Julgamento do Professor

Na Austrália, Justiça usa podcast para condenar acusado de matar mulher

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3 de janeiro de 2023, 18h19

A condenação de Chris Dawson, de 74 anos, a 24 anos de prisão pela Suprema Corte de Nova Gales do Sul, na Austrália, só aconteceu devido às denúncias realizadas por investigação jornalística veiculada em um podcast. Dawson foi considerado culpado pelo assassinato da mulher, Lynette Dawson, em janeiro de 1982, e por desaparecer com o corpo para se casar com a babá de uma de suas filhas à época, Joanne Curtis, então com 16 anos de idade.

The Australian/Reprodução
The Australian/ReproduçãoChris Dawson deve passar o resto de seus dias na prisão

A promotoria pública da Austrália não tinha em mãos evidências suficientes para apresentar queixa contra Chris Dawson até que o jornalista Hedley Thomas, do jornal The Australian, passou a investigar o caso e transformou a história narrada em um podcast.

Em 2018, o podcast The Teacher’s Pet (o bichinho de estimação do professor, em tradução livre) revelou detalhes do relacionamento entre o professor e sua esposa, sobre sua ex-aluna e funcionária e também do julgamento.

Foi feita uma ampla análise das últimas semanas de vida de Lynette e ouvidas pessoas próximas ao casal. Foram apresentados testemunhas e depoimentos com versões até então desconhecidas. Os episódios foram baixados mais de 60 milhões de vezes em todo o mundo e receberam importante prêmio jornalístico na Australia, o Gold Walkley.

A reportagem sonora mostrou, já no primeiro episódio, depoimentos de vários amigos e parentes de Lynette. A versão de desaparecimento voluntário foi contestada por todos, que alegaram que a mulher era uma mãe exemplar.

Dawson e Joanne, contratada para ser a babá de uma das filhas do casal, mantinham relacionamento secreto. Num outro episódio, é mostrado que Joanne foi transformada em escrava sexual de Dawson e mãe substituta de seus filhos após o desaparecimento da esposa.

Uma vizinha de Lynette, Julie Andrew, e os irmãos Greg Simms e Pat Jenkins descrevem o trauma vivido pela família nos últimos 40 anos. Além da violência física sofrida pela vítima, dentro de sua casa.

O impacto que o material jornalístico provocou na opinião pública e as novidades apresentadas no podcast tiveram papel fundamental na prisão de Chris em 2018 e na acusação de homicídio.

Quando o veredito final foi apresentado pelos juiz Ian Harrison, 14.938 dias depois que a esposa de Dawson ter desaparecido de sua casa nas praias do norte de Sydney, o conteúdo do podcast foi mencionado inúmeras vezes.

As provas apresentadas no material jornalístico, de acordo com o juiz, revelaram-se "persuasivas e convincentes", de acordo com jornais australianos, e "não deixam espaço para dúvidas" sobre o responsável pelo crime.

Harrison considerou "simplesmente absurda" a alegação de que Lynette estaria disposta a telefonar regularmente a Dawson para discutir a sua decisão de ir embora de casa sozinha e não perguntar pelas duas filhas pequenas.

Baseado nas provas apresentadas no podcast, o juiz Ian Harrison concluiu que Lynette não "saiu de casa deliberadamente". Ele afirmou que a mulher teria sido morta "no dia 8 de janeiro de 1982, ou numa data próxima, como resultado de um ato voluntário e consciente cometido pelo senhor Dawson com a intenção de causar a sua morte".

O motivo do crime ficou relacionado pelo magistrado com a relação extraconjugal entre Dawson e Joanne, que se mudou para a residência do casal dias depois do desaparecimento de Lynette.

O julgamento teve duração de 10 semanas e foi realizado sem um júri, a pedido do próprio réu.

Chris Dawson só poderá ser beneficiado por liberdade condicional depois de ter cumprido 18 anos em prisão fechada. Isso só acontecerá em agosto de 2040. O que leva a crer que ele, hoje com 74 anos, passará o resto de seus dias numa cela na prisão.

"A perspectiva inevitável é que o senhor Dawson provavelmente morrerá na prisão", disse o juiz Harrison, de acordo com a imprensa da Austrália.

Ato deliberado e consciente
A decisão do juiz Ian Harrison foi comunicada mais de 13 semanas depois de o acusado ser considerado culpado. A sentença foi lida no início de dezembro. O promotor Craig Everson disse que Dawson planejou um "ato deliberado e consciente" de violência doméstica com a intenção de matar, segundo descreve a agência de notícias Australian Associated Press.

O marido agora condenado sempre alegou que Chris havia escolhido abandonar a família por livre e espontânea vontade. Ele afirmou ainda que a ex-mulher havia telefonado várias vezes para ele após o desaparecimento; e dizia que precisava de algum tempo para ficar sozinha.

