Opinião

Proteção jurídica contra corrupção e projeto Justiça 4.0 do CNJ

Autor

  • Mário Augusto Silva Araújo

    é advogado mestre em Constituição e Garantia de Direitos e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

23 de dezembro de 2022, 19h36

O combate à corrupção no Brasil requer um serviço público integrado em que o Poder Judiciário estabeleça parcerias aptas a construir um sistema de compartilhamento de dados e informações para prevenir, de maneira efetiva, aquele tipo de comportamento, que embora tenha um conjunto normativo penal específico, é um problema de ordem sociológica.

Rotulado em decorrência do comportamento ativo ou não do agente público, a corrupção é um gênero penal que se ramifica nas seguintes espécies: a) corrupção ativa (artigo 333 do código penal); b) corrupção passiva (artigo 317 do código penal) e, c) corrupção ativa em transação comercial internacional (artigo 337-b do código penal).

Além do escopo do direito penal, na pauta "crimes contra a administração pública", a corrupção é um comportamento difuso que se reverbera tanto na iniciativa privada como na pública e combatê-la deve levar em consideração uma visão sistêmica sobre o assunto que envolve, por exemplo, a compreensão da ciência política e da economia.

Ao escrever sobre o tema, Lucas Rocha Furtado observa que "Definir ou conceituar a corrupção, à semelhança da grande maioria dos fenômenos sociais, não constitui tarefa fácil. Parece-nos mais adequado buscar a sua descrição por meio de situações analíticas, a partir da noção de que ela está sempre relacionada à ideia de abuso de poder, de desvio das finalidades públicas, de uso de postetades públicas para fins privados" [1].

Essa penumbra sociológica é difícil de ser esclarecida à luz de um movimento imediatista e tão somente repressivo, como é o caso do código penal.

No âmbito do serviço público a prática de corromper agentes é uma forma de representatividade de poder aliada à uma rede de relacionamentos que possibilita a inserção de uma pauta nebulosa e não necessariamente republicana à margem da estrutura estabelecida pelo ordenamento jurídico vigente.

Inclusive, em virtude da natureza jurídica do Estado democrático de Direito, sobretudo em tempos de administração pública dialógica, o comportamento de a iniciativa privada procurar a administração pública para apresentar produtos e propor parcerias é natural, mas é preciso estabelecer um limiar que divide relações institucionais de um comportamento voltado à prática corruptora.

Na tentativa de amenizar impactos e estabelecer uma política de governança estável sobre aquelas relações institucionais, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que objetiva regulamentar a prática de lobby perante a administração pública e que recentemente foi aprovado pela câmara dos deputados [2], o qual se propõe a definir uma matriz objetiva de atuação profissional.

Oportuno informar que já existe uma regulamentação que objetiva prevenir a corrupção no brasil, que é a lei nº 12.813/2013, a qual dispõe sobre o conflito de interesses no exercício de cargo ou emprego do Poder Executivo federal, mas aquele normativo só possui jurisdição no âmbito federal.

Em uma publicação institucional, o Tribunal de Contas da União apresenta uma política de governança que se propõe a combater a corrupção que é balizada em 05 (cinco) etapas que se complementam: a) prevenção, b) detecção, c) investigação, d) correção e, e) monitoramento [3].

Vale o registro de que a prática corruptiva pode resultar em outro problema para os envolvidos: a tentativa de legalização do dinheiro utilizado, também conhecida como lavagem de dinheiro, conduta tipificada nos termos da lei nº 9.613/1998.

Aquela lei dispõe a respeito do crime de lavagem de dinheiro como "Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal" (artigo 1º).

Para o Unodc, "A lavagem de dinheiro é a primeira forma de alguém se engajar em atividades criminais, pois é o método utilizado pelos contrafeitores para disfarçar as origens ilegais de sua riqueza e proteger seus rendimentos, como forma de evitar suspeitas por parte das instituições investigativas e de aplicação da lei" [4].

Outro ciclo normativo que objetiva combater práticas corruptas e propor a recuperação de ativos é a lei nº 12.846/2013, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências.

Também conhecida como lei anticorrupção, aquela topografia normativa apresenta um instrumento que objetiva reparar danos decorrentes de atos ilícitos que gravitam no entorno da órbita da corrupção: o acordo de leniência.

