Opinião

Letalidade policial e responsabilidade civil: precariedade das provas onera o Estado

Autores

  • Marcelo Semer

    é desembargador do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo); autor de "Sentenciando Tráfico — O Papel dos Juízes no Grande Encarceramento" (Tirant lo Blanch) e "Os Paradoxos da Justiça: Judiciário e Política no Brasil" (ed. Contracorrente).

  • Cauan Arantes Barcellos Silva

    é graduado pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) servidor público do TJ-SP lotado no gabinete do desembargador Marcelo Semer desde 2014.

24 de fevereiro de 2023, 6h08

Em Indignos de Vida, Orlando Zaccone traça o desenho do papel do sistema de justiça sobre a violência policial, a partir de uma pesquisa de arquivamentos de inquéritos de homicídio no estado do Rio de Janeiro. O Ministério Público, costumeiramente tão assertivo e persecutório, acusador e indignado com absolvições, exerce outro perfil quando o assunto são os homicídios praticados por policiais contra supostos traficantes, a quem o autor vai denominar de indignos de vida. Poucas diligências, ausências de análise fática — muitas vezes até sem laudos cadavéricos- e uma presunção quase absoluta da legítima defesa ou exercício regular de direito, sempre que a vítima está no rol dos matáveis: marginais, habitantes de favelas, portadores de maus antecedentes criminais, traficantes.

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O fiscal da lei simplesmente a abandona, quando em questão a higidez da polícia, como mostra a seguinte passagem de um pedido de arquivamento:

"Aqueles que jamais subiram morros, favelas ou sequer conhecem de perto os antros frequentados por marginais, e que se enclausuram em seus gabinetes sem que nunca tenham participado de tiroteio, seja no estrito cumprimento do dever legal ou também em legítima defesa, não devem se apegar com antolhos ao texto gélido da lei, distante do calor dos acontecimentos e a salvo de gravíssimos riscos, na busca do enfraquecimento ou do desestímulo das atividades de Polícia Judiciária, em toda a sua plenitude legal[1]."

A conclusão de Zaccone é que a violência policial não é um erro de procedimento de alguns policiais despreparados, é uma política de Estado[2].

Não se pode dizer que esta seja uma avaliação propriamente isolada, restrita, localizada. O país tem índices de letalidade policial muito expressivos — de acordo com o Anuário Brasileiro da Segurança Pública, entre 2009 e 2016 foram 21.982 brasileiros mortos em ações policiais[3] — e uma cultura relativamente diminuta de responsabilização criminal. Sem contar os estímulos que vez por outra ainda são expedidos pelas autoridades, como por exemplo, a proposta contida no Projeto da Lei "Anticrime", do então ministro da Justiça, Sergio Moro, em defesa da ampliação da "excludente de ilicitude" — sobretudo dirigida aos homicídios resultantes de intervenção policial —, ou o indulto despedida de Jair Bolsonaro, explicitamente em benefício dos policiais envolvidos no "massacre do Carandiru".

A questão que pretendemos abordar neste artigo, porém, não se dirige à apuração criminal dos atos de violência estatal, cobertos, se não pela complacência explícita, muitas vezes pela investigação displicente, convergindo com a presunção quase absoluta de inocência, que nessa seara responde pelo nome de "autos de resistência". A discussão que aqui se pretende, todavia, é o impacto desta violência na responsabilidade civil do Estado.

Pela teoria do risco administrativo, adotada no Brasil para a responsabilidade civil do Estado (artigo 37, §6º, da CR), por deter a maior parte das atividades em suas mãos, com a assunção dos riscos inerentes, deve o Estado responder objetivamente (ou seja, independentemente de culpa), pelos danos que seus agentes públicos, nessa qualidade, causarem a terceiros.

Para que haja a responsabilização objetiva do Estado, pois, necessária a existência de conduta, dano e nexo de causalidade entre os dois. Na eventualidade de uma ação policial (conduta) da qual resulte morte (dano) causada por projéteis provenientes do revólver empunhado pelo servidor público policial (nexo causal), por exemplo, a obrigação de indenizar os familiares da vítima encontra-se configurada, desde que não haja excludente da ilicitude do ato, a romper o liame causal — e a delinear a higidez da ação estatal.

