Embargos Culturais

A atualidade da comédia Quase Ministro, de Machado de Assis

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

1 de janeiro de 2023, 8h00

Na política hoje, muito atual e provocadora a peça Quase Ministro, de Machado de Assis. Comédia curtíssima, com apenas um ato, dividido em quatorze cenas. Na introdução (do próprio Machado) lê-se que a peça fora composta para um sarau de amigos, que teria ocorrido em 22 de novembro de 1862. Machado, inclusive no teatro, era aquela rara elegância de ser conciso, com uma sábia economia de palavras, pondo em evidência suas ideias, na imagem permanente de Lúcia Miguel Pereira.

Spacca
À época dessa peça era primeiro ministro Pedro de Araújo Lima, o Marquês de Olinda, que fora indicado por dom Pedro 2º em 1862, e que ficou até 15 de janeiro de 1864. O Marquês de Olinda fora um conservador dissidente, liderando grupo em torno de uma Liga Progressista. Havia no Brasil uma fórmula muito peculiar de parlamentarismo, denominado de "parlamentarismo às avessas". Ao contrário do parlamentarismo inglês, no qual as eleições apontavam o partido que escolheria o primeiro ministro, no nosso modelo o imperador escolhia o chefe do ministério e em seguida as eleições se faziam.

No contexto desta deliciosa peça (trata-se de uma sátira política) há rumores de que um deputado (Luciano Martins) ocuparia uma pasta ministerial. Cético e realista, o deputado sabe que a informação não passa de um boato. Não recebera nenhum convite. Estava distante de qualquer especulação. Muito próximo do deputado o escritor apresenta-nos um primo do político, Silveira. Era maníaco por cavalos.

A peça inicia-se com um relato feito por Silveira, que teria caído de um alazão enquanto cavalgava junto à praia de Botafogo. Era viciado em cavalos, um apaixonado, preferindo os cavalos a outros vícios, como o fumo, as mulheres e o jogo, nas palavras do dramaturgo. As palavras são de Machado de Assis, e não minhas, bem entendido. Silveira cumprimentou o primo, que era já um "quase-ministro".

Nessa condição, "quase-ministro", o deputado recebe interesseiros e aduladores. O adulador é um tipo comum, que viceja até hoje. Não tem ideias ou personalidade próprias. Segue a todos, desde que alguma vantagem possa auferir. Afeiçoa-se a todas as metamorfoses e transformações. Bajula. É um sabujo. Havia muitos na capital do Império. Há muitos na atual capital da República. Há em todos os lugares.

O primeiro adulador (Pacheco) mostra-se como um articulista de temas políticos. Afirma que "em política ser lógico é ser profeta". Uma vez aplicados certos princípios a certos fatos, a consequência seria sempre a mesma. Porém, insistia, deveria haver os fatos e os princípios. Diz ter adivinhado que o deputado seria ministro. Dizia ter planos para aumentar a renda pública, sem "lançar mão de empréstimos" e, ao mesmo tempo, diminuir impostos. Para o primo, o deputado constatava que o visitante era um parasita.

Segue um poeta (Bastos), para quem poesia e política eram ligadas por um laço estreitíssimo. Intuía que o deputado não queria aceitar o cargo no ministério, e tentava convencê-lo; era enfático: "Quero ser dos primeiros que o abracem, quando vier a confirmação da notícia; quero antes de todos estreitar nos braços o ministro que vai salvar a nação". Sabujice maior não há.

O quase ministro recebe então um inventor (Mateus), que lhe falou do "raio de Júpiter", um segredo, uma peça de artilharia que teria inventado. O invento colocaria na mão do País que o possuir a soberania do mundo. Para o inventor, o quase ministro tinha qualidades e inteligência, não perguntava ou consultava, dominava. Queria apoio do futuro ministro para registrar a invenção.

A lista segue com Luís Pereira, que ao quase ministro queria oferecer um jantar. Depois se apresenta um empresário artístico (Müller) com a proposta de um "negócio da China" (sim, a expressão está também em Machado de Assis): pedia uma subvenção e traria os maiores talentos para o Rio de Janeiro.

Montado o ministério, e excluídas as chances do deputado, que todos tinham como certas, os aduladores abandonam o recinto, na busca do verdadeiro novo ministro. O deputado foi um quase ministro, e nessa condição observou esse ponto ao mesmo tempo fascinante e deplorável da condição humana: a subserviência interesseira.

Se podemos nos fiar na introdução, que é do próprio Machado de Assis, o escritor teria menos de 30 anos ao compor essa peça, que nos diz tanto sobre os interesses da política. Na expressão de nosso grande estudioso do teatro, Anatol Rosenfeld, "quando acontece a transformação do ator em personagem, o texto se transforma em elemento teatral". É o que constatamos hoje, no teatro da vida, quando comprovamos que na política a lógica é profecia. Muita gente por aí querendo ser ministro. Lembremo-nos o passo de Mateus 22: "pois muitos são chamados, mas poucos são escolhidos".

Autores

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

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