Opinião

Medidas atípicas sobre o devedor vs. vedação de meios vexatórios de cobrança

Autor

  • Rogério Reis Devisate

    é advogado membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias da Academia Internacional de Direito e Ética da Academia Fluminense de Letras do Instituto Federalista e da União Brasileira de Escritores presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da União Brasileira dos Agraristas Universitários (Ubau) membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ e do Ibap autor de vários artigos e do livro Grilos e Gafanhotos Grilagem e coordenador da obra Regularização Fundiária: Experiências Regionais.

26 de fevereiro de 2023, 6h39

As famílias brasileiras estão endividadas.

A dura realidade indica que são 78% do total, como registrou a Confederação Nacional do Comércio (CNC), em 6/12/2022.

Dívidas existem e de todas as formas, não apenas no âmbito das famílias, nas quais se trabalha e muito, para se garantir o pão de cada dia e o seu sustento.

Nesse contexto, a dívida das Lojas Americanas soma R$ 40 bilhões, como noticiado. Esse imenso valor é muito distante do tamanho das dívidas das famílias, independentemente da renda de cada uma e dos valores em atraso. Sabemos que algumas famílias se endividam até para conseguir satisfazer despesas cotidianas, enquanto outras caem no conceito de superendividamento. Todas as situações são graves.

A verdade é que, com o nome sujo, fecham-se as portas do sistema de crédito. Isso interfere na roda da economia e no quadro social, alimentar e de fome, dando margem ao desespero, diante das dificuldades que se acumulam.

Apesar de tudo, parece que o peso sobre os devedores aumentará — e muito!

Decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), proferida em 9/2/2023, validou as chamadas "medidas atípicas", previstas no artigo 139, IV, do Código de Processo Civil.

Foi amplamente noticiado que os credores poderão requerer a apreensão do passaporte e da carteira da habilitação (CNH) dos devedores e que estes podem vir a ser impedidos de prestar concurso.

Como a maioria não tem passaporte, muitos não têm CNH e outros tantos não pretendem fazer concurso, talvez a maioria da população estivesse fora do alcance da decisão do Supremo Tribunal Federal.

Não estarão!

Para se entender exatamente a controvérsia, é necessário se compreender o que está escrito no citado artigo do Código de Processo Civil.

O artigo 139 apenas diz que o juiz dirigirá o processo, cabendo-lhe "determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária" (inciso IV).

Mesmo superficial análise do texto legal é capaz de levar o intérprete a perceber que o legislador não fala em CNH, passaporte ou concurso.

Isso nos permite considerar que a previsão legal tem alcance muito mais amplo do que parece, sendo verdadeiro "tipo aberto" a permitir vasta interpretação, com aplicação a toda sorte de providências que possam recair sobre o devedor e o seu patrimônio.

Para que fique mais claro: medidas "típicas" são as expressamente previstas em lei, enquanto as "atípicas" não o são.

Ademais, a decisão tão comentada não faz recair o peso da coercibilidade sobre o patrimônio do devedor.

Ao contrário, aponta a espada sobre "a pessoa" do devedor, atingindo o exercício da sua plena liberdade de locomoção (dirigindo veículo ou viajando com uso de passaporte) ou restringindo-lhe a busca por nova opção profissional (ao se negar acesso a concurso).

De repente, ecos de Roma nos lembram que houve até tempo em que os devedores podiam se tornar escravos por dívida…

Direito Civil mais duro que o Direito Penal?
Além de tudo isso, parece até que as interpretações são mais duras — e restritivas de liberdade — contra os devedores do que contra os acusados de cometer ilícitos mais graves e de natureza penal — nos quais as tradicionais penas restritivas de liberdade têm sido substituídas por outras menos gravosas, como a prisão domiciliar, a prestação de serviços à comunidade etc.

Esse aspecto talvez enseje o desenvolvimento de profundos estudos e a elaboração de belos trabalhos acadêmicos.

Em certa medida, os devedores ficaram à mercê de sofrer restrições não expressas no texto legal e ao alvitre de decisão judicial que acolha pretensão formulada por credor.

Noutro foco, diz a Constituição Federal que "ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (CF, artigo 5º, II) e esta, naturalmente, deve nos dar paz e "segurança jurídica", com regras claras sobre a conduta que o Direito quer regular, exatamente para a proteção do cidadão contra as investidas discricionárias de quem quer que seja, que seriam aquelas "atípicas" (diferentes daquelas"“típicas", porque regradas e expressas, em normas votadas pelo Congresso Nacional).

Falamos acima em discricionariedade, pois esta habita onde não há regra clara.

Para evitar a pura discricionariedade do Rei da Inglaterra, foi assinada, em 1215, a Magna Carta, pela qual se governaria segundo as regras escritas e, assim, sem mais abusos.

