Direito da Insolvência

A questão tributária em recuperação judicial: começa a ser trilhado o fim do impasse?

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9 de janeiro de 2023, 8h00

A reforma da Lei 11.101/2005 buscou em certa medida aclarar pontos específicos e superar divergências que na prática geravam o que parte da doutrina denomina "jurisprudência lotérica", em que as partes passam a contar com um fator imponderável: dependendo de quem for o juiz da causa, seu destino poderá ser completamente diferente.

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No tocante à questão tributária, embora mantida a redação do artigo 57 da Lei 11.101/2005, que prevê a comprovação da regularidade fiscal como requisito para a concessão da recuperação judicial e cuja aplicação era mitigada pelos tribunais pátrios, a Lei 14.112/2020 trouxe importantes alterações com relação ao prosseguimento das execuções fiscais (artigo 6º, §7º-B da Lei 11.101/2005), melhores condições de parcelamento e transação envolvendo débitos tributários (artigos 10-A, 10-B e 10-C da Lei 10.522/2002) e novas hipóteses de convolação em falência (artigo 73, V e VI da lei 11.101/2005).

Diante da mudança legislativa, que colocou à disposição das recuperandas novos incentivos ao equacionamento dos débitos tributários, parte da jurisprudência e da doutrina passou a entender que a orientação anterior no sentido de que o juízo recuperacional poderia dispensar a exigência da certidão negativa para a concessão da recuperação judicial estaria superada.

Neste sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) passou a exigir prova da regularidade fiscal das recuperandas para a concessão da recuperação judicial, em especial nos casos em que a aprovação do plano de recuperação judicial ocorreu após a vigência da reforma da Lei 11.101/2005. Com a alteração do entendimento outrora sedimentado inclusive para os processos em andamento, concluiu-se que não há direito adquirido a regime jurídico decorrente de construção jurisprudencial, concedendo-se prazos que variam de 30 a 180 dias para a comprovação da regularidade fiscal, inclusive ex officio.

No entanto, a questão não se uniformizou na medida em que o próprio STJ, mesmo após a vigência da reforma, tem mantido o posicionamento até então vigente em decisões monocráticas, no sentido de manter a dispensa da providência do artigo 57 da Lei 11.101/2005, considerada incompatível com o princípio da preservação da empresa.

Em síntese, a partir daí, passamos a ter o TJ-SP, na maioria dos casos, exigindo prova da regularidade fiscal como requisito legal para a homologação do plano de recuperação judicial ou eventuais aditivos, e o STJ mantendo a mesma linha do entendimento anterior à reforma legislativa nas inúmeras decisões monocráticas recentemente proferidas sobre o tema.

Diante desse quadro, o TJ-SP, cumprindo seu papel fundamental de uniformização da jurisprudência (artigo 926 do CPC), aprovou em 24/11/2022 os seguintes enunciados:

Enunciado XIX: Após a vigência da Lei 14.112/2020, constitui requisito para a homologação do plano de recuperação judicial, ou de eventual aditivo, a prévia apresentação das certidões negativas de débitos tributários, facultada a concessão de prazo para cumprimento da exigência.

Enunciado XX: A exigência de apresentação das certidões negativas de débitos tributários é passível de exame de ofício, independentemente da parte recorrente.

O Enunciado XIX tem fundamental importância para a análise da questão e deve ser interpretado à luz da jurisprudência atual do TJ-SP. Com efeito, a partir da sua redação interpreta-se que a comprovação da regularidade fiscal é requisito para a homologação de planos de recuperação judiciais e eventuais aditivos, sendo que o TJ-SP estabeleceu como critério temporal a data da deliberação assemblear:

"Direito intertemporal. Não há direito adquirido a regime jurídico. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. Requisitos para concessão de recuperação judicial que devem ser apurados tal como previstos, no ordenamento jurídico, à época da deliberação da assembleia geral de credores sobre o plano de recuperação judicial. Tempus regit actum. Art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal; art. 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Assim, não se pode invocar orientação jurisprudencial anterior à entrada em vigor da Lei 14.112/2020 caso a deliberação assemblear seja posterior, como ocorre na hipótese" (TJ-SP; Agravo de Instrumento 2067179-82.2021.8.26.0000; relator: des. Cesar Ciampolini; 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; data do julgamento: 20/10/2021; data de registro: 27/10/2021).

