Opinião

STJ não é uniforme na responsabilidade civil por roubo sofrido por consumidores

Autores

  • Silvano José Gomes Flumignan

    é doutor mestre e bacharel em Direito pela USP professor adjunto da UPE e da Asces/Unita professor permanente do mestrado profissional do Cers ex-pesquisador visitante na Universidade de Ottawa ex-assessor de ministro do STJ procurador do estado de Pernambuco coordenador do Centro de Estudos Jurídicos da PGE-PE e advogado.

  • Wévertton Gabriel Gomes Flumignan

    é mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) membro de grupos de pesquisa da USP-FDRP professor advogado e sócio do escritório Advocacia Flumignan.

28 de fevereiro de 2023, 7h07

O Superior Tribunal de Justiça, em recente julgado, excluiu a responsabilidade civil de concessionária de rodovia por roubo com emprego de arma de fogo cometido contra seus usuários em posto de pedágio.

No Recurso Especial nº 1.872.260/SP, a 3ª Turma [1] entendeu que, por mais que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça seja pacífica no sentido de que a concessionária que administra rodovia mantenha relação consumerista com os respectivos usuários, não haveria responsabilidade por roubo com emprego de arma de fogo cometido contra seus usuários, ainda que tenha ocorrido no pátio do pedágio [2].

O julgado entendeu que o roubo com emprego de arma de fogo cometido contra os usuários da concessionária de rodovia seria um risco externo à atividade esperada da concessionária, o que aproximaria a circunstância a um fato de terceiro, com o rompimento do nexo de causalidade com base no artigo 14, §3º, II, do Código de Defesa do Consumidor.

Na decisão em questão, argumentou-se que o dever de a concessionária garantir a segurança e a vida dos cidadãos que transitam pela rodovia somente estaria relacionado a aspectos da própria utilização da estrada de rodagem, como, por exemplo, manter sinalização adequada, evitar animais na pista, buracos ou outros objetos que possam causar acidentes. Por outro lado, não se poderia exigir que a pessoa jurídica disponibilizasse segurança armada na respectiva área de abrangência, ainda que no posto de pedágio, para evitar o cometimento de crimes.

Ademais, o roubo com o emprego de arma de fogo supostamente não apresentaria conexão com a atividade desempenhada pela concessionária, o que afastaria os riscos assumidos na concessão da rodovia, que diz respeito apenas à manutenção e administração da estrada.

Em que pese o entendimento ser defensável e a linha de argumentação lógica, não guarda coerência com outros julgados do Tribunal Superior, mas, para que se compreenda o problema de existir divergência de entendimento, é preciso a análise do marco teórico usado para o julgado.

O entendimento teve como fundamento a aplicação da distinção entre fortuito interno e externo. Pela teoria, a responsabilidade de fornecedor somente ocorre se o risco assumido estiver dentro dos riscos esperados pelo exercício da atividade. O fortuito interno seria o risco esperado e, portanto, assumido pelo agente causador do dano. O fortuito externo seria aquele imprevisível e inesperado, o que afastaria a responsabilidade [3].

Como se vê, a construção parte de duas premissas básicas: risco inerente à atividade e risco esperado assumido pelo agente causador do dano.

Essa percepção não é nova, Fernando Noronha, por exemplo, menciona a possibilidade de responsabilidade objetiva agravada. Para o autor, em casos específicos de fornecimento de serviços, tem-se diluído a responsabilidade em relação a todos os consumidores com a atribuição da responsabilidade ao fornecedor, que, naturalmente repassa tal valor ao preço do serviço [4].

Essas premissas permitem uma conclusão preliminar de que a aplicação da teoria do fortuito interno e do fortuito externo exige um mínimo de previsibilidade, seja pela própria atividade, seja pela construção jurisprudencial.

Essa previsibilidade deixa de existir ao se analisar outros casos do mesmo Superior Tribunal de Justiça.

No Recurso Especial nº 1.450.434/SP, julgado em 18/09/2018 [5], a 4ª Turma entendeu que roubo ocorrido em drive-thru de lanchonete seria fato passível de responsabilidade civil do estabelecimento.

Afirmou-se que "o sistema drive-thru não é apenas uma comodidade adicional ou um fator a mais de atração de clientela. É, sim, um elemento essencial de viabilidade da atividade empresarial exercida, sendo o modus operandi do serviço, no qual o cliente, em seu veículo, aguarda por atendimento da empresa".

A decisão asseverou que, ao disponibilizar o serviço, o estabelecimento assume um dever implícito de lealdade e segurança, como incidência concreta do princípio da confiança.

A quebra da confiança esperada atrairia a responsabilidade por roubo ocorrido em drive-thru e configuraria a existência de fortuito interno. Haveria a frustação da legítima expetativa de segurança do consumidor-médio, sendo um incidente esperado da atividade desenvolvida.

Como se percebe, os julgados expostos nesse ensaio possuem semelhanças do ponto de vista fático. Tanto na relação entre a concessionária de rodovia com os usuários como na relação entre os consumidores do estabelecimento comercial que utiliza drive-thru, incidiria o Código de Defesa do Consumidor, existe o elemento roubo no momento da prestação do serviço, a atividade principal dos fornecedores não é ligada à segurança.