Cabe, porém, ao Estado, o ônus de comprovar que sua ação foi legítima, uma vez existente excludente de responsabilidade, pela culpa exclusiva da vítima, fato de terceiro ou caso fortuito ou de força maior.

Na maioria dos casos da espécie, a culpa exclusiva da vítima seria a excludente a ser utilizada pelo Estado para se eximir da responsabilidade e demonstrar que sua atuação foi regular, motivada, por exemplo, por conduta da vítima, que atirou contra os policiais, que responderam de forma proporcional e no exercício de sua função pública.

Porém, como quase não há fiscalização efetiva dessa atividade policial — em um ciclo vicioso que se inicia com a atuação ilimitada do agente, passa pela fiscalização falha do órgão que deveria fazer o controle externo e termina pelo Judiciário chancelando, muitas vezes, a "vista grossa" da atuação em desvio de poder — os protocolos de atuação também são praticamente inexistentes, resultando em uma espécie de vácuo institucional.

Como efeito colateral, a excludente de responsabilidade do Estado também não é suficientemente elucidada. A culpa exclusiva da vítima não se constata, com segurança, pela fragilidade dos depoimentos tomados no inquérito, pela ausência de provas técnicas, pelo não fornecimento de imagens da ação, pela ausência de registros de GPS e, ainda, pelas interferências negativas da própria polícia, como a remoção de corpos, suscitada, muitas vezes, pelo "falso socorro"[4].

Ou seja, a prova costuma ser frágil e dependente dos relatos imprecisos — e, muitas vezes, inverossímeis — dos policiais, exatamente porque não se registram elementos e se produzem provas que permitam aferi-los.

Mesmo que, em certos casos, de complacência ou investigação desperdiçada, a punição seja inalcançável no âmbito criminal, resta íntegra, todavia, a responsabilidade civil do ente público, quando, comprovada a violência, não se faz prova suficiente da causa de exclusão, ou seja, da culpa exclusiva da vítima. Enquanto na seara criminal, a dúvida beneficia o réu, no âmbito da responsabilidade objetiva, impede o reconhecimento da causa de exclusão da obrigação de indenizar.

Ou seja, provado o nexo de causalidade, de que a morte da vítima decorreu da ação policial, a ausência de elementos que assegurem a culpa exclusiva desta, decorrentes das deficiências da própria investigação, resulta na obrigação de indenizar os familiares das vítimas, pelos danos causados.

Tivemos a oportunidade de apreciar a questão por algumas vezes na jurisdição da 10ª Câmara de Direito Público, como no caso abaixo reproduzido:

"APELAÇÃO. Ação de indenização por danos materiais e morais. Responsabilidade Civil do Estado. Morte de Luciano (…) – filho, marido e pai dos autores – em ação policial, tida como de “autos de resistência” (resistência à prisão seguida de morte). Sentença que julga improcedente a ação. Reforma. Arquivamento do inquérito policial que não obsta a responsabilização objetiva do Estado na esfera cível. Precedentes. Responsabilidade objetiva do Estado que se verifica com a existência de nexo causal entre a conduta (ação) imputada à Administração e o dano experimentado para ensejar obrigação de indenizar. Necessidade de comprovação de excludente da responsabilidade, pelo Estado, para se eximir de compensar os danos sofridos pelos autores. Culpa exclusiva da vítima que, no caso dos autos, não restou devidamente comprovada. Dúvida que beneficia os autores na responsabilidade objetiva. Precedentes do TJSP. Precedente recentíssimo da Câmara. Versão policial de que teria havido resistência e troca de tiros que restou fragilizada, havendo fortes indícios de que Luciano teria sido morto desarmado (…)"[5].

Neste sentido, em manifestação recente, voto do ministro Gilmar Mendes no ARE n.º 1.382.159/RJ, entendendo que, "se houver morte em operação policial e o Estado não comprovar que a iniciativa foi legal e que não tem culpa pelos danos, deverá indenizar os familiares da vítima"[6].

