Opinião

Queixa subsidiária e controle do arquivamento de inquéritos no STF

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23 de fevereiro de 2023, 17h23

Nos Supremo Tribunal Federal (STF), há muito tempo prevalece a noção de que o arquivamento do inquérito policial no prazo legal impede a propositura de ação penal privada subsidiária de pública mediante queixa de inciativa do ofendido.

Esse tradicional entendimento deriva de técnica de interpretação restritiva — possível e razoável — de um direito subjetivo previsto na norma constante da primeira parte do artigo 29 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, que veicula o nosso Código de Processo Penal (CPP). Referida norma estatui que "será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal […]".

Em linha com o disposto no ainda vigente artigo 29 do CPP, na redação original da Parte Geral do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, o nosso Código Penal (CP), já havia regra semelhante no §3º do artigo 102, que estipulava que "a ação privada pode intentar-se nos crimes de ação pública, se o Ministério Público não oferece denúncia no prazo legal".

Contrariamente à jurisprudência que veio a se formar a respeito do tema, nos primeiros anos de vigência do §3º do artigo 102 do CP e do artigo 29 do CPP, o STF concluiu que o arquivamento não seria óbice à queixa, em interpretação declaratória da lei — também possível e razoável. Foi o que se registrou, por exemplo, por ocasião da apreciação pela 2ª Turma (T.) do Recurso Extraordinário (RE) nº 8.777, relatado pelo ministro Bento de Faria, na sessão de julgamento de (j.) 15/12/1944, vencidos os ministros José Linhares e Orozimbo Notato. A ilustrar a tese que prevaleceu, segue o seguinte trecho do voto do relator:

"O artigo 29 do Código do processo penal dispõe que será admitida queixa nos crimes de ação pública se esta não for intentada no prazo legal, observando-se, é claro o prazo estabelecido no artigo 38, isto é, des que a atividade do ofendido seja exercitada no prazo de seis mezes contados do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, ou no caso do art. supra referido, que configura a hipótese do dia em que se esgotar o praso para o oferecimento da denuncia.
Ora, a ação pública não foi intentada no praso legal, des que a denuncia não foi oferecida.
Conseguintemente, dita ação não foi promovida pelo M. Público, des que ele se recusou a faze-lo requerendo o archivamento do inquérito.
Podia, portanto, o ofendido assumir a iniciativa."

O mesmo entendimento foi registrado nos seguintes julgados: RE nº 13.026, 1ª T., unânime, relator ministro Laudo de Camargo, j. 13/10/1948; RE nº 17.779, 1ª T., por maioria, relator ministro Afrânio da Costa, vencido no mérito o ministro José Linhares, j. 30/10/1950; RE nº 21.157, 2ª T., unânime, relator ministro Afrânio Costa, j. 14/10/1952; RE nº 30.051, 2ª T., relator ministro Rocha Lagoa, vencidos os ministros Edgard Costa e Orozimbo Nonato, j. 20/12/1955; RE nº 28.677, 2ª T., redator do acórdão Lafayete de Andrada, j. 27/12/1955, vencidos o relator ministro Orozimbo Nonato e o ministro Edgard Costa.

Trata-se de interpretação declaratória do texto do artigo 29 do CPP, pois "não oferecer denúncia" é fato genérico que pode ser resultado de diversas causas como: arquivamento, solicitação de novas diligências, desídia e assoberbamento. A lei não diz que se não for providenciado no arquivamento no prazo legal, caberá a ação privada. Diz apenas que cabe a queixa subsidiária se a ação pública não for proposta no prazo legal (o fato). Se há arquivamento, não está proposta a ação no prazo da lei, o que faria surgir a legitimidade do ofendido. Considerando que o legislador focalizou o fato, e não as suas causas, essas, para o intérprete, podem ser vistas como desinfluentes, e assim foram vistas pela jurisprudência mais antiga do STF.

A mudança de entendimento começou por ocasião do julgamento dos embargos no RE nº 28.677, na sessão de 31/12/1956, quando o Plenário, por maioria, na esteira do voto do relator ministro Ary Franco, em sentido contrário ao que havia decidido na assentada anterior, reconheceu o descabimento da queixa subsidiária após o arquivamento, contra o voto do ministro Afrânio Costa. Contudo, duas questões relevantes animaram e determinaram o julgamento: 1) à época se considerava que o arquivamento era ato judiciário, e não do Ministério Público (MP); 2) no caso concreto, o STF entendeu que o crime imputado era contra a administração da Justiça, sem que houvesse lesão a alguém que pudesse se arvorar na condição de ofendido. Senão, vejamos o que constou do voto do relator:

