Ambiente Jurídico

Considerações sobre o saneamento básico dos nossos dias

Autor

  • Eduardo Coral Viegas

    é promotor de Justiça no MP-RS graduado em Direito pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) especialista em Direito Civil mestre em Direito Ambiental palestrante ex-professor de graduação universitária atualmente ministrando cursos e treinamentos e integrante da Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente. Autor dos livros Visão Jurídica da Água e Gestão da Água e Princípios Ambientais.

25 de fevereiro de 2023, 8h00

Num doce balanço a caminho do mar; ah, se ela soubesse que quando ela passa, o mundo inteirinho se enche de graça, e fica mais lindo por causa do amor… por causa da vida, do meio ambiente, da ética esperada de cada um de nós, da justiça em dar a cada um o que é seu, da espiritualidade que confia na máxima de que Deus é onipresente e onisciente, sendo um presente para cada um de nós e estando presente em cada ser único que habita nossa terra pátria.

Spacca
Ao balanço de uma das canções mais icônicas da nossa geração, a de maior execução no mundo após Yesterday, dos Beatles, vemos a inspiração do poeta Tom Jobim, letrada por Vinícius de Moraes, ainda em 1962, retratar mais do que a Garota de Ipanema adolescente deslumbrante de 18 anos que fazia todos pararem para vê-la desfilar na Praia de Ipanema.

Em minha visão, a música é também e especialmente dirigida às águas, aos recursos hídricos protegidos, limpos, balneáveis, que podem ser consumidos pela humanidade em seu estado original, hoje uma utopia, porque o homem, lobo do próprio homem, conforme Thomas Hobbes, não respeitou o recurso natural mais consumido no mundo, a água, fonte de vida e da vida, nossa querida água, considerada um direito humano fundamental.

Efetivamente, o acesso à água potável e ao saneamento básico é um direito humano essencial, fundamental e universal, indispensável à vida com dignidade e reconhecido pela ONU como "condição para o gozo pleno da vida e dos demais direitos humanos" (Resolução 64/A/RES/64/292, de 28/7/2010).

No Brasil, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81), antes mesmo da Constituição de 1988, estabeleceu regras ambientais de proteção diferenciada, algo inovador e disruptivo para a época, instituindo, por exemplo, a responsabilidade objetiva pelo dano ambiental e a tríplice responsabilização dos infratores: penal, civil e administrativa. Ela conceituou em seu artigo 3º, V, que são recursos ambientais a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora.

Portanto, nossa legislação conceitua o tema e o protege em normas jurídicas bem estruturadas. Consoante o artigo 225 da CF, todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, incumbindo ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e de preservá-lo para as presentes e as futuras gerações. É, pois, um direito intergeracional. Quanto aos recursos hídricos, cada geração vem recebendo os mananciais em condições piores da que seus ancestrais. Estamos degradando o recurso ambiental mais precioso, e assim estamos agindo contra nós próprios, que integramos a natureza, somos partes de Gaia, e prejudicamos a atual geração e as que estão por vir.

Se Pachamama tem ¾ de água, somos o espelho da mãe. Isso porque nosso organismo adulto também é composto aproximadamente de 70% do líquido precioso. E esse líquido está sobretudo nas porções intracelulares de nosso ser. Nascemos com em torno de 90% de água e vamos desidratando ao longo da vida. Na velhice, já com a pele ressecada, estaremos com algo ao redor de 50% do ouro azul. Por isso é tão importante tomarmos entre dois e três litros de água por dia. Nascemos na água e ela nos mantém vivos. Mas não basta termos acesso a uma quantidade ideal de água.

É preciso mais. Temos o direito fundamental de acesso à água em quantidade suficiente e qualidade adequada, como defendo no pioneiro livro Visão Jurídica da Água. A Lei nº 9.433/97, conhecida como Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, estabelece fundamentos e objetivos claros e precisos, como assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos; a utilização racional e integrada dos recursos hídricos, com vistas ao desenvolvimento sustentável; a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem natural ou decorrentes do uso inadequado dos recursos naturais; e incentivar e promover a captação, a preservação e o aproveitamento de águas pluviais.

Por outro lado e complementarmente, estabelece como fundamentos que a água é um bem de domínio público (divididos na CF entre União e Estados); a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico; em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais; a gestão deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas; a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos; a gestão hídrica deve ser descentralizada e contar com a participação do poder público, dos usuários e das comunidades.

Como leciono no livro Gestão da Água e Princípios Ambientais, os municípios não detêm domínio sobre os mananciais hídricos, mas o artigo 30, V, da CF dispõe sua competência para organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, e o saneamento é no mais das vezes uma temática de interesse local. Esse serviço pode ser prestado diretamente pelo poder público municipal, por convênio com os estados, e assim tem sido há décadas, por intermédio das companhias estaduais de saneamento, ou delegados à iniciativa privada.

