Opinião

Apontamentos sobre o filtro necessário no testemunho de policiais

Autor

  • Tiago Bunning

    é mestre em Ciências Criminais (PUC-RS) especialista em Direito Penal Econômico (IBCCrim e Coimbra) conselheiro seccional da OAB-MS (2022-2024) advogado e professor.

25 de fevereiro de 2023, 15h45

A discussão sobre a valoração do testemunho policial é antiga, mas recentes posições dos tribunais superiores, em especial do STJ, revelam uma importante preocupação com o standard probatório atribuído a prova testemunhal proveniente de policiais.

A razoabilidade precisa estar regrada — ao menos pela jurisprudência. Se de um lado vedar a produção desse tipo de prova não seria aceitável, na mesma medida é imprudente revestir de fé pública o depoimento policial [1].

Quem pensa dessa forma esquece que a "prova tarifada", quando se cria um sistema de hierarquia entre as provas, era sistema de valoração típico de períodos autoritários, cunhado em processos inquisitórios, nos quais se creditava valor a partir da espécie e não do conteúdo da prova.

Em tom crítico, Rubens Casara adverte que a presunção de veracidade, baseada na fé pública, representa retrocesso à figura da "testemunha acreditada" típica do período em que o direito islâmico clássico, de verniz autoritário, atribuía o poder de falar a verdade a pessoas escolhidas como honestas e decentes pelo presidente do tribunal [2].

Não é menos descabido reduzir a discussão do tema à afirmação de que o artigo 202 do CPP autoriza que "toda pessoa poderá ser testemunha" [3]. As autoridades policiais e os agentes de polícia não funcionam como "toda" pessoa para a persecução penal, pois diferentemente de qualquer um do povo, eles são agentes públicos que integram órgão de segurança pública (artigo 144 da CF/88), responsáveis pela prevenção e apuração dos crimes e consequentemente vinculados ontologicamente a esta função.

Por todos, Aury Lopes Jr. adverte para uma condenação natural decorrente da apuração e repressão do fato, ressaltando ser "evidente que o envolvimento do policial com a investigação (e prisões) gera a necessidade de justificar e legitimar os atos (e eventuais abusos) praticados" [4].

Pode passar despercebido, mas a legislação processual penal não ignora esta diferença entre os sujeitos, por exemplo quando faculta a "toda" pessoa (populares) a realização da prisão em flagrante, enquanto obriga de forma imperativa que as autoridades e os agentes de polícia prendam quem quer que seja encontrado em flagrante delito, reconhecendo que o papel constitucional daqueles que integram órgão de segurança pública tem consequências com suas funções em relação a persecução penal.

As autoridades policiais e os agentes de polícia devem apurar os fatos, colhendo provas, dentre elas a prova testemunhal, por isso não cabe a eles funcionar como testemunha para preencher um vazio de outras provas. Ainda que em situações excepcionais seu testemunho possa revelar detalhes da investigação, e por isso não é razoável impor uma vedação absoluta ao testemunho policial, seu conteúdo será sempre incapaz de preencher o todo necessário para uma condenação penal.

É neste ponto que falamos em uma razoabilidade regrada, para dizer que, em busca de um equilíbrio em prol de sistema acusatório que preserve a presunção de inocência, já passa da hora que os tribunais imponham limites a valoração do testemunho policial.

A jurisprudência começa a caminhar para esta direção a partir do HC 598.051/SP, julgado pela 6ª Turma, de relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz, reconhecido por seus votos substanciosos e responsáveis por overruling. Após verificar que falta verossimilhança no testemunho policial que alega consentimento livre do morador que autoriza a entrada em seu domicílio para formação de prova incriminatório em seu desfavor, criou-se um filtro em tais casos, reconhecendo ser necessário a prova da legalidade da voluntariedade do consentimento a partir da declaração assinada ou de registro em vídeo e áudio. A posição foi acompanhada pela 5ª Turma em caso de relatoria do ministro Ribeiro Dantas no HC n. 616.584/RS, unificando o tema no STJ.

