Opinião

Comentários sobre a decisão do STJ no caso dos links patrocinados

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16 de janeiro de 2023, 16h16

Na opinião [1] do ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, um dos feitos mais importantes julgados por aquela corte no ano de 2022 cuidou dos chamados "links patrocinados". Em síntese, o cerne daquela contenda já vinha sendo reiteradamente decidido pelas cortes estaduais locais, em especial o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo [2], contemplando conflitos de interesses correlacionados ao (1) uso de marca alheia e (2) a adoção de uma prática publicitária conhecida de contratação de provedores de busca para que outorguem destaque no uso de algumas palavras-chave.

No julgado em relevo, todos os ministros da 4ª Turma do Tribunal da Cidadania concordaram com o acerto do TJ-SP em condenar o réu/recorrente por violação da propriedade industrial da parte contrária. No caso concreto, os dois sujeitos processuais integram o mercado relevante de agências de viagem, ostentam signos distintivos completamente díspares entre si, mas o réu havia adotado a estratégia econômica em usar o elemento peculiar da marca (e do nome empresarial) do concorrente para que, quando alguém fizesse a busca na internet usando o Google, houvesse predominância no resultado do não-titular da marca.

Ou seja, a moldura fática levada ao STJ tinha como tópicos incontroversos: (a) que o recorrido/autor era titular da marca Braun® sob o registro 819199320 perante o INPI; (b) que o recorrente/réu não dispunha da licença para o uso da marca da outra parte; e (c) que o recorrente/réu pagou para que o Google exibisse o seu sítio virtual com destaque, quando a marca do concorrente '(a)' fosse digitada no contexto da especialidade para a qual o registro foi constituído.

Para que não haja mistérios, prontamente se concorda com o acerto do juízo instrutor, do TJ-SP e do STJ, que mantiveram a condenação do ofensor às obrigações de não-fazer (cessação do uso da marca alheia) e da reparação pelos danos praticados. De outro lado, algumas das passagens do acórdão são controversas, merecendo três comentários específicos.

Primeiro comentário: em excertos das decisões das instâncias ordinárias (transcritos na decisão do Tribunal Superior) asseverou-se que os atos da sociedade empresária teriam sido caracterizados pela prática do parasitismo. Afora eventual uso atécnico da expressão metafórica, no contexto concorrencial sabe-se que o parasitismo exige certa descrição [3], pois se o parasita atua de maneira brusca ele acaba por "matar o hospedeiro". Ou seja, não se confunde a concorrência predatória (ostensiva) com a parasitária (que exige camuflagem ou clandestinidade). É difícil defender tratar-se de algo sorrateiro uma conduta facilmente constatável em uma simples consulta no Google. Além disso, não se notou na leitura da decisão alguma sistematicidade da conduta do ofensor, que é outra característica do parasitismo. "Não há verão com uma só andorinha", tal como não há parasitismo com uma isolada conduta ilícita. Como já se afirmou, o concorrente parasitário é espécie de "assassino em série" e não capataz de morte isolada.

Segundo comentário: a decisão recorrida do TJ-SP e o julgado do STJ frisaram, reiteradamente, que o ato do recorrente/réu constituiria concorrência desleal pelo uso da marca registrada do recorrido/autor. Aqui houve alguma sobreposição entre as categorias díspares da concorrência interdita para com a concorrência desleal [4]. Tendo em vista que a proteção contra atos de disputa pérfida goza de subsidiariedade [5] (tal como o conhecido "Soldado de Reserva", de Nelson Hungria) à tutela dos direitos de exclusividade, não faz sentido [6] invocar a incidência da complexa categoria da concorrência desleal se o ato do contrafator já era sancionável pela violação da propriedade da marca. Em outras palavras, o resguardo contra a infração aos direitos do titular da marca é mais simples de provar (até porque dispensa a demonstração do efetivo desvio da clientela) e mais fácil de manejar do que a justificativa contra a suposta concorrência desleal. Optou-se por uma complexidade desnecessária para resolver o conflito, ainda que tal tenha sido norteada pelo conteúdo do preceito do artigo 4º do CPC.