A Lei nº 11.447/2007 estabeleceu as diretrizes nacionais do saneamento. Ela veio a ser alterada e complementada pela Lei nº 14.026/2020 (novo marco do saneamento). Traça como fundamentos a universalização integral do acesso e a efetiva prestação do serviço; que o saneamento abrange o abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo dos resíduos sólidos; adoção de métodos, técnicas e processos que considerem as peculiaridades locais e regionais; eficiência e sustentabilidade econômica; utilização de tecnologias apropriadas, considerando a capacidade de pagamento dos usuários e a adoção de soluções graduais e progressivas; estímulo à pesquisa; transparência das ações; controle social; segurança, qualidade e regularidade; integração das infraestruturas e serviços com a gestão eficiente; adoção de medidas de fomento à moderação do consumo; redução e controle das perdas; prestação regionalizada dos serviços, com vistas à geração de ganhos de escala e à garantia da universalização e da viabilidade técnica e econômico-financeira dos serviços; seleção competitiva do prestador dos serviços; e prestação concomitante dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário.

Um aspecto central é a universalização do saneamento. Escrevi em 16/12/2017, neste ConJur, sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS): "Eles foram consolidados em 17 objetivos a serem alcançados até 2030. Alguns dizem respeito, direta ou indiretamente, aos recursos hídricos. E um, em particular — ODS 6 — define o propósito de, em 2030, chegarmos com acesso universal e equitativo à água potável e segura para todos, bem como ao saneamento e higiene, acabando-se 'com a defecação a céu aberto, com especial atenção para as necessidades das mulheres e meninas e daqueles em situação de vulnerabilidade'".

Ocorre que, quanto mais nos aproximamos de 2030, mais percebemos a distância para alcançarmos a universalização tão sonhada. Os mananciais, de um modo geral, estão cada vez mais poluídos. As causas dessa triste realidade são conhecidas, e estão todas ligadas à ação do homem, que é o único ser vivo que destrói sua própria casa. As consequências são nefastas, atingindo todos os seres que habitam a Mãe Terra, especialmente gerando doenças e mortes. A forma de enfrentamento da crise hídrica passa por ações efetivas do poder público e da coletividade.

O novo marco do saneamento assentou o prazo da universalização, estabelecendo no artigo 11-B: "Os contratos de prestação dos serviços públicos de saneamento básico deverão definir metas de universalização que garantam o atendimento de 99% da população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033, assim como metas quantitativas de não intermitência do abastecimento, de redução de perdas e de melhoria dos processos de tratamento".

A pergunta que não cala é: será que mais perto do novo prazo definido não teremos nova alteração legislativa para ampliar as metas de universalização?

Em artigo didático e preciso, intitulado Saneamento: responsabilidade primária do Estado, publicado em Zero Hora neste ano, Flávio Presser, engenheiro civil, conselheiro da Abes e uma das maiores autoridades em saneamento do Brasil, já tendo sido gestor do Dmae, de Porto Alegre, e da Corsan, que atende a maioria dos municípios gaúchos, afirma sobre a universalização que "todos terão de ser atendidos, independentemente de terem ou não capacidade de pagar".

No texto, leciona que não basta a participação privada para atingir a meta; é fundamental uma regulação do serviço por agências econômica e administrativamente independentes, e qualificadas. E que o poder público saiba celebrar bons contratos e os acompanhe devidamente, sendo eles complexos e de longo prazo. Conclui sentenciando: "Em suma, a participação privada na prestação dos serviços de saneamento nem de longe significa a redução do papel do Estado, e este não pode se eximir de suas responsabilidades".

Iniciei falando de Tom Jobim e concluo com a música Águas de Março, interpretada por Tom e Elis Regina. Estamos encerrando o verão de 2023 com a vinda das águas de março. Faltam, portanto, dez anos para a tão sonhada universalização do saneamento. Mais do que um sonho, uma utopia, é uma promessa de vida. O que seria do ser humano se não sonhasse. Mas não basta sonhar, é necessário agir, executar, fazer acontecer. E para tanto devemos nos unir em esforço máximo, poder público, coletividade e cada um de nós, para que todos tenham satisfeito o direito básico de beber água de qualidade, em quantidade suficiente e qualidade adequada.

Autores

  • é promotor de Justiça no MP-RS, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Civil, mestre em Direito Ambiental, palestrante com mais 24 anos de experiência, ex-professor de graduação universitária, atualmente ministrando cursos e treinamentos, integrante da Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente, colunista na ConJur e autor dos livros Visão Jurídica da Água e Gestão da Água e Princípios Ambientais.

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