Opinião

A exigência de CND para concessão da RJ após a Lei 14.112/2020

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  • Armando Lemos Wallach

    é pós-graduando em Direito da Insolvência recuperação da empresa e falência pela Faculdade Luiz Mário Moutinho e advogado da Vivante Gestão e Administração Judicial LTDA.

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  • Gabriela Carneiro Leão Campos

    é pós-graduanda em Direito da Insolvência recuperação da empresa e falência pela Faculdade Luiz Mário Moutinho e advogada da Vivante Gestão e Administração Judicial LTDA.

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6 de janeiro de 2023, 7h16

A Lei 11.101/2005 prevê em seu artigo 57 a obrigação do devedor de apresentar certidões negativas de débitos tributários. O Código Tributário Nacional apresenta a mesma exigência em seu artigo 191-A.

Por sua vez, o artigo 58 prevê que "Cumpridas as exigências desta Lei, o juiz concederá a recuperação judicial do devedor (…)", ou seja, o descumprimento da previsão do artigo 57, isto é, a não apresentação de certidões negativas de débitos tributários, implicaria a não concessão da recuperação judicial e extinção do processo, ou a suspensão do processo.

Contudo, a doutrina e jurisprudência passaram a flexibilizar a exigência, autorizando a concessão da recuperação judicial para empresas que não apresentavam CND [1].

O fundamento principal para dispensar a apresentação da CND era a ausência de parcelamento específico para empresas em recuperação judicial, previsto no artigo 68 da própria Lei 11.101/2005.

Com as alterações introduzidas pela Lei 14.112/2020, que trouxe parcelamentos específicos e também a possibilidade de transação tributária, ao alterar o artigo 10-A da Lei 10.522/02, com a inclusão dos artigos 10-B e 10-C, muitos passaram a entender que não caberia mais a dispensa de CND.

Doutrinadores e julgadores entenderam que o argumento utilizado até então para dispensar a CND perdeu sustentabilidade e, aparentemente, a questão estaria resolvida, pelo que não poderia ser dispensada a CND a partir de janeiro de 2021, momento do início da vigência das alterações legais promovidas pela Lei 14.112/2020.

O Tribunal de Justiça de São Paulo passou a determinar que, para os casos que tiveram a Assembleia Geral de Credores antes da vigência da Lei 14.112/20, deveria ser dispensada a CND, mas, para os casos cuja Assembleia Geral de Credores ocorresse após a vigência da Lei, ou seja, já com as possibilidades de parcelamento e transação tributária, deveria ser exigida a CND [2].

Todavia, verifica-se que, ainda após as alterações trazidas pela Lei 14.112/2020, o STJ segue entendendo pela dispensa da apresentação de CND para concessão da recuperação judicial, contudo, com fundamento principal na necessidade de observância da preservação da empresa, consoante dispõe o artigo 47 da LREF, que é o princípio basilar do Direito da insolvência [3].

Poderia se questionar se estaria dentro dos poderes do Superior Tribunal de Justiça negar vigência a um texto expresso de lei, que não admite exclusões ou mesmo entendimento diverso, um texto de lei objetivo e claro que determina a apresentação de certidão negativa de débito.

Contudo, o Supremo Tribunal Federal, pelo julgamento do ministro Dias Toffoli, entendeu que o STJ poderia interpretar as normas com base na teleologia da Lei 11.101/2005, ao analisar a Reclamação Constitucional com pedido de medida liminar, proposta pela União (Fazenda Nacional) contra acórdão da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.864.625/SP (Processo 2062049-53.2017.8.26.0000):

"Como se vê, não há repercussão direta no texto constitucional, senão reflexa, na controvérsia envolvendo a exigência de regularidade fiscal no processo de recuperação judicial. O que fez a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça foi olhar a teleologia da Lei nº 11.101/05, como um todo, e procurar a solução que apresentava menor restrição possível às normas legais que nortearam o instituto da recuperação judicial que é ´viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica" (REsp 1.187.404/MT, Corte Especial, relator ministro Luis Felipe Salomão, DJe 21/8/2013)

Em sua decisão, o ministro Dias Toffoli citou a ADC nº 46, que entendeu ser infraconstitucional a questão e que se tratava de "mera exegese de textos normativos infraconstitucionais (Lei 11.101/2005 e CTN)".

