Território Aduaneiro

Uma agenda aduaneira para 2023: previsões e sugestões

Autor

  • Fernanda Kotzias

    é sócia do Veirano Advogados advogada aduaneira doutora em Direito do Comércio Internacional professora de pós-graduação e ex-conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

17 de janeiro de 2023, 8h00

Seja qual for o setor, é comum que, a cada início de ano, sejam feitas "previsões" e avaliações sobre o que se espera de desdobramentos e conquistas para o período. Em se tratando de um ano em que se inaugura um novo mandato presidencial, em que as expectativas estão aguçadas, essa atividade se torna ainda mais relevante — além de desafiadora.

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Diante disso, e seguindo o que foi publicado nesta coluna em janeiro de 2022, proponho inaugurar o ano de 2023 tratando do que se poderia esperar para o presente ano em termos de uma "agenda aduaneira". Tal qual apontou o colega e grande aduaneirista, Rosaldo Trevisan, no artigo do ano passado, nossas previsões e sugestões estão "longe do terreno da clarividência", de forma que o conteúdo aqui apresentado "busca, como a história, o estudo do passado para compreender o presente e razoavelmente imaginar o que possa ocorrer no futuro" [1].

Por um lado, o cenário atual é marcado pela saída do presidente Jair Bolsonaro do poder, cujo governo teve como foco, em termos de comércio exterior, uma maior liberalização comercial por meio da redução horizontal da TEC, da contenção de medidas de defesa comercial, da negociação de acordos bilaterais, regionais e plurilaterais em matérias afeitas ao comércio, inauguração do processo de acessão do país à OCDE e busca pela melhoria do ambiente de negócios a partir de "faxinas regulatórias" para redução do estoque normativo e de licenças de importação.

Apesar de avanços e vitórias relevantes em matéria aduaneira, não se pode negar que falas e posturas do ex-presidente abalaram as relações externas do Brasil com diversos parceiros comerciais relevantes, a exemplo das ofensivas à China no início do governo, da demora em reconhecer a vitória de Joe Biden nas eleições americanas e da falta de uma agenda ambiental que dialogasse com as expectativas externas — sendo este último ponto responsável, a priori, por travar a implementação do Acordo Mercosul-União Europeia. Além disso, o orçamento dedicado à conclusão do Portal Único de Comércio Exterior (PUComex) sofreu sucessivas reduções, o que gerou prorrogações significativas no cronograma, que atualmente possui previsão de conclusão apenas para 2026.

De outro lado, tem-se a entrada do presidente Lula para cumprir seu terceiro mandato, cujas expectativas na área do comércio exterior, em um primeiro momento, giram em torno do que foi denominado de "revogaço" — lista de 20 revogações prometidas pelo time de Lula e que versam sobre portarias, decretos e resoluções do governo antecessor e que beneficiariam a importação de certos produtos acabados, relativizariam a aplicação de medidas antidumping e reduziriam unilateralmente as tarifas vigentes no Mercosul. No tocante à OCDE, o discurso do recém-empossado ministro das Relações Exteriores, embaixador Mauro Vieira, é de manutenção do diálogo com a instituição, mas ressaltando a necessidade de que a relação seja pautada pelo interesse nacional e deixando em aberto se o processo de adesão, de fato, será continuado.

As primeiras ações concretas do atual governo incluíram a reestruturação da organização administrativa federal com o desmembramento do Ministério da Economia e restabelecimento dos Ministérios do Planejamento, Fazenda e Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior [2] e a revogação do decreto publicado ao apagar das luzes de 2022 e que estabelecia desconto de 50% sobre o AFRMM (Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante) a partir de 1/1/2023.

A revogação das alíquotas mais benéficas de ARFMM foi vista, de maneira geral, com maus olhos pelo setor privado, já que significa a manutenção de um alto custo para o comércio exterior — que já vem sofrendo com aumentos significativos no custo do transporte marítimo — e que vê a mudança repentina na regra como fonte de insegurança jurídica.

Já a separação do Ministério da Economia de forma a restaurar a independência da Fazenda e do MDIC divide opiniões. Enquanto muitos acreditam que o desmembramento trará maior burocracia, lentidão e despesas ao governo federal, outros destacam a mudança como forma de garantir maior tecnicidade e espaço para decisões dialogadas e que melhor equilibrem os interesses nacionais.

Somente saberemos dos desdobramentos da mudança institucional mais à diante, cabendo, neste momento, apenas ressaltar e reconhecer que houve nomeação de um número considerável de mulheres para a linha de frente dos três ministérios e com competência e experiência reconhecidas na área, a exemplo de Tatiana Prazeres (Secex/MDIC), Marcela Carvalho (Camex), Ana Paula Repezza (Apex-Brasil), Andrea Macera (Competitividade/MDIC), Tatiana Rosito (Sain/MF) e Renata Amaral (Assuntos Econômicos/Planejamento). Com isso, além de uma maior igualdade de gênero, o que se espera é que, independente de a política do atual governo tender ao apoio da indústria nacional em detrimento de práticas abertamente liberais, os compromissos com o multilateralismo e com as regras da OMC sejam mantidos e respeitados.

Por outro lado, ainda existem dúvidas sobre os rumos das políticas e ações relacionadas a controles e processos aduaneiros vinculados aos demais anuentes e à própria Receita Federal do Brasil (RFB).