A concessionária de rodovia possui pátio de pedágio em que existe grande movimentação financeira e tráfego de pessoas, o que deixa o usuário mais vulnerável a assaltos e situações perigosas. Situação semelhante ocorre em relação ao drive-thru de lanchonete.

Do mesmo modo que no drive-thru, o local do pagamento do pedágio é considerado um elemento essencial para a própria atividade exercida. Os dois locais detêm importância similar para a prestação do serviço.

A insegurança trazida pela decisão que afasta a responsabilidade por roubo ocorrido em praça de pedágio é potencializada pelo fato de o Supremo Tribunal Federal já ter se pronunciado sobre o tema e ter adotado conclusão diametralmente oposta. O tribunal reconheceu a responsabilidade civil de concessionária de rodovia por furto ocorrido em pátio de pedágio, sob argumento de que haveria omissão no dever de vigilância e falha na prestação e organização do serviço [6].

Percebe-se, assim, que o tema exige um posicionamento uniforme para que se evite insegurança jurídica e, principalmente, para que se permita a aplicação da teoria do fortuito interno e do fortuito externo. A similitude fática entre o roubo ocorrido em drive-thru e o ocorrido em pátio de pedágio é gritante, mas a conclusão jurídica é completamente antagônica. É imprescindível que o Superior Tribunal de Justiça exerça a sua função constitucional de uniformizar a interpretação da lei federal e pacifique o entendimento sobre a responsabilidade de fornecedores por roubo no momento da prestação do serviço.

 


[1] Brasil, STJ, REsp nº 1.872.260/SP, rel. min. Marco Aurélio Bellizze, órgão julgador: 3ª Turma, julgado em 4/10/2022.

[2] Tal entendimento tem prevalecido no âmbito da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça. No Recurso Especial nº 1.749.941/PR, julgado em 4/12/2018, entendeu-se de forma semelhante de que haveria exclusão de responsabilidade no caso de roubo e sequestro ocorrido em dependência de suporte ao usuário, mantido pela concessionária.

[3] Sobre o tema, vide XAVIER, José Tadeu Neves. A problemática do fortuito interno e externo no âmbito da responsabilidade consumerista. In: Revista de Direito do Consumidor, vol. 115, p. 205-246 (acesso online p. 1-27), Jan.-Fev./2018, p. 9. "O caso fortuito interno envolve as situações em que o risco natural da atividade econômica desenvolvida pela empresa deve ser absorvido por estas, não tendo o condão de afastar a responsabilidade. Nessa hipótese, o aspecto surpresa que acompanha o caso fortuito não se mostra suficiente para isentar a empresa de responsabilidade, pois esta, no momento em que selecionou o seu âmbito de atuação, já estava ciente da álea natural que acompanha de maneira inevitável. O risco é inerente à atividade e nele estão incluídos os acontecimentos que mesmo eventuais não se mostram integralmente estranhos à atuação profissional".

[4] NORONHA, Fernando. Responsabilidade civil: uma tentativa de ressistematização – responsabilidade civil em sentido estrito e responsabilidade negocial; responsabilidade subjetiva e objetiva; responsabilidade subjetiva comum ou normal, e restrita a dolo ou culpa grave; responsabilidade objetiva normal e agravada. In: Doutrinas Essenciais de Responsabilidade Civil, vol. 1, p. 145-195 (acesso online p. 1-31), Out./2011, p. 20. "2. Pessoas responsáveis: empresários e prestadores de serviços públicos. Pela segunda condição, acima indicada, só haverá responsabilidade quando se trate de danos acontecidos no decurso de uma atividade empresarial, ou de serviço público. Este requisito tem como fundamento uma idéia que ainda é de risco, de risco de atividade, embora atenuado. Quem, na qualidade de empresário ou de prestador de serviço público, exerce uma determinada atividade, normalmente sujeita a certos percalços, que, como veremos daqui a pouco, possam ser considerados riscos próprios dessa atividade, deve suportar as respectivas conseqüências. É que a responsabilidade, aqui, ainda é por fatos que, embora não causados pela atividade empresarial ou pública, não teriam acontecido Sem ela. O objetivo de prossecução de uma finalidade econômica, na atividade empresarial, ou de bem comum, na atividade pública, justificam a responsabilização por eventuais danos acontecidos durante a atividade, mesmo que não causados por ela. É assim que a empresa de transporte fica obrigada a indenizar o passageiro acidentado em conseqüência de incúria do motorista de outro veículo, que abalroou aquele onde o ofendido seguia. Associada a essa idéia de risco, está uma consideração prática, à qual a Jurisprudência sempre é sensível: trata-se de percalços que podem ser quantificados estatisticamente e que, por isso, são seguráveis. Ora, é a empresa que está em melhor condições para fazer o respectivo seguro, o qual em termos sociais significa a transferência do risco para o conjunto dos beneficiários, através da inclusão do prêmio pago no custo do produto ou do serviço. Quando se trate de serviço público, a transferência de responsabilidade para a comunidade é direta, através dos impostos e taxas que alimentam o ente público".

[5] Brasil, STJ, REsp 1.450.434/SP, rel. min. Luis Felipe Salomão, órgão julgador: 4ª Turma, julgado em 18/9/2018.

[6] Brasil, STF, RE 598.356/SP, rel. min. Marco Aurélio, órgão julgador: 1ª Turma, julgado em 8/5/2018.

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