Se por essas razões o testemunho policial, isoladamente, não é suficiente para justificar a legalidade do ingresso em domicilio, o que justifica aceita-lo como única prova valorada em sentenças condenatórias?

Do mesmo modo que falta verossimilhança na alegação de consentimento do morador que autorizou a produção de uma prova em seu desfavor, também não é provável que o testemunho policial não busque corroborar os atos anteriormente praticados no momento da prisão ou durante a investigação.

Nesse ponto merece prestígio a posição que começa a surgir na 5ª Turma do STJ, a partir dos ministros Ribeiro Dantas e Reynaldo Soares da Fonseca, que no julgamento do AREsp 1.936.393/RJ reconheceram que "a palavra do agente policial quanto aos fatos que afirma ter testemunhado o acusado praticar não é suficiente para a demonstração de nenhum elemento do crime em uma sentença condenatória. É necessária, para tanto, sua corroboração mediante a apresentação de gravação dos mesmos fatos em áudio e vídeo".

No caso, a Turma restaurou a sentença absolutória reconhecendo inconsistências nos depoimentos dos agentes policiais, sendo ressalvado o entendimento ainda mais abrangente dos ministros Ribeiro Dantas e Reynaldo Soares da Fonseca, que propõem um filtro similar aquele já adotado em relação aos casos de ingresso em domicílio.

Em conclusão, a melhor opção a ser adotada se orienta pela razoabilidade, como diria o provérbio "nem tanto ao mar, nem tanto ao solo", mas caminhando para redefinir o standard probatório do testemunho policial, sobretudo quando se trata de prova isolada nos autos, não confirmada por qualquer outro elemento independente, por exemplo, o depoimento de outros testemunhas, gravações em áudio e vídeo, declarações ou outras provas admitidas na legislação.

Em um Estado Democrático de Direito que protege a presunção de inocência, aceitar que pessoas sejam condenadas tão somente a partir do depoimento de policiais sem qualquer outra fonte de prova independente ou elemento que abone o testemunho, não porque se desconfia do testemunho policial, mas porque é inusitado que a Polícia Judiciária e o Ministério Público sejam incapazes de produzir qualquer outro elemento de prova além da simples oitiva dos responsáveis pela prisão ou pela investigação.

 


[1] "(…) Registre-se que os depoimentos dos policiais têm valor probante, já que seus atos são revestidos de fé pública, sobretudo quando se mostram coerentes e compatíveis com as demais provas dos autos. A propósito: AgRg no AREsp nº 1.317.916/PR, 5ª Turma, rel. min. Joel Ilan Paciornik, DJe de 5/8/2019; REsp nº 1.302.515/RS, 6ª Turma, rel. min. Rogerio Schietti Cruz, DJe de 17/5/2016; e HC nº 262.582/RS, 6ª Turma, Rel. min. Nefi Cordeiro, DJe 17/3/2016. (…) (AgRg no HC nº 606.384/SC, relator ministro Felix Fischer, 5ª Turma, julgado em 22/9/2020, DJe de 29/9/2020)"

[2] CASARA, Rubens. Presunção de veracidade dos depoimentos de agentes públicos: testemunhas acreditadas, da tradição islâmica ao autoritarismo brasileiro. In: Processo Penal do Espetáculo (e outros ensaios). 2ª Ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p. 209/210.

[3] "1. É pacífica a jurisprudência dos Tribunais Superiores no sentido de que, nos moldes do art. 202 do Código de Processo Penal, qualquer pessoa pode ser testemunha, inclusive a autoridade policial, não havendo que se falar em impedimento ou suspeição do delegado somente pelo fato de, em razão da natureza de seu cargo, ter presidido a fase inquisitorial. (…) (AgRg no RHC n. 117.506/CE, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, julgado em 10/10/2019, DJe de 18/10/2019)"

[4] LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2022, p. 543.

Autores

  • é mestre em Ciências Criminais (PUC-RS), especialista em Direito Penal Econômico (IBCCrim e Coimbra), conselheiro seccional da OAB-MS (2022-2024), professor, advogado e sócio fundador do escritório Bunning Advocacia Criminal.

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