativa acima exemplificada (em toda similar ao atual ANPP), ninguém discutiria tratar-se de norma penal material.

Destas constatações pode-se arriscar um conceito para o ANPP como sendo instituto jurídico de resolução e satisfação alternativa de conflitos sociais penais de menor potencial ofensivo, de natureza jurídica direito penal material.

Esclarece-se que a menção a infrações penais de menor potencial ofensivo no conceito acima proposto é usada de forma abstrata, geral e de acordo com o vernáculo, para situar, dentro da perspectiva do Princípio da Intervenção Mínima, e não no seu sentido jurídico normativo eleito naquele momento temporal pela Lei 9.099/1995 para delimitar naquelas hipóteses (além da menor relevância penal no sentido aqui proposto), a competência dos Juizados Especiais Criminais. Cabe lembrar que em duas oportunidades o legislador ordinário já alargou o concito de infração de menor potencial ofensivo (Lei nº 11.313, de 2006 e Lei 11.705 de 2008).

Talvez a dificuldade de enxergar a preponderância da natureza penal material do ANPP, situe-se, na sua captura pela genérica seara da justiça penal negociada, bem como na forma como foi regulamentado. Porém temos que tal visão em muito trata-se do vicioso olhar sem critério e mero transplante jurídico [8] do plea bargaining norte americano, não se fazendo a devida analise de acordo com o que permite a CRFB/1998.

Neste sentido, em muito auxilia a compreensão do que aqui proposto, as lições do professor Felipe da Costa De-Lorenzi (2020), que propõe uma tipologia para espécies de justiça penal negociada, propondo três grupos: a – Justiça negociada como alternativa à resolução de mérito; b – Justiça negociada como alternativa à instrução; c – Justiça negociada como colaboração para evitação de crimes ou para a persecução de terceiros [9].

Preleciona o referido autor:

"Justiça negociada como alternativa à resolução de mérito. Um primeiro grupo reúne institutos de justiça penal negociada que objetivam evitar a resolução do mérito, ou seja, a decisão a respeito da existência ou não de uma infração penal. (…) Exemplos são a transação penal, a suspensão condicional do processo e os acordos de não persecução" [10].

"Justiça negociada como alternativa à instrução. A segunda manifestação da justiça penal negociada se dá por meio de institutos que objetivam facilitar a resolução do mérito, suprimindo ou reduzindo substancialmente a fase de instrução probatória. (…) utilizando uma manifestação do réu, na qual assume a responsabilidade ou aceita a pena e renuncia a produção de outras provas, com base para decisão de mérito. (…) Exemplos são os acordos para reconhecimento de culpa ou aplicação de pena (a plea bargaining nos Estados Unidos a Verstandigung na Alemanha, o pattegiamento na Itália, a conformidade negociada na Espanha), aos quais chamarei de acordos sobre a sentença" [11].

Tal tipologia nos mostra que vários podem ser os institutos que se enquadram na genérica seara da justiça penal negociada. Porém cada um deles tem suas especificas características, e deve cada qual na sua regulação e aplicação, serem obedientes aos parâmetros constitucionais locais, e guardar coerência com todo o ordenamento jurídico.

Constata-se que o ANPP encaixa-se no tipo Justiça negociada como alternativa à resolução de mérito, não adentrando no exame da existência do fato e por tanto da culpa, sendo uma alternativa ao Direito Penal, demonstrando assim sua natureza penal material; ao passo que os acordos para reconhecimento de culpa, dentre eles o plea bargaining, são alternativa à instrução, que utilizando uma manifestação do réu como prova e base para decisão de mérito, demonstra ao contrário sua preponderância como norma de natureza penal processual.

Em conclusão, temos que a natureza jurídica do ANPP, sendo norma incidente no Direito Fundamental de Liberdade do Indivíduo (ainda que de forma mais branda) com a finalidade de controle social de conflitos formalmente penais de forma alternativa, e tendo por consequência a extinção de punibilidade, não gerando reincidência, revela-se como norma de natureza jurídica penal material.

Tal constatação revelará importância para futuras abordagens com a aplicação da Teoria dos Direitos Fundamentais para uma correta argumentação jurídica do ANPP em todas as suas nuances, para sua conformidade com a constituição brasileira enfrentando questões como, legalidade; retroatividade; isonomia; controle do Ministério Público na negativa de oferta; e a obrigatoriedade de confissão, e outras que podem surgir, mas que exigem cada qual analise e detalhamentos mais profundos.

 


[1] De-Lorenzi, Felipe da Costa. Justiça Negociada e fundamentos do Direito Penal. Pressupostos e limites materiais para os acordos sobre a sentença. Editora Marcial Pons. Edição 2020, página 26: "A justiça negociada triunfou. Apesar da resistência inicial em todos os locais, primeiramente nos Estados Unidos, depois ao redor do mundo, os institutos que permitem acordos entre as partes foram incorporados ao direito processual penal de grande parte dos países ocidentais e alcançaram o direito penal internacional".

[2] Vasconcellos, Vinicius Gomes. Barganha e Justiça Criminal Negocial: Analise das Tendências de Expansão dos Espaços de Consenso no Processo Penal Brasileiro. Editora D´Plácido. 2019. Capitulo I, Páginas 71 a 84.

[3] Alexy, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. Editora Malheiros. 5ª Edição Alemã 2006. Impressa no Brasil em 2008. Página 393.

[4] Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019). Destaquei

[5] §12. A celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal não constarão de certidão de antecedentes criminais, exceto para os fins previstos no inciso III do § 2º deste artigo. §13. Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019).

[6] Baratta, Alessandro. Princípios do Direito Penal Mínimo. Por uma Teoria dos Diretos Humanos como Objeto e Limite da Lei Penal. Tradução de Francisco Bissoli Filho. Editora Habitus. Florianópolis. 2019.

[7] Idem VIII. Páginas 60/62.

[8] Dentre outros: Stanziola Vieira, Renato. O que vem depois dos “legal transplants”? Uma análise do processo penal brasileiro atual à luz de direito comparado. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Vol. 4, nº 02, Maio e Agosto de 2018.

[9] De-Lorenzi, Felipe da Costa. Justiça Penal Negociada e Fundamentos do Direito Penal. Pressupostos e Limites Materiais para os Acordos sobre a Sentença. Editora Marcial Pons, 2020. Páginas 61/63.

[10] Idem XII.

[11] Idem XII.

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