Opinião

Invasão das sedes dos Poderes, crimes multitudinários e individualização

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9 de janeiro de 2023, 20h18

No último dia 8 de janeiro assistimos, estarrecidos, às imagens daqueles que, atentando contra o Estado Democrático de Direito, invadiram as sedes dos três poderes da República para impugnar, pela força, o resultado das eleições e pedir uma intervenção ilícita das Forças Armadas.

As imagens divulgadas do interior do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal são chocantes: dos atos criminosos sobraram salões inteiros destruídos, móveis arrancados e quebrados, obras de arte de valor inestimável danificadas, itens doados por Estados estrangeiros ao Brasil furtados — ou, quiçá, roubados.

Com uma atuação aquém do ideal por parte dos órgãos de segurança, até o momento da finalização deste artigo, as notícias davam conta de que cerca de 300 pessoas haviam sido presas em flagrante durante a invasão, além de mais de 1000 outros presos durante a desmobilização dos acampamentos bolsonaristas nos quartéis, determinada pelo Ministro Alexandre de Moraes ainda durante a madrugada.

Aos operadores do Direito, surgiu logo uma dúvida: com uma gama tão ampla de crimes praticados, sendo muitos os responsáveis e muitos mais os atos praticados, como atender ao comando legal de individualização das condutas de cada um dos autores?

Segundo o Código de Processo Penal, em seu artigo 41, uma futura denúncia deverá conter, além da exposição do fato criminoso, a descrição de todas as circunstâncias do crime.

Aury Lopes Jr. ensina que, em caso de concurso de agentes e/ou crimes, deverá haver uma clara definição da conduta de cada agente, sendo inadmissível uma denúncia genérica que não faça a individualização da conduta praticada por cada réu [1].

Quanto aos eventuais crimes praticados em face das instituições democráticas (artigos 359-L e 359-M do Código Penal), a descrição individualizada da conduta daqueles presos em flagrante no interior das sedes dos Poderes não deverá gerar maiores discussões: todos aqueles que invadiram os prédios públicos na tarde do dia 8 de janeiro parecem ter sido munidos da mesma intenção: mais que um "protesto passivo", utilizaram-se da violência para tentarem implementar um golpe de Estado — ainda que o autojulgamento de suas próprias capacidades possa ter sido hiperbólico.

Entretanto, como proceder em relação as condutas graves praticadas em face do patrimônio público, histórico e cultural guarnecido no interior de tais prédios, já que, ainda que eventuais crimes de dano possam ser eventualmente absorvidos pelos crimes contra o Estado Democrático de Direito, é certo que as graves condutas poderão servir para exasperar a reprimenda estatal.

A solução para isso poderá estar no estudo dos crimes multitudinários.

Referidos crimes podem ser classificados como aqueles praticados por uma multidão em tumulto, que deliberadamente e espontaneamente se organiza para a prática de um comportamento comum contra pessoas ou coisas[2].

Em algumas situações, especialmente nesses crimes multitudinários, é impossível especificar a contribuição individual de cada participante para a realização do delito. Isso é muito comum quando os agentes atuam de forma indistinta e difusa para cometer as infrações. Seria possível, assim, a acusação contra todos os agentes por participação englobada [3].

O Ministério Público do Estado de São Paulo, inclusive, aprovou sua tese de número 423, pela qual, "nos crimes multitudinários e de participação englobada, não se exige a descrição minuciosa de conduta de cada coautor, bastando a demonstração de um liame entre o agir e a prática delituosa, a permitir o exercício da ampla defesa".

Evidentemente, não apenas as ações criminosas de 8 de janeiro necessitam serem apuradas minuciosamente através de instrumentos próprios de investigação como o próprio reflexo processual penal dos crimes multitudinários merece um aprofundado estudo, o qual este singelo e breve artigo de opinião não se propõe a desenvolver. Para quem deseja verticalizar o estudo sobre o assunto, recomendamos a leitura do livro Crimes Multitudinários – Homicídio Perpetrado por Agentes em Multidão, de Márcio Augusto Friggi de Carvalho.

De qualquer forma, é essencial que o sistema de Justiça aja de forma efetiva para que as lamentáveis cenas não se repitam, para que os criminosos sejam responsabilizados e para que o Estado Democrático de Direito brasileiro possa se reerguer ainda mais forte desse triste episódio.

 


[1] LOPES JUNIOR, Aury. "Direito Processual Penal" São Paulo: Editora Saraiva, 2021.

[2] JESUS, Damásio. Direito Penal. Vol. 1. 37ª ed.. São Paulo: Editora Saraiva, 2020.

[3] BOSCHI, José Antonio Paganella. “Ação Penal”. 2ª ed.. Rio de Janeiro: Aide Editora, 1997.

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