A violência estatal é uma chaga no país, tendo o Brasil inclusive já sido condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, no Caso Cosme Rosa Genoveva e outros contra Brasil (ou Caso "Favela Nova Brasília"), julgado em 11/5/2017 — reconhecendo-se a ocorrência de 26 execuções extrajudiciais, ademais de outras violências, que a apuração local concluíra tratar-se apenas de "autos de resistência de prisão".

Constou da sentença da Corte IDH que: "de acordo com informações de órgãos estatais, a violência policial representa um problema de direitos humanos no Brasil…Segundo dados oficiais, 'os homicídios são hoje a principal causa de morte de jovens de 15 a 29 anos no Brasil…' …Em 1996, o Brasil reconheceu perante o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas que era preciso tomar medidas para acabar com a impunidade das violação de direitos humanos atribuídas a autoridades policiais, provocadas por um funcionamento excessivamente lento das engrenagens da justiça, fruto, por sua vez, em muitas ocasiões, da incapacidade dos estados de realizar uma investigação policial eficiente… Por sua vez, a Comissão Interamericana salientou que as mortes ocorridas durante as intervenções policiais são registradas como legítima defesa; não obstante isso, da autópsia das vítimas comumente decorre que elas morrem por disparos recebidos em regiões vitais do corpo. A esse respeito, em 1996, o Comitê de Direitos Humanos mostrou preocupação com os casos de execuções sumárias e arbitrárias cometidas por forças de segurança e 'esquadrões da morte' no Brasil…Há dificuldades para que os casos de execuções sumárias e arbitrárias sejam investigados de maneira adequada e, com frequência, ficam impunes…Um dos elementos que dificultam as investigações são os formulários de 'resistência à prisão', os quais são emitidos antes da abertura da investigação relativa a um homicídio cometido por um agente policial. Antes de investigar e corroborar a conduta policial, em muitas das investigações se realiza uma investigação a respeito do perfil da vítima falecida e se encerra a investigação por considerar que era um possível criminoso…No Relatório sobre a Missão ao Brasil, em 2003, a então Relatora Especial das Nações Unidas sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias afirmou que ‘[uma] análise mais minuciosa revela que as mortes cometidas pela polícia são frequentemente execuções extrajudiciais mal disfarçadas’. No Relatório da visita de 2007 e no Relatório de Acompanhamento das Recomendações, o Relator Especial reiterou que, na maioria dos casos, as execuções cometidas por policiais em serviço são registradas como ‘autos de resistência’ ou casos de ‘resistência seguida de morte’, ou seja, a própria polícia determina se se tratou de uma execução extrajudicial ou de uma morte conforme a lei. Em raras ocasiões essas classificações realizadas pela própria polícia são investigadas seriamente, e poucos autores são processados ou condenados…Entre as medidas existentes para enfrentar esse problema, o Ministério Público tem, entre as atribuições definidas no artigo 129 da Constituição Federal de 1988, a responsabilidade de controle externo da atividade policial"[7].

Embora o cenário seja aterrador, há também boas iniciativas sendo buscadas, como por exemplo a discussão que ganhou força no Superior Tribunal de Justiça, a respeito das violações de domicílio cometidas por agentes policiais estatais e a importância da gravação dessas abordagens, de modo a produzir prova da legitimidade da ação estatal — o que assegura, de um lado, a própria instituição policial, da lisura de sua atuação e, por outro, os direitos fundamentais dos cidadãos abordados.

Foi o que destacou o ministro Rogério Schietti Cruz, no julgamento do HC n.º 598.051/SP, ao defender que a gravação audiovisual e o registro escrito do consentimento do morador, além de confirmar a licitude da prova obtida, protegem tanto o residente quanto os policiais: "Por isso, avulta de importância que, além da documentação escrita da diligência policial (relatório circunstanciado), seja ela totalmente registrada em vídeo e áudio, de maneira a não deixar dúvidas quanto à legalidade da ação estatal como um todo e, particularmente, quanto ao livre consentimento do morador para o ingresso domiciliar. Semelhante providência resultará na diminuição da criminalidade em geral — pela maior eficácia probatória, bem como pela intimidação a abusos, de um lado, e falsas acusações contra policiais, por outro — e permitirá avaliar se houve, efetivamente, justa causa para o ingresso e, quando indicado ter havido consentimento do morador, se foi ele livremente prestado" (6ª Turma, j. 02.03.2021, g.n.).

