Diário de Classe

Deter-se diante do Rubicão: a importância de uma cultura legalista no meio militar

Autores

  • Jesus Alexsandro Alves Rosa

    é doutorando em Direito pela Unesa bacharel em Ciências Militares (Aman) e em Direito (Unesa) mestre em Administração (UFF) professor de Direito Tributário do Toth Concursos e membro do Dasein.

  • Ziel Ferreira Lopes

    é coordenador do curso de Direito da Unifan professor da Univasf e Facape doutor e mestre em Direito pela Unisinos e membro do Dasein.

25 de fevereiro de 2023, 8h00

Em 11 de novembro de 1955, o marechal Henrique Teixeira Lott disse não a uma tentativa de golpe que visava impedir a posse de Juscelino Kubitschek, presidente que havia acabado de ser eleito democraticamente. Articulou-se, então, ativamente, para impedir ataques aos Poderes constituídos. O presidente assumiria, mas essa não seria a última vez em que Lott seria necessário na defesa do Estado Democrático de Direito [1]. Sua conduta abnegada chegaria, em outros momentos de crise, a levar populares às ruas sob os gritos de "Viva o Marechal da Legalidade!" [2].

Em vários desses momentos, Lott teria uma atuação que beneficiaria forças políticas com as quais ele — homem de direita, nacionalista e católico de linha tradicionalista — não concordava pessoalmente. A imparcialidade de sua posição institucional se sobreporia às preferências pessoais. Seu biógrafo registra que, já quando criança, no seu primeiro desfile do Colégio Militar, a família perguntou-lhe se não os havia visto enquanto marchava. Lott respondera: "eu os vi, mas um soldado não olha para os lados" [3].

A coragem e imparcialidade de Lott foram virtudes fundamentais, que marcaram seu nome na história. E, como ele, há vários outros nomes de legalistas notáveis. Mas é importante que não se individualizem esses feitos, concentrando-os em seus líderes mais famosos. Tais manobras legalistas foram resultados da ação conjunta de inúmeros rostos anônimos nos quartéis. Afinal, instituições não se confundem com a vontade de um único indivíduo, sendo necessário coordenar comportamentos, processo sempre difícil, contraditório e pouco linear.

Uma cultura de respeito à legalidade é a base fundamental para fazer comportamentos convergirem de modo não destrutivo. É certo que alguns disputarão o sentido dessa legalidade, já que textos de lei precisam ser interpretados. Desacordos realmente ocorrem na aplicação do direito, mas não podem chegar a corroer um consenso mínimo: as regras básicas do funcionamento democrático. Sua identificação deve ser um "caso fácil". A elas, todo o Estado e a sociedade devem respeito.

Nesse quadro, o papel atribuído às Forças Armadas ao longo de nossa história constitucional foi o de "sustentar" e "garantir" os "Poderes constituídos". Nas democracias contemporâneas, essa missão se refina, indo além da pura lógica de segurança e defesa, alcançando também uma dimensão social em questões relativas ao meio ambiente, educação, esporte, cidadania, desenvolvimento nacional, apoio à sociedade, ciência e tecnologia, dentre outros [4]. Sendo assim, suas atribuições se entrelaçam cada vez mais com a burocracia estatal, se aprimorando por meio de uma governança colaborativa

Essa nova inserção na sociedade, somada à lógica dos diálogos que tem pautado as relações entre instituições pelo mundo, a afasta completamente do extemporâneo conceito de um Poder Moderador, que alguns buscam forçar equivocadamente na interpretação do artigo 142 (como Lenio Streck e outros têm criticado). O afastamento não representa de modo algum uma perda, e sim uma vantagem para proporcionar a necessária neutralidade que as nobres missões das FA exigem, fartamente justificada de uma perspectiva administrativa. Como na metáfora popularizada por Streck, a Constituição opera como o mastro do navio em que se amarrou Ulisses, impedindo que ele se jogasse ao mar sob a tentação provocada pelos cantos das sereias. A cultura da legalidade é esse mastro para a hierarquia e a disciplina no meio militar.

Na burocracia em geral, quando cargos decisórios de natureza técnica são instrumentalizados politicamente, surge um conflito de interesses que maculará as instituições, as quais deveriam ser impassíveis face às maiorias de ocasião, garantindo a alternância democrática de poder.

Um arranjo institucional que poderia evitar ou minimizar o desgaste provocado pelo entrelaçamento da política com a burocracia seria o insulamento burocrático [5]. Não se trata aqui de uma demonização generalizada da política, nem da defesa de uma tecnocracia, mas apenas do reconhecimento de que certos setores funcionam melhor sob uma lógica política e outros sob uma lógica técnica. As FA se inserem nessa segunda lógica, ao prestarem um serviço público de extrema importância e periculosidade, que precisa ser desligado do ciclo das paixões eleitorais. Tratar disciplina e hierarquia com o rigor científico da gestão é encará-las sob a perspectiva comportamental. Elas não brotam espontaneamente da essência de um sujeito, sendo na verdade uma resposta à estrutura de incentivos nas quais ele está inserido. Se a estrutura de incentivos de uma instituição premiar posicionamentos políticos, eles tenderão a ocorrer.