Nos anos de 2001 e 2003 a polícia local já havia feito várias investigações sobre o desaparecimento, e concluíram que Lynette foi morta por uma "pessoa conhecida". Porém, não identificaram tal pessoa.

A amante
Joanne era aluna de Chris Dawson numa escola pública de Ensino Médio no norte de Sydney no fim da década de 1970. Antes, Dawnson foi um jogador de rúgbi. 

A ex-aluna manteve relacionamento com o professor por algum tempo até se casar com ele depois do desaparecimento de Lynette. O caso ficou mais de 40 anos sem solução. O corpo da mulher nunca foi encontrado e polícia tinha pistas esparsas sobre o caso.

Lynette desapareceu sem deixar vestígios em 1982, aos 33 anos. Ela tinha duas filhas com Dawson, uma com 4 anos e outra com 2 anos.

Joanne se casou com Dawson, mas eles se separaram em 1990, segundo seu depoimento à polícia.

Mesma situação funcionaria no Brasil?
No direito brasileiro, via de regra, os crimes estão sujeitos à prescrição da pretensão punitiva, ou seja, a perda do direito do Estado de punir o autor de um delito pelo decurso do tempo.

CNJ
CNJNo Brasil, prazo de prescrição torna impossível a repetição do mesmo cenário

Há exceções. São imprescritíveis os crimes de racismo — e também o crime de injúria racial, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal — e crimes de ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

Esse prazo varia de dois anos — nos crimes em que a pena é somente a de multa — até 20 anos, de acordo com a pena prevista para o crime.

"Então, uma situação como essa ocorrida na Austrália, para um crime de homicídio em que não se tinha conhecimento sobre sua autoria, não seria possível de acontecer aqui no Brasil, pois passou-se muito tempo além do prazo prescricional", explica Alisson Caridi, advogado criminalista, professor universitário e presidente da Comissão de Direito Penal da Subseção de Bauru da OAB/SP.

Mas um inquérito pode ser desarquivado para investigação diante de novas provas. Existe uma súmula do STF, a 524, além do artigo 18 do Código de Processo Penal, que possibilitam o desarquivamento. Contudo, essa possibilidade deve respeitar o prazo da prescrição, diz o advogado constitucionalista Paulo Taunay Perez.

Existem situações em que o prazo prescricional fica suspenso, mas ainda assim, essa suspensão não pode ser por tempo indeterminado, sob pena de transformar-se todos os crimes em imprescritíveis. E essas situações estão ligadas ao início de uma ação penal contra o suspeito de ter sido o autor do crime. Portanto, em se tratando de crime de autoria desconhecida, o que impossibilita a inauguração de uma ação penal, essas situações de suspensão não se aplicam, avalia Alisson Caridi.

"Na legislação penal norte-americana, por exemplo, uma investigação pode permanecer por toda uma vida arquivada, e só após, com o avanço da ciência e tecnologia, novos recursos serem utilizados para que se chegue ao autor do crime, ou, em perspectiva oposta, que seja possível provar a inocência de alguém que foi preso injustamente. No Brasil, não há de se falar em investigação ou ação penal ad eternum, visto que no artigo 109 do Código Penal, o legislador adotou critérios objetivos para a aplicação da prescrição de acordo com a pena máxima em abstrato de cada tipo penal", relata Natália Alves, advogada criminalista, Sócia do Miná & Alves Advocacia, especialista em Direito Penal e Processo Penal, vice-presidente da Abracrim (Associação Brasileira da Advocacia Criminal) no estado da Paraíba e diretora nacional da Abracrim  Mulher.

O advogado criminalista, coordenador da Coordenadoria de Direito Penal, Direito Processual Penal e Criminologia da Comissão do Acadêmico e Acadêmica de Direito da OAB/SP Wagner Cavalcante dos Santos destaca também que após o prazo prescricional de 20 anos aqui no Brasil, o Estado perde o direito de processar o acusado. "Já as provas obtidas através de investigação jornalística não são vedadas. Pode-se juntar um vídeo, reportagem escrita ou em áudio, desde que sejam obtidas de forma lícita", explica.

"Quanto à possibilidade de utilização de informações jornalísticas no julgamento de um crime de homicídio, é preciso, desde logo, estabelecer-se que nenhuma prova tem caráter absoluto. Qualquer prova, no processo penal — mesmo que seja a confissão — deve ser analisada em conjunto com os demais elementos que existem na investigação policial ou nas provas produzidas em juízo. Um elemento de prova isoladamente não é apto a condenar alguém. E mais: informações jornalísticas, me parecem, na grande maioria das vezes não constituem provas, mas meros indícios, necessitando, ainda mais, serem cotejadas com as outras informações existentes nos autos do processo", analisa o criminalista Alisson Caridi.

Clique aqui para conhecer o conteúdo de episódios do podcast The Teacher’s Trial (em inglês).

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