Além disso, o Enunciado XIX, à luz do entendimento acima colacionado, abrange expressamente as hipóteses de aditamento a planos de recuperação judicial, sendo este ponto essencial para a solução de possíveis controvérsias, pois em razão da pandemia de Covid-19 diversas empresas que já tinham seus planos homologados em data anterior à vigência da Lei 14.112/2020 (23/01/2021) e apresentaram novos aditivos passaram a sustentar a inaplicabilidade da nova lei para condicionar a nova homologação à prova da regularidade fiscal.

Desse modo, de acordo com a análise aqui exposta, todas as deliberações assembleares sobre planos de recuperação judicial ou eventuais aditivos ocorridas após a vigência da Lei 14.112/2020 seguem o princípio geral do tempus regit actum, devendo a sua homologação ser precedida da apresentação das certidões negativas de débitos tributários prevista no art. 57 da Lei 11.101/2005.

Já o Enunciado XX vai em linha com o entendimento já sedimentado pelo TJSP, no sentido de que compete ao Judiciário o exame de ofício a questão da legalidade do processo recuperacional e falimentar na medida em que se trata de questão de ordem pública e em conformidade com o artigo 933 do CPC devem ser conhecidas de ofício. Aliás, não é por outra razão que o enunciado deixa expresso que a essas situações aplica-se o efeito translativo dos recursos, o que significa dizer que a questão de deve ser conhecida pelo órgão julgador mesmo que o recurso tenha objeto distinto.

Evidente que a edição dos enunciados acima não implica o fim dos debates, por dois motivos.

O primeiro, é que o entendimento do TJ-SP, apesar de ter de ser respeitado por todos os órgãos julgadores do estado de São Paulo, salvo melhor juízo, não vincula, por óbvio, o STJ, o que significa dizer que a questão da comprovação da regularidade fiscal como requisito para a concessão da recuperação judicial e se pode a questão ser conhecida de ofício pelo órgão julgador fatalmente continuará sendo objeto de inúmeros recursos especiais até pronunciamento específico quanto à divergência.

O segundo, é que alguns pontos importantes ainda não foram objeto de uniformização e, portanto, não são tratados pelos enunciados. Destacamos, a nosso ver, os principais:

a) A despeito da mudança jurisprudencial no tocante à aplicação do art. 57 da Lei 11.101/2005, não há, ainda, definição quanto às consequências de eventual não apresentação das certidões negativas, se sobrestamento ou extinção do processo, revogação do stay period ou convolação da recuperação judicial em falência.

b) As novas regras relacionadas a parcelamento e transação tributários são direcionadas à Fazenda Nacional, com possibilidade de edição de leis semelhantes pelos demais entes da federação. Nesse sentido, a possibilidade de equacionamento das dívidas tributárias de empresas em recuperação judicial em âmbito estadual e municipal não é uniforme e, nesse cenário, o Judiciário deve se deparar também com a questão da exigibilidade ou dispensa das certidões negativas das demais Fazendas Públicas, consideradas as peculiaridades de cada caso.

c) É possível que existam débitos tributários em litígio sem garantia do juízo, o que, salvo melhor juízo, impossibilitaria a obtenção de certidão positiva com efeito negativo. Ao se deparar com situações de impossibilidade de obtenção das certidões negativas ou positivas com efeito negativo, deverá o Judiciário avaliar, de acordo com as circunstâncias concretas, qual a melhor solução a ser adotada.

Todos esses últimos pontos são essenciais, pois além do inequívoco objetivo do legislador de preservar a atividade empresarial e seus benefícios econômicos e sociais, os tribunais superiores já consolidaram o entendimento que a Fazenda Pública não pode criar óbices ao livre exercício da atividade econômica (artigo 170, CF) como meio coercitivo para cobrança de tributos (Súmulas 70, 3.323 e 547/STF e 127/STJ).

Apesar de todos os problemas que ainda serão enfrentados, não há dúvida de que toda solução começa com o primeiro passo e este foi dado pelo TJ-SP, provocando desta feita que o STJ também se pronuncie em breve sob a forma de enunciado ou por meio de julgamentos colegiados.

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