Ressalte-se que o fundamento para afastar a exigência da CND no Recurso Especial nº 1.864.625/SP não foi a ausência de parcelamento específico e compatível para empresas em recuperação judicial, mas sim a incompatibilidade da exigência com os princípios da lei. Como destacou a ministra Nancy Andrighi ao prestar informações:

"A conclusão unânime do órgão julgador (Terceira Turma) foi no sentido de que os motivos que fundamentam a exigência da comprovação da regularidade fiscal do devedor (assentados no privilegio do crédito tributário), não têm peso suficiente – sobretudo em função da relevância da função social da empresa e do princípio que objetiva sua preservação – para preponderar sobre o direito do devedor de buscar no processo de soerguimento a superação da crise econômico-financeira que o acomete."

E, ainda:

"Assim, dada a existência de aparente antinomia entre a norma do art. 57 da LFRE e o princípio insculpido em seu art. 47 (preservação da empresa), entendeu-se que a exigência de comprovação da regularidade fiscal do devedor para concessão do benefício recuperatório deveria ser interpretada à lua do postulado da proporcionalidade. Na hipótese concreta, a exigência legal não se mostrou adequada para o fim por ela objetivado – garantir o adimplemento do crédito tributário -, tampouco se afigurou necessária para o alcance dessa finalidade: (i) inadequada porque, ao impedir a concessão da recuperação judicial do devedor em situação fiscal irregular, acaba impondo uma dificuldade ainda maior ao Fisco, à vista da classificação do crédito tributário em terceiro lugar na ordem de preferências na hipótese de falência; (ii) desnecessária porque os meios de cobrança das dívidas de natureza fiscal não se suspendem com o deferimento do pedido de soerguimento."

Ressalte-se, ainda, que o posicionamento do STJ está em consonância com o entendimento firmado também pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 394, no qual restou declarada a inconstitucionalidade do artigo 1º, incisos I, III e IV da Lei 7.711/88, em que se entendeu por inconstitucional a exigência da apresentação de CND para diversas atividades, quais sejam:

I – transferência de domicílio para o exterior;
III – registro ou arquivamento de contrato social, alteração contratual e distrato social perante o registro público competente, exceto quando praticado por microempresa, conforme definida na legislação de regência;

IV – quando o valor da operação for igual ou superior ao equivalente a 5.000 (cinco mil) obrigações do Tesouro Nacional – OTNs;
a) registro de contrato ou outros documentos em Cartórios de Registro de Títulos e Documentos;
b) registro em Cartório de Registro de Imóveis;
c) operação de empréstimo e de financiamento junto a instituição financeira, exceto quando destinada a saldar dívidas para com as Fazendas Nacional, Estaduais ou Municipais.

No julgamento da ADI 394, o STF esclareceu que a corte tem "historicamente confirmado e garantido a proibição constitucional às sanções políticas, invocando, para tanto, o direito ao exercício de atividades econômicas e profissionais lícitas (art. 170, par. ún., da Constituição), a violação do devido processo legal substantivo (falta de proporcionalidade e razoabilidade de medidas gravosas que se predispõem a substituir os mecanismos de cobrança de créditos tributários)".

Ao declarar inconstitucional o artigo 1º, III da Lei 7.711/88, o STF declarou que tal dispositivo pressupunha a existência de "obrigação constitucional ao sucesso financeiro e obrigação constitucional à submissão e concordância ao entendimento fiscal sobre a validade dos créditos tributários".

É de se ressaltar, ainda, o julgamento do Pedido de Providência nº 0001230-82.2015.2.00.0000, proferido pelo Conselho Nacional de Justiça, no qual foi dispensada a apresentação de CND para ingresso de operação financeira no registro de imóveis:

"Reconhecida a inconstitucionalidade do art. 1º, inciso IV da Lei nº 7.711/88 (ADI 394), não há mais que se falar em comprovação da quitação de créditos tributários […] para o ingresso de qualquer operação financeira no registro de imóveis, por representar forma oblíqua de cobrança do Estado, subtraindo do contribuinte os direitos fundamentais de livre acesso ao Poder Judiciário e ao devido processo legal (art. 5º, XXXV e LIV, da CF)".