Terceiro comentário: em um dos excertos mais contundentes do voto do relator, foi asseverado o seguinte: "Com efeito, será desleal a concorrência sempre que se verificar a utilização de esforços que se distanciam da ética". Apesar de a passagem ostentar teor retórico convincente, é útil destacar que a correlação entre a ética e a deslealdade, para efeitos jurídicos no contexto concorrencial, poderá ser equivocada [7]. Tendo em vista que, para efeitos da atração das consequências do abuso da liberdade de concorrer (concorrência desleal [8]), é mister se analisar as peculiaridades do mercado relevante, noções gerais sobre práticas cotidianas (ética) poderão destoar o que seja esperado naquele contexto. Ou seja, o standard [9] do mercado de venda de carros usados dificilmente coincidirá com aquele dos produtos farmacêuticos. Conformar todos os setores econômicos com alguma beatificação ou unificação de condutas é contrastar com a noção de usos e costumes (pluralismo), tão típica ao direito comercial como uma de suas fontes mais relevantes [10].

Por fim, como decisão inaugural do STJ no cotejo aos limites pelo link patrocinado nas atividades concorrenciais, é preciso elogiar o entendimento daquele órgão judicial fracionário.

Tendo em vista que a atividade dos buscadores é eminentemente publicitária [11], o que restou em aberto para futuras decisões — já que o prestador do serviço publicitário não era demandado no feito em comento — é saber sobre a responsabilidade civil de tais sociedades empresárias. Em uma projeção meramente especulativa, entende-se como improvável que uma sociedade empresária que lucre tanto com anúncios pagos, porventura em violação às marcas registradas de partes estranhas ao contrato, possa ficar imune à responsabilização devida. Seja na análise do risco (em não consultar o banco de dados público do INPI) ou na partilha dos ônus, o capitalismo raramente coincide com a ausência de sindicabilidade. Aliás, a propriedade intelectual é caracterizada pela existência da responsabilidade própria não só dos ofensores/concorrentes, mas também dos terceiros que contribuem [12] para o ato e contrafação.

 


[1] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/retrospectiva-e-recomecos-um-pouco-de-reflexao-nesta-hora-30122022, consignando a relevância, indiscutível, do julgado STJ, 4ª Turma, min. Luis Felipe Salomão, REsp 1.937.989-SP, DJ 7/11/2022.

[2] Um exemplo de qualidade na fundamentação e acerto no resultado em matéria símile vide o minucioso acórdão do TJ-SP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Des. Cesar Ciampolini, AC 1024806-11.2019.8.26.0554, j. 27/4/2022.

[3] DUVAL, Hermano. Concorrência Desleal. São Paulo: Saraiva, 1976, p. 314.

[4] Para melhor análise das distinções permita-se remissão ao BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Curso de Concorrência Desleal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, p. 87 e seguintes.

[5] ASCENSÃO, José de Oliveira. Concorrência Desleal. Coimbra: Almedina, 2002, p. 352.

[6] Destaca-se a passagem: "Diante desse cenário, penso ser acertado o reconhecimento de infração à legislação regulamentadora da propriedade industrial e que a utilização por terceiros de marcas registradas, como palavras-chave em links patrocinados com indiscutível desvio de clientela caracteriza ato de concorrência desleal". STJ, 4ª Turma, Min. Luis Felipe Salomão, REsp 1.937.989-SP, DJ 07.11.2022.

[7] BARBOSA, Denis Borges. Tratado da Propriedade Intelectual. Volume 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

[8] Vide o clássico de SILVEIRA, Newton. Concorrência Desleal e Propriedade imaterial. Revista Arquivos do Ministério da Justiça, 133:121-144, jan/mar, 1975. O professor Newton (1939-2022*) mudou a vida deste autor com suas aulas, lições e sua generosidade. O grande nome da propriedade intelectual brasileira nascido na década de 1930 segue vivo em todos que o amam, tal como eu.

[9] LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 2ª Edição, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1982, p. 166.

[10] FORGIONI, Paula Andrea. A evolução do direito comercial brasileiro: da mercancia ao mercado. 2ª Edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 190.

[11] VAIDHYANATHAN, Siva. The Googlization of Everything. (And Why We Should Worry). Los Angeles: University of California Press, 2012, p. 9.

[12] MAIA, Lívia Barboza. Responsabilidade Civil na Infração por Contribuição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023 (no prelo). No direito positivo vide art. 42, parágrafo 1º, da Lei 9.279/96.

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