Controvérsias Jurídicas

8 de janeiro de 2023: um triste dia para a democracia

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

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12 de janeiro de 2023, 9h46

Eleito presidente do Brasil em 1955, Juscelino Kubitschek prometeu fazer o país crescer o equivalente a 50 anos em apenas cinco. Dentre outras iniciativas, liderou um movimento para reformar o espaço urbano das grandes cidades, privilegiando os traços modernistas e valorizando expoentes da arquitetura nacional. O traçado de uma nova capital seria o ápice desse movimento, tendo em vista que Brasília seria edificada no planalto central totalmente do zero, tornando-se ícone urbanístico no mundo.

Spacca
Depois de finalizada, Brasília passou a ser estudada por escolas de arquitetura de renome internacional, sendo comparada, inclusive, a outras capitais com impactantes projetos arquitetônicos, como Canberra (Austrália) e Washington (EUA). Lúcio Costa, seu principal idealizador, buscou intercalar uma cidade que apresentasse aos brasileiros o futuro, sem, contudo, abandonar os laços históricos formadores do nosso povo.

Diferentemente de grandes obras ornamentais encontradas em outras cidades, a escola de arquitetura modernista brasileira da época optou por outro caminho, criando o conceito de arquitetura como escultura. Assim, a construção dos edifícios públicos formadores do Eixo Monumental, além de abrigar o aparato burocrático do Estado, deveria compor a paisagem do ambiente do mesmo modo que as obras de arte formam a exposição em um museu.

O eixo central da capital abriga a sede administrativa dos órgãos e entes que compõem a administração pública direta e indireta da União, bem como a Catedral, a Biblioteca e o Museu Nacional. Na ponta de estrutura de construções, destaca-se a Praça dos Três Poderes, sede do Congresso Nacional, presidência da República e Supremo Tribunal Federal. A beleza arquitetônica de Brasília, todavia, não se esgota apenas em seu eixo principal, sendo possível admirar as obras modernistas em outras locais, tais como a Ponte JK, Palácio da Alvorada, a sede do Superior Tribunal de Justiça, Palácio do Jaburu, Panteão da República, Memorial JK e Memorial dos Povos Indígenas. Desse modo, a materialização do sonho de Kubitschek não pode ser vista como apenas mais um conglomerado urbano, mas, sim, como um acervo do patrimônio histórico e artístico brasileiro a céu aberto.

A partir deste cenário, é possível começar a dimensionar os enormes prejuízos materiais e morais causados pelas ações violentas ocorridas durante as manifestações realizadas no último dia 8 de janeiro, quando, a pretexto de expressarem seu descontentamento com o resultado das eleições, vândalos invadiram o Congresso, o Palácio do Planalto e a sede do STF, deixando um rastro de destruição.

Há relatos de avarias em obras como na pintura As Mulatas, de Di Cavalcanti; no relógio Balthazar Marinot, presente da realeza francesa a D. João VI e trazido ao Brasil em 1808; nas esculturas de O Flautista, de Bruno Giorgi, Galhos e Sombras, de Frans Krajcberg e Bailarina, de Vitor Brecheret, e no retrato de José Bonifácio de Andrada, feito por Oscar Pereira da Silva em 1972. Como se não bastasse, as depredações também atingiram o Painel Vermelho e o Muro Escultório, de autoria de Athos Bulcão, artista plástico que foi um dos maiores colaboradores de Oscar Niemeyer; a pintura Bandeira do Brasil, de Jorge Eduardo; o brasão dourado da República que ornava o plenário do STF e a histórica mesa de despachos de Kubitschek (1955-1961).

Além dos inestimáveis prejuízos ao patrimônio histórico, cultural e artístico nacional, as ações criminosas revelam a chaga do autoritarismo e do golpismo que ainda permeia setores da sociedade. A indignação com os resultados das eleições de 2022 jamais poderia servir de pretexto para o cometimento de crimes.

Não se pode admitir, sob nenhuma forma, a mitigação do Estado Democrático de Direito. Pedir a retirada forçada de um presidente eleito ou a deposição arbitrária de um membro da Suprema Corte não são reivindicações protegidas pela garantia constitucional da liberdade de expressão, mas sim, traduzem a usurpação de um dos mais significativos pilares da democracia com o intuito de solapá-la.