Ressalte-se que a dispensa da apresentação da CND para a empresa em recuperação judicial com base no entendimento firmado pelo STF na ADI 394 já foi objeto de decisão em Tribunal de Justiça do Paraná [4].

Importante registrar que o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.512.118 SP, firmou o entendimento de que, uma vez dispensada a CND, o juízo da recuperação judicial não deve mais interferir nas execuções fiscais [5].

Conclusão
O Superior Tribunal de Justiça possui diversos julgados no sentido de dispensar a apresentação de certidões negativas de débitos tributários para concessão de recuperação judicial, não só pela ausência de parcelamento especial, mas também pela incompatibilidade da exigência com o princípio da preservação da empresa.

O Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional o artigo 1º, incisos I, III e IV da Lei 7.711/88, com base no direito ao exercício de atividades econômicas e profissionais lícitas.

O Conselho Nacional de Justiça, com base no entendimento do STF, determinou que não pode ser exigida apresentação de CND para registros de operações imobiliárias.

Ao vender um imóvel a empresa se desfaz de parte de seu patrimônio que poderia vir a ser objeto de penhora e alienação para satisfação do débito tributário. Mesmo assim, o STF e o CNJ entenderam que não poderia ser exigida a apresentação de CND para registro de operações imobiliárias.

Ora, se uma empresa não precisa apresentar CND para se desfazer de um bem imóvel, não poderia, de igual modo, ser compelida a apresentar a CND para promover a renegociação de suas dívidas perante particulares, que é o caso do procedimento recuperacional.

A recuperação judicial com a consequente reorganização do passivo da empresa certamente irá contribuir para que a devedora tenha melhores condições de pagar seu débito tributário no futuro.

Extinguir um processo de recuperação judicial após toda sua tramitação, com os esforços de todas as partes envolvidas, simplesmente porque a empresa não consegue obter a certidão negativa de débitos tributários não parece ser a melhor solução nem mesmo para o Fisco, uma vez que a empresa voltaria a realizar suas atividades sem conseguir equacionar suas dívidas com particulares e, certamente, teria ainda mais dificuldades de arcar com as obrigações tributárias vencidas ou correntes.

É de suma importância que a questão seja pacificada com urgência. A insegurança para as empresas que já estão em procedimento de recuperação judicial ou para as que precisam da recuperação judicial atrapalha o desenvolvimento e a solução para crise de inúmeras empresas.

 


[1] (STJ – REsp: 1187404 MT 2010/0054048-4, relator: ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, data de julgamento: 19/6/2013, CE – CORTE ESPECIAL, data de publicação: DJe 21/8/2013); (STJ – AgInt no REsp: 1841307 AM 2019/0295908-0, relator: ministro HERMAN BENJAMIN, data de julgamento: 30/11/2020, T2 – 2ª TURMA, data de publicação: DJe 9/12/2020)

[2] (TJ-SP – AI: 20669676120218260000 SP 2066967-61.2021.8.26.0000, Relator: Maurício Pessoa, Data de Julgamento: 20/10/2021, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 20/10/2021); (TJ-SP – AI: 21809001220218260000 SP 2180900-12.2021.8.26.0000, Relator: Alexandre Lazzarini, Data de Julgamento: 16/02/2022, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 17/02/2022); (TJ-SP – AI: 20671798220218260000 SP 2067179-82.2021.8.26.0000, Relator: Cesar Ciampolini, Data de Julgamento: 20/10/2021, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 27/10/2021)

[3] (AgInt no AREsp n. 1.597.261/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 11/4/2022, DJe de 18/4/2022); (AgInt no AREsp n. 1.533.246/PR, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 13/12/2021, DJe de 16/12/2021); (AgInt no AREsp n. 1.841.841/RJ, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 9/5/2022, DJe de 11/5/2022.); (AgInt no REsp nº 1.984.153/MG, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 6/6/2022, DJe de 8/6/2022.)

[4] TJ-PR – AI: 13800981 PR 1380098-1 (Acórdão), Relator: Desembargador Fernando Paulino da Silva Wolff Filho, Data de Julgamento: 22/05/2019, 17ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ: 2536 15/07/2019.

[5] STJ – REsp: 1.512.118 SP 2015/0009213-1, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 05/03/2015, T2 – 2ª TURMA, Data de Publicação: DJe 31/03/2015

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