Segundo a Controladoria-Geral da União, "O acordo é um instrumento sancionador negocial, celebrado com uma pessoa jurídica, que colabora, de livre e espontânea vontade, entregando informações e provas sobre os atos de corrupção de que tem conhecimento e sobre os quais assume a sua responsabilidade objetiva" [5].

Para o Ministério Público Federal, "o sentido do instituto do acordo de leniência é impor compromisso e responsabilidade às pessoas jurídicas que voluntariamente se propõem a romper com o envolvimento com a prática ilícita e adotar medidas para manter suas atividades de forma ética e sustentável, em cumprimento à sua função social" [6].

Embora não tipifique propriamente em si um ato de corrupção, a lei de improbidade administrativa, instância jurídica de responsabilidade civil, normatiza algumas ilicitudes que em virtude do princípio da independência das jurisdições, pode acarretar uma investigação a respeito de um comportamento aparentemente corrupto.

Conquanto possua um aspecto estruturado com o direito administrativo sancionador, a lei de improbidade administrativa possibilita, caso comprovada irregularidade na condução do gasto público, um acordo de não persecução civil, cujo valor do dano a ser ressarcido deve ser precedido da oitiva do respectivo Tribunal de Contas, que se manifestará, "com indicação dos parâmetros utilizados, no prazo de 90 dias" (artigo 17-B, §3º).

A reforma da lei de licitações também trouxe um normativo específico que validou uma política de governança prevista na lei das estatais e que objetiva combater práticas ilícitas e/ou corruptas na administração do erário: o sobrepreço e o superfaturamento.

Ao passo em que o sobrepreço ocorre na fase interna do procedimento licitatório e envolve necessariamente agentes públicos, o superfaturamento é um dano causado ao patrimônio da Administração no decorrer da execução contratual cuja tipificação envolve uma parceria ilícita de agentes públicos e privados.

Isso porque a liquidação da despesa engloba os comprovantes da entrega de material ou da prestação efetiva do serviço (artigo 63, §2º, inciso II da Lei 4.320/1964) e a tipificação de superfaturamento requer uma cadeia produtiva ilícita.

Como se vê, o ordenamento jurídico vigente se preocupa com as consequências da corrupção e estabelece parâmetros para recuperação de ativos, caso as irregularidades sejam constatadas no âmbito da esfera judiciária.

A respeito de práticas ilícitas e recuperação de ativos o Supremo Tribunal Federal lembra que existem quatro gêneros: "no ordenamento jurídico pátrio, há pelo menos quatro gêneros de acordos de leniência que podem ser celebrados por pessoas físicas ou jurídicas para a atenuação de responsabilidade administrativa ou judicial de atos econômicos, quais sejam: 1) o Acordo de Leniência Antitruste (Lei 12.529/2011); 2) o acordo de Leniência Anticorrupção (Lei 12.843/2013); 3) o Acordo de Leniência do MP, que não possui previsão legal expressa, mas surge de interpretação sistemática das funções constitucionais do Parquet; e 4) o Acordo de Leniência do Sistema Financeiro Nacional (Lei 13.506/2017). Além, desses, é possível apontar como quinta modalidade o chamado 'acordo de não persecução cível', recentemente introduzido pela Lei 13.964/2019" [7].

Todas essas ferramentas de combate à corrupção desaguam no entendimento de que é possível e necessário construir uma política pública estruturante que começa na própria prevenção daquele tipo de ilicitude, o que reforça o papel do Poder Judiciário enquanto articulador da política de justiça.

É notória a existência de um arranjo institucional amplo que objetiva prevenir (lei de conflito de interesses), combater (lei anticorrupção), rastrear (lei sobre lavagem de dinheiro), sancionar (direito penal e lei de improbidade administrativa) e recuperar ativos (acordo de leniência e acordo de não persecução cível) que serve de arcabouço normativo no combate à corrupção e proteção ao erário.

Em outras palavras: o ordenamento jurídico brasileiro possui uma engenharia jurídica apta a proteger a probidade em relação às relações institucionais e a sua operacionalização requer uma visão sistêmica a respeito do tema.

Sobre o assunto, merece destaque a reflexão de que o combate à corrupção exige do operador do direito conhecimentos que vão além da capacitação técnica porque requerem domínio de dados e articulação de informações, em consonância com o que determina o princípio da eficiência administrativa.

