Opinião

A tentação jacobina e o uso político do processo penal

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11 de janeiro de 2023, 18h19

"Uma lei da Inglaterra, criada sob Henrique VIII, declarava culpados de alta traição todos aqueles que predissessem a morte do rei. Era uma lei muito vaga. É tão terrível o despotismo, que ele se volta até contra os que o exercem. Na última enfermidade do rei, os médicos jamais lhe ousaram dizer que estava em perigo; e agiram, sem dúvida, consequentemente." (Montesquieu) [1]

 

O processo penal não é apenas um instrumento para a aplicação do Direito Penal, mas fundamentalmente um instrumento estruturado para tutelar as liberdades públicas. Como leciona LUCCHINI, "le leggi del penale procedimento sono l'indice più sicuro del grado di civiltà e di politica libertà di un popolo" [2]. Juridicamente, essa é a principal função do processo penal; politicamente, a situação é um pouco diferente. Por outras palavras, enquanto que para os Estados totalitários o processo penal tem a função apenas de facilitar e até de coonestar a repressão ilegítima contra inimigos, nos Estados democráticos e liberais o processo penal tem, ao lado de outras igualmente relevantes, a função precípua de tutela jurídica das liberdades públicas, como bem leciona GRAZIANO: "Fine della procedura non è la repressione, ma la tutela giuridica, poichè non vi ha luogo legittimo alla repressione senza la proclamazione del diritto; la repressione è conseguenza di questo" [3]. Daí o devido processo legal como garantia fundamental do cidadão contra o Estado.

A melhor maneira de entender a importância do devido processo legal é por meio da análise de suas violações, como bem assevera BENJAMIN CONSTANT: "A horrenda lei segundo a qual Robespierre declarou redundantes as provas e aboliu os advogados de defesa é uma homenagem ao devido processo" [4]. A lei em questão é a medonha Loi du 22 Prairial, que, voltada a eliminar mais rapidamente os inimigos políticos de Robespierre e sua trupe, eliminou também o interrogatório do acusado perante os tribunais, negou a ele a assistência de um defensor, deixou à discrição dos tribunais ouvir ou não as testemunhas, e, por fim, declarou que as sentenças se limitariam a duas respostas: ou a absolvição ou a condenação à morte [5]. Quando o objetivo do Estado é eliminar os dissidentes políticos, ele deve aumentar o poder repressivo para esse fim, e fazer então precisamente o que Robespierre fez: abolir o direito de defesa e o devido processo. O aspecto político do direito de defesa fica claro quando se o analisa sofrendo essas investidas de tiranos. Deve-se compreender então o direito de defesa e o devido processo legal como elementos fundantes de Estados democráticos e liberais.

Hoje, vemos o processo penal sendo desviado de sua vocação de tutela das liberdades públicas para se tornar um sinistro instrumento nas mãos das facções políticas. Aquilo que deveria ser uma disputa democrática entre partidos e candidatos se convola em um sistemático uso do processo para atingir possíveis adversários políticos, pretéritos e futuros. Terrível legado da famigerada "lava jato"… Um método eficaz para perseguir os dissidentes, e que foi usado à exaustão pelos lavajatistas, é a criação de slogans. "Combate à corrupção!", era o slogan. A Revolução Francesa também teve o seu: "suspeitos"! Para coonestar a repressão, os revolucionários criaram a famigerada Loi des Suspects, que mereceu a seguinte consideração de CARLYLE: "Nunca lei mais terrível vigorou numa nação de homens" [6]. Segundo LOUIS JACOB, o intuito da lei era enquadrar como suspeitos "les adversaires du nouvel ordre" [7]. Dá-se todo um aspecto jurídico a uma figura vaga e imprecisa, legitimando-se a repressão contra os adversários políticos. Quanto mais vago, tanto mais fácil a perseguição. O direito de ser bem acusado, corolário lógico do devido processo, cede passo às acusações as mais vazias e imprecisas possíveis. MONTESQUIEU disse: "Basta que o crime de lesa-majestade seja vago para que o governo degenere em despotismo" [8]. Segundo BRODEUR e JOBARD, não foi o Terror Jacobino que iniciou a repressão na França, "mais le simple changement de régime" [9]. Isso tudo revela como o processo penal é objeto de tentação da política, que procura sempre cooptá-lo para os fins políticos daqueles que detém o poder da ação penal, da jurisdição e todo o aparato de Estado.