Como reação às ações criminosas encetadas, foi decretada pelo presidente da República intervenção federal no Distrito Federal até 31 de janeiro. Também foi determinado, pelo STF, o afastamento liminar do governador distrital, pelo prazo de 90. Além disso, inúmeros manifestantes foram presos sob a acusação de terem cometido os crimes de dano (CP, artigo 163), incitação ao crime (CP, artigo 286), associação criminosa (CP, artigo 288), prevaricação (CP, artigo 319), abolição violenta do Estado Democrático de Direito (CP, artigo 359) e artigos 2º, 3º, 5º e 6º da Lei nº 13.260/16, que regulamenta o disposto no inciso XLIII do artigo 5º da Constituição Federal, conceituando e disciplinando os crimes de terrorismo e organização terrorista. Nesse último aspecto, à luz da legislação em vigor, os atos criminosos em questão não encontram guarida na Lei Federal nº 13.260/16, uma vez que ela só permite a qualificação jurídica de terrorismo "por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia ou religião", hipótese diversa da ora tratada.

Diversamente de tantas outras invasões a prédios públicos já ocorridas, o que distingue a atual é o seu objetivo, consubstanciado no desejo de extinguir o regime democrático por meio de uma intervenção militar. É próprio das democracias a demonstração de insatisfação por meio de greves, passeatas, paralisações e atos que eventualmente causem tumultuo, como comumente se vê em pautas como as da reforma agrária, descriminalização do aborto ou movimento pró-vida. Tais demandas se inserem no rol de reivindicações por direitos, liberdades e garantias constitucionais, independentemente do espectro político que as encampe.

Tanto é assim, que a própria lei antiterrorismo garante em seu artigo 2º que: "O disposto nesse artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida na lei".

O dolo dos agentes e os meios empregados na empreitada também demonstram a adequação típica às figuras do CP, artigos 359-L (abolição violenta do estado democrático de direito) e 359-M (golpe de Estado). Originário da junção dos artigos 17 e 18 da extinta Lei de Segurança Nacional, diz o texto do artigo 359-L que é crime "Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais" (Pena: reclusão, de 4 a 8 anos, além da pena correspondente à violência). Por se tratar de crime de atentado ou empreendimento, pouco importa se os objetivos golpistas foram alcançados, punindo-se igualmente a forma tentada e consumada.

Por sua vez, diz o artigo 359-M que é crime "Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído" (Pena – reclusão, de 4 a 12 anos, além da pena correspondente à violência). Sua ação nuclear consiste na tentativa de depor, de forma violenta ou ameaçadora, um governo que foi legitimamente constituído. O elemento subjetivo do tipo é o dolo, traduzido na vontade livre e consciente do agente em aviltar a vontade popular, destituindo um governo democraticamente eleito. Assim como na figura anterior, por se tratar de crime de atentado ou empreendimento, não é prevista a modalidade tentada.

Por constituir um crime em si mesmo, o crime de dano ao patrimônio público não é absorvido pelas condutas mais gravosas. As reivindicações dos grupos invasores eram claras e em nada se confundiam com a inteireza das peças quebradas como meio de atingimento da pauta. Dessa maneira, não se pode admitir a avaria nas peças históricas já mencionadas como meio executório de outro delito. Resta inequívoco o animus nocendi, consubstanciado na vontade dos agentes em causar prejuízo. A conduta se torna ainda mais reprovável pela incidência da qualificadora do inciso III, quando o dano atinge "patrimônio da União, de Estado, do Distrito Federal, de Município ou de autarquia, fundação pública, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviços públicos".

Com relação a associação criminosa, a imprensa já começa a divulgar os primeiros indícios de que houve um conluio prévio arquitetado, organizado, estimulado e financiado, tudo com premeditação. A princípio, foram noticiadas evidências que autorizam concluir pela presença do vínculo associativo. Isto porque, o envio de centenas de ônibus de varias partes do país para Brasília denota que a comunicação entre os organizadores já se dava há bastante tempo, diferenciando o caso em questão do mero concurso eventual de agentes.

Quanto à possível prevaricação, ou mesmo participação dolosa por omissão, nos termos do artigo 13, § 2º, alínea "a" (crime omissivo impróprio), será necessária a demonstração, no caso da prevaricação, da finalidade especial do agente de buscar, com seu comportamento desidioso e omisso, a satisfação de interesse pessoal (CP, artigo 319). No que toca ao crime omissivo impróprio, exigem-se três requisitos: possibilidade de agir, omissão e desejo de concorrer para o resultado. A incompetência extrema demonstrada por todos os órgãos de segurança, tanto do governo federal, quanto distrital, está a merecer adequada e isenta investigação, orientada pelo princípio da impessoalidade.

Agora é aguardar a individualização das responsabilidades, observância do devido processo legal e punição exemplar. Triste dia para a democracia.

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

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