Segunda Leitura

Os reflexos jurídicos do desastre ambiental no litoral norte paulista

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

26 de fevereiro de 2023, 10h28

Nos dias 19 e 20 de fevereiro, uma conjugação de fatores, como o encontro de uma frente fria vinda do sul do continente com uma área de baixa pressão atmosférica fez com que o volume de chuvas fosse ao recorde de 640 milímetros em 24 horas no litoral norte paulista.[i] Tal quantidade foi muito maior do que o de Petrópolis e região em 2011, quando morreram mais de 900 pessoas e o volume girou em torno de 200 milímetros.

Spacca
Desastres naturais nunca foram novidade. O Sismo de Lisboa, em 1755, ao qual se seguiu um maremoto e incêndios, matou mais de 10 mil pessoas e destruiu a maior parte da cidade.[ii] À época deu-se um debate entre Voltaire e Rousseau, o primeiro sustentando tratar-se de um castigo divino e o segundo ao atribuir parte da responsabilidade ao homem pelo número elevado de construções.[iii] Este é o maior argumento a favor dos que sustentam que eles sempre existiram e é, no próprio litoral norte, reforçado pela catástrofe de 1967, em Caraguatatuba, quando quase 500 pessoas faleceram e casas foram soterradas.[iv]

No entanto, o crescente e contínuo aumento do número de inundações, ciclones, terremotos e tsunamis, dá prova de que eles são fruto do aquecimento global e das intervenções do homem na natureza. Isto sem falar no posicionamento de especialistas como Carlos Nobre, pesquisador do INPE e do IEA-USP, para quem “o aumento da temperatura global está diretamente atrelado às catástrofes no litoral brasileiro”.[v]

Damacena afirma que “a relação entre desastre e vulnerabilidade é de dependência”, apontando como causas principais as mudanças climáticas, a má gestão dos recursos naturais e de governança preventiva dos riscos sociais e ambientais, a urbanização desordenada, tudo em “uma sociedade desigual, que desrespeita a legislação vigente”.[vi]

Fácil é ver que tais fatos acompanharão nossas vidas e a dos nossos descendentes, com uma frequência cada vez maior. Vejamos:

Prevenção
O fato dos desastres se revelarem inevitáveis não significa que devamos aguardá-los placidamente. O que se tem a fazer é planejar como minimizá-los. E aí entra o primeiro problema, não somos um povo bom em organização, planejamento e execução. O segundo problema é que, politicamente, prevenir desastres significa ação discreta, impopular (v.g., impedir a construção de imóveis em áreas proibidas) com resultados negativos na próxima eleição. Já o agir depois do evento, pagando bolsa-aluguel ou outra medida semelhante, dá ao administrador muitos votos. Isto leva a uma prevenção muito aquém da desejada.

Na verdade, é necessária uma política pública regional e não apenas local, através da qual não apenas se proíbam construções irregulares, mas que também possibilitem moradia aos comprovadamente vulneráveis. E aí, além dos tradicionais financiamentos populares (ex. Minha casa, minha vida), há que se recorrer a novas práticas. Por exemplo, a utilização de containers, como idealizado em Hamburgo, Alemanha, que é mais barato, rápido e reduz a geração de resíduos sólidos.[vii] Embarcações também podem ser cogitadas, obviamente desde que adaptadas. Nos portos brasileiros há navios ancorados em caráter permanente que se destroem com a ação do tempo. Não poderiam ser aproveitados? Tal tipo de moradia já é comum na Amazônia

No que toca ao ordenamento urbano, Leme Machado aponta o fato de que o município de São Sebastião “em 1992, promulgou o Código Municipal de Meio Ambiente, sendo uma das primeiras cidades no Brasil a ter esse diploma legal” e que a Lei Federal 12.608/2012, que trata da política nacional de proteção e de defesa civil , tem vários dispositivos sobre prevenção, mitigação e preparação, sendo do prefeito e da Câmara Municipal o dever de remoção dos habitantes de área de risco.[viii] Freitas e Coelho propõem, em caso de omissão, a responsabilidade pessoal do gestor por improbidade administrativa.[ix]