Em São Paulo, avalia-se que a instituição das câmeras corporais nos uniformes de policiais pode ter levado à queda de até 85% da letalidade policial[8]. Nos batalhões em que foi implantado o "programa Olho Vivo", das câmeras corporais, entre 1/6/2021 e 31/12/2021, houve 17 mortes decorrentes de intervenção policial. No ano anterior, em igual período, sem as câmeras, os mesmos batalhões registraram 110 mortes. De acordo com o mesmo levantamento, as câmeras auxiliaram a identificar tanto ocorrências com atuação policial ilegítima — suspeito morto desarmado e sem esboçar reação — quanto com atuação legítima — suspeito que sacou a arma que estava sob a camiseta antes do policial disparar[9].

Dentro desse universo de práticas destinadas à apuração, responsabilização e extinção da letalidade policial, entendemos de muita relevância a reflexão sobre os limites da autonomia da jurisdição cível, sobretudo, sob impacto da natureza de contenção de poder, inerente a um direito administrativo moldado pelo Estado democrático de Direito.


[1] Indignos de vida, A forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015, p. 155.

[2] Op. cit., p. 5.

[4] O “falso socorro” consiste no método por meio do qual os agentes das forças de segurança levam pessoas envolvidas em tiroteio já mortas ao hospital, com o único intento de alterar a cena do crime. Para tentar combater esse método, próprio do “direito penal subterrâneo”, foi baixada a Resolução n.º 5, da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, de 07.01.2013, que determinou que nas ocorrências “relativas a lesões corporais graves, homicídio, tentativa de homicídio, latrocínio e extorsão mediante sequestro com resultado morte, inclusive as decorrentes de intervenção policial” (art. 1º, da mencionada resolução, g.n.), os agentes que primeiro atenderem à ocorrência deverão: (i) acionar o SAMU, (ii) comunicar o COPOM e (iii) preservar o local até a chegada da perícia. Essa Resolução, ao ser elaborada pelo próprio Poder Executivo do Governo do Estado de São Paulo, demonstra que mesmo os comandantes da Polícia Militar do Estado reconhecem que as forças de segurança estatais têm agido em excesso na sua atuação, dificultando a fiscalização e a investigação sobre a legalidade das abordagens. Também nessa linha, vale lembrar da recente tentativa de aprovação de projeto de lei (encerrado com o fim da legislatura em 2022), que visava à extinção dos chamados “autos de resistência”, que por muitas vezes acabam ocultando mortes violentas que deixaram de ser devidamente apuradas: “PLS 239/16: Altera o Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.689/1941) para atualizar as normas sobre o Exame de Corpo de Delito e Perícias Criminais, tornando obrigatória a autópsia e exame interno nos casos de morte violenta em ações com o envolvimento de agentes do Estado; e dá nova disciplina para a hipótese de resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, determina a instauração de inquérito para apuração de eventual excesso no uso da força, disponível em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/126117, g.n.

[5] Apelação n.º 1034836-32.2014.8.26.0053, julgada em 22.07.2019. Assim também a Apelação 0052363-84.2012.8.26.0602, julgada em 03.06.2019.

[6] Rodas, Sérgio. Para Gilmar, Estado deve provar que não é culpado por morte em operação policial”, in Consultor Jurídico, edição de 07/02/2023, disponível em https://www.conjur.com.br/2023-fev-07/gilmar-estado-provar-nao-culpado-morte-operacao, acesso em 16.02.2023, 12h00.

[7] Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Favela Nova Brasília Vs. Brasil, Sentença de 16 de fevereiro de 2017, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, pp. 28-31, disponível em http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_333_por.pdf, g.n.

[8] Pagnan, Rogério: “Letalidade policial desaba 85% em batalhões de SP com câmeras em uniformes”, in Folha de S. Paulo, edição de 27/01/2022, disponível em https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/01/letalidade-policial-desaba-85-em-batalhoes-de-sp-com-cameras-em-uniformes.shtml, acesso em 16.02.2023, 11h50.

[9] Idem.

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