"A corrente vencedora foi no sentido de ser lícito o oferecimento da queixa.
Eu, porém, faço parte da corrente que pensa de maneira contrária, de modo que me inclino para o recebimento dos embargos. Se o Ministério Público, dono da ação, requer o arquivamento, não pode ser promovida a ação penal privada.
Sei que há uma terceira corrente, a que se filia o eminente ministro Hahnemann Guimarães, no sentido de que, em se tratando de arquivamento de processo em ação penal pública, requerido pelo Ministério Público, em que haja lesão a alguém, isto é, em que pudesse o interessado intervir no processo como assistente, é lícito a esse interessado promover a ação penal privada.
Mas, no caso dos autos, nem isso ocorre. A infração penal, atribuída ao embargante, teria sido a do artigo 342 do Código Penal, isto é, fazer afirmações falsas, como perito. É um crime contra a administração da Justiça.
São estas as razões que me levam, filiando-me à corrente em que foi voto vossa excelência, a receber os embargos para negar provimento ao recurso."

Nas décadas de seguintes, passou a predominar no STF esse entendimento mais restritivo ao direito de queixa subsidiária. Foi o que se registrou nos seguintes julgamentos unânimes: Agravo de Instrumento (AI) nº 35.861, relator ministro Evandro Lins e Silva, j. 14/9/1965, no âmbito do qual houve menção ao acórdão do RE nº 2677; AI 38.208, 1ª T., relator ministro Evandro Lins e Silva, j. 2/5/1966; RE nº 94.135, 2ª T., relator ministro Leitão de Abreu, j. 29/5/1981; Inquérito (Inq) nº 172-4, Pleno, relator ministro Octavio Gallotti, j. 12/12/1984.

O direito de queixa, por obra dessa interpretação restritiva, dar-se-ia apenas na hipótese da falta de arquivamento no prazo legal, e não, mais genericamente, com a falta de denúncia tempestiva.

Na década de 1980, o legislador, contudo, não se animou a ajustar os termos generosos da lei à jurisprudência restritiva, pois, como se sabe, nosso CP passou por revogação de sua parte geral por força da Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984, mas regra de redação praticamente idêntica passou a constar do §3º do artigo 100, hoje vigente: "a ação de iniciativa privada pode intentar-se nos crimes de ação pública, se o Ministério Público não oferece denúncia o prazo legal".

O constituinte da década de 1980 igualmente não se sensibilizou com o novo entendimento restritivista do STF. Com efeito, com a superveniência da Constituição de 1988, houve a consagração no seu rol de garantias e direitos individuais de regra que reproduz a parte inicial do artigo 29 do CPP e o §3º do artigo 100 do CP. É o que se tem no inciso LIX do artigo 5º: "será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal". À luz do que o STF vinha decidindo, o constituinte poderia ter dito modestamente algo como "será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se o arquivamento não for providenciado no prazo legal", mas essa não foi a expressão utilizada. Focalizou-se a ausência de denúncia, em linha com os textos legislativos precedentes.

E, desde então, apesar das sucessivas alterações pelas quais passaram o CP e o CPP, o legislador nunca cuidou de ajustar os termos da regra que trata generosamente do cabimento da ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública. Não obstante, sem alteração legislativa significativa, foi se cristalizando as noções de que o arquivamento é ato do MP, e não judicial, e que não há cabimento de queixa subsidiária se o arquivamento é providenciado dentro do prazo legal.

Com efeito, embora o direito de ação penal de inciativa privada subsidiária da pública tenha se constitucionalizado em 1988, condicionada apenas à ausência de denúncia, o STF reforçou a jurisprudência restritivista anterior. Foi o que se registrou por ocasião do julgamento unânime do Habeas Corpus (HC) nº 67.502, pela 2ª T., na sessão de 5/12/1989, cujo relator foi o Min. Paulo Brossard. Conquanto tenha sido mencionada a regra do artigo 5º, LIX, da Constituição no voto do ministro Paulo Brossard, não houve apreciação crítica quanto ao significado da constitucionalização, como direito fundamental individual, da regra do antigo artigo 29 do CPP e do §3º do artigo 100, da Parte Geral do CP [1].

Seja como for, durante o regime constitucional de 1988, ao passo em que se consolidou a noção de que o MP promove o arquivamento, a compreensão pela restrição ao direito individual previsto no inciso LIX do artigo 5º da Constituição foi reiterada nos seguintes julgados do STF, todos unânimes: HC nº 68.540, 1ª T., relator ministro Octavio Gallotti, j. 21/5/1991; HC nº 74.276, 1ª. T., relator ministro Celso de Mello, j. 3/9/1996; RE nº 274.115-AgR, 2ª T., relatora ministra Ellen Gracie, j. 12/8/2003; Inq-AgR nº 2242, Pleno, relator ministro Eros Grau, j. 7/6/2006; e Pet. nº 10.137-AgR, Pleno, relatora Cármen Lúcia, j. 14/9/2022.