Preocupa-me sobremaneira a atual conjuntura política e jurídica no Brasil, que vem produzindo um sectarismo até mesmo em juristas que deveriam ser os primeiros a se opor a qualquer tipo de desvio do processo penal para fins políticos. BENJAMIN CONSTANT bem alertou que a política transforma os homens em facciosos, fazendo-os enxergar o arbítrio estatal como algo a ser, não combatido, mas direcionado ao inimigo: "Uma característica de todos os partidos políticos é que eles não odeiam o despotismo como tal — a primeira coisa que precisa ser odiada numa sociedade livre —, mas só esse ou aquele ato despótico que parecem contrários a seus objetivos" [10]. Esse modo de pensar, como é alimentado por todos os partidos, acaba aumentando o poder do Estado sobre as liberdades públicas, e então "o governo arbitrário é considerado apenas algo a ser simplesmente arrebatado do inimigo" [11], e não a ser limitado em prol dos direitos individuais. Os tempos turbulentos por que passa o Brasil demonstram como, infelizmente, o processo penal é facilmente cooptado para esses fins políticos. Alguns juristas não se importam em ver uma violação de direitos fundamentais, já que o alvo da medida arbitrária é um antagonista político. A censura, a perseguição, a prisão ilegal sem processo, processos secretos e inacessíveis ao advogado, tudo isso passa a ser aceito porque é realizado contra o inimigo político. O processo deixa então de se tornar um instrumento de tutela das liberdades públicas para se convolar em um instrumento organizado de perseguições políticas.

O momento político-jurídico no Brasil nunca foi tão perigoso para as liberdades públicas, ainda mais após os lamentáveis e criminosos atos contra as instituições públicas em Brasília. Nada obstante, é precisamente nestes momentos — onde, sem dúvida, a repressão precisa ser exemplar e enérgica — que a reafirmação do devido processo legal como garantia fundamental precisa ser entoada por todos. A tentação jacobina de condenar e executar sumariamente existe em todos nós, e é por conta disso que o devido processo foi institucionalizado, sempre lembrando que Robespierre, que, com a sua virtude e seu terror, levou tantos à guilhotina, estava nada menos do que pavimentando o caminho para a sua própria destruição…

 


[1] MONTESQUIEU. Do espírito das leis, Trad. Roberto Leal Ferreira, São Paulo: Martin Claret, 2014, p. 279.

[2] LUCCHINI, Luigi. Elementi di procedura penale, Firenze: G. Barbèra Editore, 1895, p. 7.

[3] GRAZIANO, Silvestro. La difesa penale nell’istruttoria, Seconda Edizione, Bologna: Fratelli, 1913, p. 102.

[4] CONSTANT, Benjamin. Princípios de política aplicáveis a todos os governos, Trad. Joubert de Oliveira Brízida, Rio de Janeiro: Editora Topbooks: Liberty Classics, 2007, p. 270.

[5] Ver: TULARD, Jean. Et al. Histoire et dictionnaire de la Révolution Française: 1789-1799, Paris: Robert Laffont Éditions, 1988, p. 1.040.

[6] CARLYLE, Thomas. História da Revolução Francesa, Trad. Antônio Ruas, 2ª Edição, São Paulo: Edições Melhoramentos, 1961, p. 645.

[7] JACOB, Louis. Les suspects pendant la Révolution: 1789-1794, Libraire Hachette, 1952, p. 8.

[8] Do espírito das leis…, p. 276.

[9] BRODEUR, Jean-Paul; JOBARD, Fabien. Citoyens et délateurs: La délation peut-elle être civique?, Paris: Éditions Autrement, 2005, p. 202.

[10] CONSTANT, Benjamin. Princípios de política aplicáveis a todos os governos…, p. 736.

[11] Op. cit., p. 737.

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