No caso da RFB, o que vem sendo sinalizado ao mercado é que o governo atual precisará garantir arrecadação para a União. Ainda que isto, por si só, não signifique alterações na postura atual do órgão — que gradualmente vem imprimindo uma visão pró-facilitação do comércio em suas práticas, com maior automação e desburocratização de rotinas —, muitas empresas temem que o foco arrecadatório venha a ofuscar a prevalência do caráter extrafiscal com que o comércio exterior deve ser tratado.

No âmbito do Carf, tivemos a publicação de MP nº 1.160/2023 que restabeleceu o voto de qualidade nos casos de empate. Todavia, a novidade não deve trazer consequências significativas à esfera administrativa aduaneira, uma vez que, por força das limitações impostas pela Portaria ME nº 260/2020, o antigo governo já havia restringido a possibilidade de desempates favoráveis ao contribuinte a casos exclusivamente relacionados a exigências de crédito tributário, o que excluía sua aplicação ao universo das regras de comércio exterior.

Por outro lado, no final do último ano foi veiculada notícia de que os processos que versam sobre matéria aduaneira seriam direcionadas a câmara específica dentro da 3ª seção de julgamento, como forma de garantir maior especialidade e celeridade na análise de tais processos. Independente das mudanças previstas quanto ao limite de alçada [3] — e que devem restringir o número de processos que chegam ao órgão — o que se espera é que a iniciativa seja levada à diante, visto ser medida que beneficia igualmente a Fazenda e os operadores de comércio exterior.

Por fim, um último ponto a ser avaliado — e, em minha visão pessoal, um dos mais relevantes — diz respeito às medidas de facilitação do comércio já pactuadas e ratificadas pelo Brasil, mas que ainda estão pendentes de implementação. Com a separação entre Fazenda e MDIC, os quais possuem competência conjunta e/ou complementar para a maior parte das áreas sobre as quais versam os acordos internacionais sobre a matéria, será necessário que os Ministros e Secretários das pastas aprendam a caminhar de forma afinada – o que pode ser um desafio, seja no âmbito do Comitê Nacional de Facilitação do Comércio (Confac) no âmbito da Camex, seja fora dele.

Espera-se que medidas como o PUComex, o Programa Operador Econômico Autorizado (OEA) em sua modalidade integrado, o pagamento eletrônico na importação e o processamento aduaneiro antecipado saiam do papel neste próximo ano. Para tanto, torna-se essencial que a RFB continue aprofundando seus investimentos e ações na desburocratização e simplificação de procedimentos e rotinas, o que necessariamente deve vir acompanhado de revisões normativas.

Por fim, o período de graça referente ao prazo de implementação da Convenção de Quioto Revisada (CQR) [4], assinada no âmbito da Organização Mundial das Aduanas (OMA), se encerrou em dezembro de 2022, o que trouxe a obrigação ao Brasil de garantir o duplo grau de jurisdição a todas as autuações em matéria aduaneira, afetando diretamente o rito atual pelo qual os processos de perdimento de bens são submetidos [5]. Não obstante, ainda não houve qualquer posicionamento oficial sobre quais mudanças normativas e procedimentais seriam implementadas, o que vem gerando apreensão na comunidade do comércio exterior e incita a busca por soluções judiciais – o que está longe de ser uma solução positiva para qualquer uma das partes envolvidas.

Diante do exposto, nossa previsão é de que o novo governo restaure parte das premissas já aplicadas na gestão do comércio exterior do Brasil em anos anteriores, com uma postura menos arrojada em termos de abertura comercial e com maior atenção aos pedidos e necessidades do setor industrial nacional. Todavia, espera-se que os compromissos que vêm sendo assumidos ao longo da última década em matéria de facilitação do comércio sejam respeitados e sua implementação continuada e acelerada, visto que visam beneficiar igualmente importadores e exportadores, sendo um degrau importante para o ganho de competividade global das empresas brasileiras.

Acreditamos que haverá, inevitavelmente, alguns "ajustes de rota" em relação ao que havia sido determinado pelo governo anterior em termos de abertura comercial e redução de medidas de defesa comercial, o que, se realizado de forma técnica, moderada e sem perder de vista a necessidade de uma maior integração do Brasil ao comércio mundial — o que significa incluir setores que não sejam apenas o agronegócio —, a agenda aduaneira para 2023 e para os próximos quatro anos será positiva.

Nesse sentido, cabe lembrar que governo, setor privado e academia têm responsabilidade conjunta na consolidação e realização desta e de outras agendas, o que significa que, se quisermos um bom ano, precisamos colaborar para a sua realização.

 

[1] TREVISAN, Rosaldo. Mudanças de normas e julgamentos vão afetar setor aduaneiro em 2022. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2022-jan-18/territorio-aduaneiro-novas-normas-julgamentos-afetar-setor-aduaneiro-2022>.

[2] Medida Provisória (MP) n. 1154/2023

[3] A MP nº 1.160/2023 modificou a regra então vigente quanto ao limite de alçada, majorando o valor original mínimo para envio dos processos ao Carf de 60 salários-mínimos para 1.000 salários-mínimos. Com isso, processos de valor inferior a este piso serão julgados definitivamente pelas Delegacias de Julgamento da Receita Federal (DRJs), sem a possibilidade de recurso ao Carf.

[4] Decreto nº 10.276/2020.

[5] O atual processo de perdimento de bens é regido pelo art. 27, § 4º do Decreto-Lei nº 1455/72, que estabelece rito sumário, sem possibilidade de recurso a instância superior e independente nos termos previstos no Capítulo 10 do Anexo Geral da CQR.

Autores

  • é doutora em Direito do Comércio Internacional, advogada, consultora especializada em Comércio Internacional e Direito Aduaneiro, professora de pós-graduação e conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) do Ministério da Economia.

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