É importante mencionar que o Plenário do STF, por maioria, no julgamento do ARE nº 859.251, concluído em 16/4/2015, sob a sistemática da repercussão geral, que contou com a relatoria do ministro Gilmar Mendes, solidificou ainda mais a jurisprudência no sentido de que o arquivamento, no prazo legal, prejudica o direito de ação penal privada, vencidos a ministra Rosa Weber e o Min. Celso de Mello. Trata-se de precedente relevante, na medida em que se reconhece que os tribunais estão vinculados a esse tipo de entendimento, nos termos do inciso III do artigo 927 do CPC.

Com todas as vênias, se à luz da legislação ordinária o expediente hermenêutico da interpretação restritiva de direitos pode ser defendido com alguma tranquilidade dentro dos cânones clássicos da interpretação jurídica, é mais problemático dar a direito fundamental individual enunciado em termos amplos pela Constituição interpretação que reduz substancialmente seu alcance. Afinal, tratando-se de direito individual fundamental, a queixa subsidiária deveria ser interpretada segundo o postulado que a doutrina chama de "máxima efetividade dos direitos fundamentais".

Além disso, em uma abordagem mais ampla ou sistemática, vemos que do texto da Constituição podem ser extraídas outras normas que justificam reavaliação do entendimento jurisprudencial. Com efeito, se consideramos que o arquivamento não é ato judiciário, atribuir ao comportamento do MP que manda arquivar inquérito o efeito de frustrar de modo absoluto as expectativas do ofendido começa por significar abalo à inafastabilidade da jurisdição, prevista no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição. Trata-se de conceder a instituição exterior ao Judiciário a palavra final sobre controvérsias jurídicas.

Não há nessa hipótese violação aos termos do inciso I do artigo 129 da Constituição, que estipula ser função institucional do MP "promover, privativamente, a ação penal pública". Afinal, se é certo que a iniciativa pública da ação penal é dele, é errado supor que o MP também seria senhor incontrastável da iniciativa privada.

A propósito, no sentido da necessidade de redimensionar o enorme poder reconhecido ao MP com o passar do tempo, vem à lembrança decisão monocrática da ministra Rosa Weber no Inq. nº 4.871/DF, de 29/3/2022, que, além de negar órgão ministerial a qualidade de dono absoluto da ação penal pública, indeferiu o arquivamento ministerial, pontuando, com acuidade que "o modelo acusatório não outorga ao Ministério Público a função de intérprete definitivo das leis penais do país, tampouco subtrai o magistrado, em sede processual penal, o regular exercício da prática hermenêutica".

Em linha com o entendimento da ministra Rosa Weber manifestado no Inq nº 4.871, ao examinar seus pressupostos e receber eventual queixa subsidiária subsequente ao arquivamento ministerial, o Judiciário está, por via transversa, revendo e cassando ato que considerou indevido do MP. Nenhum ato que viola a lei foge à apreciação judiciária. Ao receber queixa subsidiária, havendo inquérito arquivado e estando presentes indícios de delito e autoria, o Judiciário não está revendo a discricionariedade de ato ministerial, mas sim realizando controle de legalidade. E caso o Judiciário decida por não receber eventual queixa subsidiária, mais legitimidade se confere ao ato de arquivamento do MP.

Não seria então a reavaliação da jurisprudência que se formou em torno do artigo 29 do CPP e §3º do artigo 100 do CP medida que, sem depender de mudança legislativa, iria ao encontro dessa necessidade de instituir algum tipo de controle ao arquivamento promovido pelo MP, sempre com a palavra final sendo dada pelo Judiciário? Não existe instituição infalível. Ainda que queiram acertar, os membros do MP podem avaliar mal enquadramento jurídico de fatos quando promovem/requerem arquivamentos. Um modelo de persecução penal que atribua ao ofendido legitimidade para apresentar queixa quando o MP se pronuncia pelo arquivamento atende aos postulados da democracia e do contraditório. É forma de aprimorar até mesmo a fundamentação das promoções/pedidos de arquivamento. É, sobretudo, meio de promover algum controle social sobre ato não-judiciário, que há mais de 80 anos já conta com respaldo legal, embora não goze hoje de prestígio no STF.


[1] No mais, entre os seis julgados mencionados no voto do ministro Paulo Brossard três não ostentavam pertinência integral ou parcialmente com as conclusões defendidas: a) o HC nº 59.996, relator ministro Cordeiro Guerra, j. 20 de agosto de 1982, pois na hipótese o Ministério Público se manifestou pelo arquivamento após o prazo legal; b) o RE nº 62.283, j. 7 de novembro de 1969, cujo relator foi o ministro Djaci Falcão (e não ministro Amaral Santos), tratou de prescrição a favor da Fazenda Pública envolvendo o instituto da desapropriação; c) o HC nº 63.802, relator ministro Sydney Sanches, j. 16 de abril de 1986, pois se legitimou a queixa porque o arquivamento foi promovido apenas pelo Ministério Público, numa época em que se considerava indispensável decisão judicial nesse sentido.

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