Num salto na história e falando da Constituição vigente, esta é clara e detalhista.

O pensamento aumenta em importância na medida em que o próprio STF, ao proferir a decisão suso referida, decidiu que as medidas atípicas devam respeitar os "direitos fundamentais da pessoa humana".

A rigor, por sua natureza, os direitos fundamentais não poderiam jamais ser atingidos por qualquer decisão ou ato do Poder Judiciário, do Poder Executivo ou do Poder Legislativo, e, por isso, salvo melhor juízo, tal observação seria um prudente acréscimo sem necessidade.

Além disso, a realidade grita o seu espaço, diante do imenso volume de processos existentes neste imenso país e no potencial alcance da decisão sobre 78% das famílias brasileiras.

Imaginemos, por exemplo, negar que o devedor faça concurso, por ter dívida, enquanto em prol dos não condenados penalmente reine o princípio da inocência…

Ademais, se é para se garantir o pagamento ao credor, de que adiantará privar o devedor da CNH ou do passaporte ou negar-lhe o direito de fazer concurso?

Medidas como essas atingem a pessoa do devedor, podem ter reflexos (indesejados pelo legislador) sobre a família do devedor; mais parecer protesto contra quem deve e não consegue ou não tem, mesmo, meios de pagar; de ser punição contra quem assumiu dívidas via Fies, crédito consignado, por necessidade ante imprevistos na condição de saúde própria ou de familiar, por perda de padrão de vida e de renda em decorrência dos períodos de lockdown, pela pandemia, ou de outros negativos reflexos daquele contexto; contra quem ficou desempregado etc.

No final de tudo, parece que a conta tende a ficar mesmo com as pessoas físicas, que tiveram de contrair dívidas e que não são uma minoria que se descuidou e, sim, a esmagadora maioria das honradas famílias brasileiras: 78%!

Diante de tudo, medidas "atípicas" podem soar mais como tipo de pena ou de punição ao devedor e a sua famílias do que medida efetiva em prol do pagamento, talvez estando mais próxima da visão dos "meios vexatórios de cobrança" que, lembramos, são proibidos pelo Código de Defesa do Consumidor, no seu artigo 42, que diz que o devedor não deve ser "exposto a ridículo" ou "submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça".

Ali o Congresso Nacional foi claro, ao querer proteger o devedor contra "qualquer tipo" de medida que pudesse lhe constranger ou ameaçar e, sendo essa uma (abrangente) regra de proteção, deve ter interpretação elástica e efetividade plena, até como instrumento de tutela dos constitucionais "direitos fundamentais da pessoa humana".

Claro é que nem todos os devedores chegaram a essa posição jurídica em decorrência de relação de consumo. Todavia, não estamos a considerar qualquer caso concreto e sim a refletir sobre o contexto e o suporte normativo vigente.

Nessa linha de pensamento, para as situações contextualizadas como relações de consumo, teremos conflito aparente de normas, entre duas disposições legais da mesma hierarquia, devendo prevalecer a norma especial (Código de Defesa do Consumidor, artigo 42) em face da norma geral (Código de Processo Civil, artigo 139, IV).

Nas demais relações jurídicas, em que tenha ocorrido inadimplemento, mesmo assim não deveria a pessoa do devedor ficar sujeita ao tipo aberto já comentado, que comporta ampla integração por toda sorte de pleitos que credores pudessem postular aos julgadores e que a nossa imaginação não é capaz de alcançar.

Genericamente, talvez o bom norte de interpretação seja considerar se o objeto da pretensão "atípica" envolve medida especificamente tendente ao recebimento do crédito. Se for, natural que se a pleiteie e defira.

Do contrário, poderá ser algo a recair sobre a pessoa do devedor e isso, diretamente, não contribuirá para a satisfação do credor, mais soando como protesto pelo inadimplemento alheio, quando, é crível, nenhuma contratação ocorreu sem a ativa participação do credor que, efetivamente, concede o crédito mediante análise de risco, constituição de garantias etc.

Não cabe, assim, ao devedor, como fruto da relação jurídico-material firmada com o credor, a qualidade de vilão, que deve ser penalizado e condenado a responder sozinho — e sob o pálio de "medidas atípicas" — por contexto que está muito além do seu controle.

Autores

  • é advogado, membro da Academia Internacional de Direito e Ética, da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da Academia Fluminense de Letras, do Instituto Federalista e da União Brasileira de Escritores, presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da Ubau, membro da Comissão de Direito Agrário da OAB-RJ e do Ibap, defensor público (RJ) junto ao STF, STJ e TJ-RJ, escritor, palestrante e autor de artigos e dos livros Grilos e Gafanhotos — Grilagem e Poder (2016), Diamantes no Sertão Garimpeiro (2019) e Grilagem das Terras e da Soberania (2017).

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