O caminho comum até agora adotado é o da sentença. Mas, não alimentemos ilusões de que a solução virá pelo Judiciário. As decisões percorrem quatro instâncias, levam de dez a 15 anos, e depois a execução será complexa, pois situações envolvendo crianças ou idosos, falta de local para abrigar os ocupantes irregulares e políticos a defende-los, serão fatores a inviabilizá-la. Ademais, decisão do ministro Roberto Barroso do STF, dificulta a ação da autoridade administrativa e praticamente impede o cumprimento das decisões judiciais ao determinar, entre outras coisas, a realização de audiências de mediação por comissões de conflitos fundiários, como etapa prévia e necessária às ordens de desocupação coletiva.[x]

Responsabilidade civil do Estado
A imagem de casas destruídas, perdas de bens moveis, automóveis sendo levados pela correnteza, mortes e lesões corporais, levam-nos à lembrança da responsabilidade civil. Neste particular há diversos fatores a serem considerados. Em caso de comprovada omissão da administração pública, por manter-se inerte em ocorrências seguidas e previsíveis, reconhece a jurisprudência o seu dever de indenizar danos morais e materiais.[xi] No entanto, este dever pode ser inexistente (e.g., em caso de ocupação irregular) ou concorrente (e.g., em caso de culpa recíproca).

Seguros
O contrato de seguro rege-se pelo Código Civil, sendo que o art. 757 expressamente menciona riscos predeterminados. Carvalho, comentando os seguros nos desastres, observa que eles se situam “entre as fases de prevenção e de compensação a eventos lesivos”.[xii] A seguradora dispõe-se a pagar o prêmio em determinado valor e baseada no risco, os seus serviços e o seu lucro fará o cálculo do que cobrará do contratante. Portanto, deve ter segurança quanto aos limites de eventuais indenizações. Atualmente, face à reiteração de desastres ambientais, as seguradoras estão incluindo cláusulas permitindo indenizações, mas incluindo este risco no valor do prêmio.

Assim, quanto às casas atingidas pela indenização no litoral norte, as que estiverem cobertas por contratos de seguro específico, receberão o valor das perdas da seguradora. É fácil presumir que serão poucas, pois o contrato de seguro ainda não faz parte dos hábitos dos brasileiros.

Mas, mesmo havendo cláusula expressa, é preciso atentar para a sua redação. O TJ-SP decidiu que não basta a previsão de indenização por danos causados por vendaval, pois ela só será devida se for a causa direta do prejuízo. No caso, ocorreu uma invasão do mar em um condomínio por força de um ciclone extratropical, porém este não teria sido a causa única e nem a principal da alteração da maré, fato que justificou a negativa de indenização.[xiii]

Com relação aos automóveis, muitos deles inutilizados de forma permanente, o proprietário terá que verificar qual o tipo do seu contrato. Normalmente, as seguradoras oferecem dois tipos de contrato, o RCF-V (Responsabilidade Civil Facultativa Veicular), que em caso de acidente assegura o pagamento de indenização por danos morais, materiais e corporais a terceiros., e a APP (Acidentes Pessoais de Passageiros), este com foco nos passageiros e ocupantes do veículo do segurado.

Portanto, para receber indenização por danos originários de inundação, deslizamento de terras, invasão de águas do mar inutilizando o veículo e situações semelhantes, o contrato deverá possuir cláusula explícita, nos termos do artigo 757 do Código Civil.

A condução do veículo embriagado exclui o pagamento de indenização, conforme artigo 768 do Código Civil. O STJ define com clareza a quem cabe o ônus da prova em tal caso. Será da seguradora a de demonstrar que o condutor estava alcoolizado. Ao segurado “que o infortúnio ocorreria independentemente do estado de embriaguez (como culpa do outro motorista, falha do próprio automóvel, imperfeições na pista, animal na estrada, entre outros)”. [xiv]

No mais, cabe lembrar que o segurado encontrará resistência no pagamento caso tenha se exposto ao risco. Assim, se tiver saído com o veículo em dia de vendaval e inundações, sem necessidade comprovada, terá colaborado, ainda que não totalmente, para a ocorrência.