Atento a isso, o Conselho Nacional de Justiça possui um projeto intitulado justiça 4.0 o qual objetiva tornar "o sistema judiciário brasileiro mais próximo da sociedade ao disponibilizar novas tecnologias e inteligência artificial. Impulsiona a transformação digital do Judiciário para garantir serviços mais rápidos, eficazes e acessíveis" [8].

Dividido em quatro eixos, aquele programa tem no eixo três um recorte temático correlato à prevenção, combate à corrupção e lavagem de dinheiro e recuperação de ativos.

Com ênfase no robustecimento da atuação do Judiciário com melhor gestão de dados e informações e otimização da pesquisa de ativos em bancos de dados, é uma estratégia pela qual o Conselho Nacional de Justiça pode aperfeiçoar aquela política de integridade no sentido de garantir a probidade, higidez e consequente qualidade do gasto público.

Para isso, precisa articular o diálogo institucional com o compartilhamento de dados e informações e utilização de novas tecnologias, como a inteligência artificial, o que está alinhado à política de governança digital em consonância com o decreto nº 10.332/2020, que institui a estratégia de governo digital para o período compreendido entre os anos de 2020 e 2022.

Vale informar que o eixo 3 do programa justiça 4.0 é uma estratégia disponível à jurisdição brasileira para atingir a meta 16.5 da agenda ODS 2030: "reduzir substancialmente a corrupção e o suborno em todas as suas formas".

Como se vê, existe um amparo institucional de combate à corrupção que deve ter o uso maximizado por intermédio da administração de dados e informações disponíveis, e um vetor de fomento para esse combate, por exemplo, é um diálogo institucional entre o Conselho Nacional de Justiça e órgãos representativos da cadeia produtiva de combate à corrupção.

Nesse cenário se vislumbra a promoção de uma instância de governança para compartilhamentos de dados e informações com a Controladoria Geral da União, órgão responsável pela celebração dos acordos de leniência no âmbito do Poder Executivo Federal, com o Ministério Público Federal e Associação dos Tribunais de Contas do Brasil, pelo fato de as cortes de contas atuarem necessariamente em acordos de não persecução cível nas ações de improbidade administrativa.

Para isso, o diálogo institucional que o CNJ deve fazer com os outros poderes e instituições é de fundamental importância para articular a ideia que ora se propõe, porque embora a teoria aristotélica da repartição de poderes apresente de início um óbice à gestão compartilhada de dados e informações, o sentido republicano da proteção ao erário fomenta a troca de informações institucionais, o que está em harmonia com a prescrição do artigo 241 da Constituição Federal: "A União, os Estados, o Distrito  Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos".

Assim, o combate à corrupção, lavagem de dinheiro e a consequente recuperação de ativos é interinstitucional e diante desse panorama é preciso a compreensão de um sistema normativo transversal e articulado que gravite pela prevenção, combate, repressão e ressarcimento ao erário, como é o caso do eixo 3 do programa justiça 4.0 do CNJ.

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Referências bibliográficas
Furtado, Lucas Rocha. As raízes da corrupção no Brasil. Estudo de casos e lições para o futuro. Editora Fórum. Belo Horizonte/MG: 2015

Brasil. Câmara dos deputados. https://www.camara.leg.br/noticias/923489-camara-aprova-projeto-que-regulamenta-o-lobby

________ Controladoria Geral da União. https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/combate-a-corrupcao/acordo-leniencia

________Ministério Público Federal. https://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr5/publicacoes/guia-pratico-acordo-leniencia

________ Supremo Tribunal Federal. Informativo nº 979. Brasília (DF), 25 a 29 de maio de 2020

_________Tribunal de Contas da União. Referencial de combate a fraude e corrupção: aplicável a órgãos e entidades da Administração Pública. Brasília/DF: 2ª edição: 2018.

_________ www.cnj.jus.br/tecnologia-da-informacao-e-comunicacao/justica-4-0/

https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/crime/o-que-e-o-crime-de-lavagem-de-dinheiro.html

 


[1] Furtado, Lucas Rocha. As raízes da corrupção no Brasil. Estudo de casos e lições para o futuro. Editora Fórum. Belo Horizonte/MG: 2015, p. 27.

[3] Brasil, Tribunal de Contas da União. Referencial de combate a fraude e corrupção: aplicável a órgãos e entidades da Administração Pública. Brasília/DF: 2ª edição: 2018.

Autores

  • é advogado, mestre em Constituição e Garantia de Direitos, especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

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