Para evitar que isso ocorra, já existem quatro características das FA que poderiam obstar estes problemas, quais sejam:

(1) Trata-se de instituição estruturada com um corpo permanente estável, composto por militares de carreira selecionados por concursos públicos;

(2) Os procedimentos internos das unidades buscam ser espelhados e uniformizados;

(3) Trata-se de uma instituição socialmente inserida, alcançando todas as faixas sociais; e

(4) Os posicionamentos políticos são expressamente vedados aos seus membros da ativa.

Vale comentar que a ideia de insulamento burocrático trabalhada aqui não se trata da visão ultrapassada de um total fechamento de um órgão, que em qualquer estrutura administrativa poderia levar a degenerações elitistas, corporativistas e autoritárias. Há, sim, a necessidade de combinar ao insulamento burocrático mecanismos contemporâneos de uma governança democrática [6], aprimorando sua gestão e accountability. Por exemplo, as nomeações do Comando combinam elementos da burocracia militar e do poder civil. Ademais, há a necessidade de articulação, coordenação e harmonização de pareceres, sobretudo em assuntos afetos à Política Nacional de Defesa, levada a efeito pelo Decreto nº 5.484, 2005 do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nesse sentido, é grande a importância da Assessoria Parlamentar do Ministério da Defesa, que se liga com a Assessoria Parlamentar do Gabinete do Comandante do Exército [7] e suas congêneres da Marinha e da Força Aérea. O mencionado assessoramento de modo algum compromete o insulamento, uma vez que o referido sistema se irradia para os entes federados, tendo como regramento institucional que seus membros sejam isentos, impessoais e apartidários e dispensem um tratamento isonômico a todos os parlamentares independentemente de partido ou ideologia.

Mesmo com essas e outras garantias, várias instituições sofrem para se blindar contra o famoso problema da captura, como as agências reguladoras em relação aos players do mercado que regulam. Capturas essas que propiciam, segundo Fernando Henrique Cardoso, uma espécie de infiltração clientelista no insulamento, gerando assim "anéis burocráticos […] um mecanismo pelo qual implicitamente se define que a administração é supletiva aos interesses privatistas, e esses fluem em suas relações com o Estado, através de teias de cumplicidade pessoais" [8].

No caso da burocracia militar, o desafio se torna imensamente maior enquanto pairar sobre a Força o mito de que ela exerceria um papel de Poder Moderador, algo inexistente nos arranjos institucionais das democracias contemporâneas, e que gera um imaginário nocivo de excepcionalidade. No âmbito interno, fomenta a sublevação das tropas; no externo, fomenta a competição interinstitucional, através da confusão de competências e atribuições.

Abster-se do poder, deter-se diante do Rubicão, sempre foi o gesto supremo de honra militar em prol das autoridades constituídas. Exercer a deferência às demais entidades democraticamente legitimadas para agir é a versão contemporânea dessa prática, que fomenta a lealdade intrainstitucional e a cooperação interinstitucional.

 


[1] Veja-se o material a seu respeito disponível no CPDOC.

[2] CARLONI, Karla Guilherme. Marechal Henrique Lott: Memória, Mito e História. In: Anais do XXV Simpósio Nacional de História – História e Ética. Fortaleza: ANPUH, 2009.

[3] WAGNER, William. O soldado absoluto: uma biografia do Marechal Henrique Lott. Rio de Janeiro: Record, 2020.

[5] "O insulamento burocrático é o processo de proteção do núcleo técnico do Estado contra a interferência oriunda do público ou de outras organizações intermediárias. Ao núcleo técnico é atribuída a realização de objetivos específicos. O insulamento burocrático significa a redução do escopo da arena em que interesses e demandas populares podem desempenhar um papel". NUNES, E. D. O. A gramática política do Brasil: clientelismo, corporativismo e insulamento burocrático. Rio de Janeiro: Garamond, 1997. p. 54”

[6] CAVALCANTE et al. Do insulamento burocrático à governança democrática: as transformações institucionais e a burocracia no Brasil. In: Pires et al (Orgs.) Burocracia e políticas públicas no Brasil: interseções analíticas. Brasília: Ipea/Enap, 2018. p.59-83.

[7] A Assessoria 4, ou Parlamentar, é a que trata dos assuntos relacionados com o Poder Legislativo Federal. Cabe a ela acompanhar, no Congresso Nacional, a tramitação de proposições legislativas; estabelecer contatos e ligações com os parlamentares; acompanhar a tramitação dos Planos Plurianuais, da Lei de Diretrizes Orçamentárias, da Lei de Orçamento Anual e das emendas parlamentares, de acordo com as necessidades do Exército. Além disso, essa Assessoria possui as seguintes missões: elaborar estudos e análises sobre a conjuntura política nacional, conforme a necessidade do Comandante do Exército; encaminhar as demandas dos parlamentares aos órgãos competentes; emitir pareceres sobre Projetos de Lei de interesse da Força, em consonância com pareceres circunstanciados do Órgão de Direção Geral e dos Órgãos de Direção Setorial; e divulgar os Projetos Estratégicos no âmbito do Congresso Nacional. Vide Blog do Exército Brasileiro https://eblog.eb.mil.br/index.php/menu-easyblog/o-sistema-de-assessoramento-parlamentar-do-exercito.html. Acesso em 20 fev. 2023

[8] CARDOSO, Fernando Henrique. A construção da democracia: estudos sobre política. São Paulo: Siciliano, 1993. p. 99-100.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!