Penal
O desastre ocorrido, tal qual outros semelhantes, origina dois tipos de discussão no âmbito penal. O primeiro é o referente à conduta de determinadas pessoas cobrando a maior pela venda de bens essenciais (p. ex., água mineral a R$ 93,00). Tal atitude, de todo condenável, não passa de falta ética, muito embora, se praticada por um grupo possa ser crime contra a ordem econômica (artigo 4º, II, “a”, da Lei 8.137/90). O valor da água não é tabelado, regula-se pelas leis de mercado. Portanto, não há como punir alguém porque falta previsão legal. Já houve, no passado, a criminalização de tal conduta, então considerada crime contra a economia popular. Fixava o governo federal (SUNAB) preço para o pão e o leite. Não teve sucesso

O segundo é a criação de um tipo penal para aqueles que desviam bens ou valores aproveitando-se do estado de confusão ou de abandono de residências. Tal tipo de conduta, comum nos tempos da Covid-19, mostra o ser humano em uma das suas mais vis reações. Com certeza, merece um tipo penal próprio, com penas mais graves do que as do furto, para que sirva de intimidação aos possíveis infratores.

Eis o novo mundo e seus reflexos no Direito. Resta-nos a ele adaptar-se ou, seguir Elis Regina quando cantava “Aprendendo a jogar” (vivendo e aprendendo e jogar).

[i] BBC News Brasil. Mariana Lisboa. Litoral de SP foi atingido por `evento extremo’´, com recorde de chuvas e elevação do mar. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gj49n6jwno. Acesso em 23 fev. 2023.

[ii] Wikipédia. Sismo de Lisboa de 1755. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sismo_de_Lisboa_de_1755. Acesso em 24 fev. 2023.

[iii] GARBACCIO, Grace Lacerda. PAGEAUX, Mathieu. Visão europeia do direito das catástrofes. In: Direito ambiental, mudanças climáticas e desastres – Impacto nas Cidades e no Patrimônio Cultural. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009, p. 293.

[iv] BBC News Brasil. Giulia Granchi. Chuva em SP: tragédia ocorre 56 anos após a maior já vista no litoral norte. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cydngmz112mo. Acesso em 23 fev. 2023.

[v] UOL Congresso em foco. Lucas Neiva. DESASTRES AMBIENTAIS NO BRASIL VÃO PIORAR, ALERTA CARLOS NOBRE. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/desastres-ambientais-no-brasil-vao-piorar-alerta-carlos-nobre/. Acesso em 23 fev. 2023.

[vi] DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Limites e possibilidades da prestação jurisdicional na redução da vulnerabilidade. P. 447. In: Estudos aprofundados em Direito dos Desastres. Daniel A. Farber e Delton Winter de Carvalho orgs. Curitiba: Ed. Prismas, 2017, p. 447.

[vii] Homifay. Utilizando um container para moradia. Disponível em: https://www.homify.com.br/livros_de_ideias/19030/utilizando-um-container-como-moradia. Acesso em 23 fev. 2023.

[viii] MACHADO, Paulo Affonso. São Sebastião criou código ambiental em 1992 e só acumula condenações desde lá. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-fev-24/paulo-affonso-leme-machado-desastre-sao-sebastiao. Acesso em 24 fev. 2023.

[ix] FREITAS, Gilberto Passos de. COELHO, Marcos Filipe Freitas. Direito á moradia e inclusão social. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2022.

[x] STF, ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 828. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ComissesADPF828.pdf. Acesso em 23 fev. 2023.

[xi] TJSP, Apelação nº 1004064-47.2020.8.26.0483, 6ª. Câm. Dir. Público, Rel. Maria Olívia Alves, j. 4 fev. 2022.

[xii] CARVALHO, Délton Winter de. Desastres ambientais e sua regularização jurídica. 2ª. ed. São Paulo: Rev. dos Tribunais, 2020, p. 224.

[xiii] TJSP, Apelação nº 1002958-12.2017.8.26.0562, 29ª Câmara de Direito Privado, rel. Desª Maria C. A. Bacarim, j. 27 fev. 2019.

[xiv] STJ, REsp 1485717/SP, 3ª. Turma, Rel. Ministro Villas Bôas Cueva, j. em 22 nov. 2016.

Autores

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador Federal aposentado, ex-Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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