Território Aduaneiro

Reflexões de Carnaval: penalidades aduaneiras e erros escusáveis

Autor

  • Fernanda Kotzias

    é sócia do Veirano Advogados advogada aduaneira doutora em Direito do Comércio Internacional professora de pós-graduação e ex-conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

21 de fevereiro de 2023, 8h00

Circulou recentemente nas mídias especializadas notícia de que a Justiça Federal da 6ª Região teria concedido liminar à TAM para suspender a cobrança de multa aduaneira que alcançaria o montante de R$ 100 milhões. A autuação se deu por erro de preenchimento em declarações de importação de aeronaves e peças, em que a empresa havia deixado de informar que seria parte relacionada ao exportador, Latam Airline Group.

Spacca
O caso, ao ser analisado pelo Carf — em julgamento do qual participei — acabou sendo decidido por voto de qualidade diante do impasse entre duas posições divergentes.[1] Em apertada síntese, parte dos conselheiros entendeu que a multa de 1% do valor aduaneiro prevista no artigo 711, III do Regulamento Aduaneiro (Decreto nº 6.759/2009) seria de aplicação automática diante da existência de erro de preenchimento de declaração, visto que o dano ao controle aduaneiro seria presumido ou potencial, não existindo necessidade de avaliar ou determinar os desdobramentos no caso concreto.

Por outro lado, os demais conselheiros presentes defendiam que, neste caso, a situação concreta era relevante o suficiente e teria o condão de afastar a multa. Mais especificamente, considerando que se a aquisição da TAM pela Latam teria sido recente e que era fato público e notório, e por se tratar de importação sob regime de admissão temporária — em que o caso de serem partes relacionadas não teria desdobramentos sobre eventual verificação do valor aduaneiro declarado —, este grupo concluiu que a omissão não teria trazido prejuízo "à determinação do procedimento de controle aduaneiro apropriado", conforme determina o artigo 711, III do RA.

Ainda que meu entendimento seja no sentido do afastamento da multa, o ponto do presente artigo é de que, caso houvesse, no ordenamento jurídico pátrio, a devida normatização e regulamentação sobre o afastamento de penalidade em caso de erro escusável, muito provavelmente o julgamento do Carf não teria sido resolvido por voto de qualidade e, consequentemente, o caso jamais teria sido levado ao Poder Judiciário.

O afastamento de penalidades aduaneiras diante de erros considerados "pequenos", não recorrentes ou deliberados e, portanto, escusáveis, é posicionamento que vem sendo adotado no mundo todo e pauta-se, essencialmente, no princípio da razoabilidade e da confiança recíproca.

No Brasil, apesar deste tipo de conduta ainda não ser prática comum da fiscalização, deve-se ressaltar que já existe base legal em vigor para tanto, como se verifica pelo artigo 15.4 do Anexo I do Decreto nº 11.092/2022[2], referente à internalização do Protocolo ao Acordo de Comércio e Cooperação Econômica (Atec) entre Brasil e Estados Unidos.[3] Esta norma, que possui status de lei ordinária, abre espaço para que o tratamento dado pela fiscalização aos casos de pequenos erros seja ajustada e atualizada de forma a se amoldar às melhores práticas internacionais.

Ocorre que, apesar de já existir base legal em vigor, a previsão ainda é inócua por falta de regulamentação. Isto é, sem que haja definição e determinação, por ato infralegal, do que seria um "erro menor", continuamos diante de uma predisposição da aplicação de multas aduaneiras para todo o tipo de situação, inclusive aquelas que sequer possuem real potencial de prejudicar o controle aduaneiro.

 Mas, afinal, o que seria um erro menor ou escusável?

Pode-se obter importantes lições sobre o tema a partir de consulta à legislação aduaneira de outras jurisdições. Por exemplo, no âmbito da União Europeia, erros menores são definidos como aqueles não intencionais e que não possuem "relevância fática", o que, portanto, depende do contexto em que a declaração foi realizada e que o erro foi cometido.[4]

No âmbito da legislação americana, a autoridade aduaneira trata como erros menores aqueles cometidos por adição, subtração ou prestação equivocada de informação que não resultem em mudanças de metodologia ou levem a interpretação equivocada dos fatos pela autoridade. Ao passo que considera como "erro grosseiro" e, portanto, não escusável, aquele que deriva de situação conhecida pelo operador no momento da declaração e/ou de erro causado por negligência exacerbada.[5]

No mesmo sentido, no Acordo USMCA[6], que regulamenta o livre comércio entre Estados Unidos, Canadá e México, "erros menores" ou discrepâncias são definidos como aqueles que "não criam dúvidas sobre a correição da documentação que ampara a operação".

De todos os exemplos internacionais avaliados, o que nos parece mais relevante é aquele trazido no documento elaborado pela Organização Mundial das Aduanas (OMA) para servir de guia à implementação da Convenção de Quioto Revisada (CQR), mais especificamente, ao Capítulo 3, referente ao despacho aduaneiro e a outras formalidades aduaneiras. Neste documento, a partir do que dispõe o artigo 3.39 do Anexo Geral, admite-se que no processo de fornecimento de informações às Aduanas para fins de declaração de bens, "sempre é possível que ocorram erros"[7].

A visão defendida pela OMA neste sentido é de que, apesar de ser legítimo que as autoridades esperem que os operadores sejam cuidadosos e ajam de boa fé quando da prestação de informação em declarações aduaneiras, seria razoável que as aduanas não aplicassem penalidade quando se tratar de erros acidentais cometidos de forma não regular.

No documento mencionado, admite-se que termos como "erro inadvertido" e "negligência grosseira" seriam abertos à interpretação, possibilitando diferentes regulamentações por parte dos membros signatários da CQR. Ainda assim, a OMA utiliza-se do artigo VIII:3 do Gatt[8] como base para definir o tipo de situação que ensejaria a necessidade de aplicação de penalidades, cujo texto dispõe que nenhuma parte imporá penalidades severas por infrações leves "à regulamentação ou aos procedimentos aduaneiros e que, nos casos em que as infrações se tratarem de omissões ou erros referentes à documentação aduaneira,  de fácil retificação e forem ocasionadas sem propósito fraudulento ou por negligência grave, a imposição de eventual penalidade não deve ser imposta além do necessário para representar 'uma simples advertência'".

Indo além, o guia enumera exemplos de que situações poderiam ensejar o afastamento de penalidade por se tratarem de erros menores e escusáveis, a saber: erros de transcrição; erros aritméticos em declarações e documentos que as suportam; omissão de elementos referentes ao valor aduaneiro tributável (como o frete);  erros na conversão de moeda estrangeira;  e erros derivados de problemas na interpretação das regras de valoração aduaneira (como deduções incorretas ou desconsideração de elementos que deveriam ter sido considerados para fins de declaração).

Outros exemplos trazidos no documentos referem-se a erros no item e subitem da classificação tarifária quando verificado que a natureza e as características essenciais da mercadoria foram devidamente declaradas e a discrepâncias entre a quantidade de mercadorias indicadas no conhecimento de embarque e a quantidade real da operação por ocasião de erros de preenchimento da declaração aduaneira. Nestes casos, a conduta administrativa defendida é de que, caso se trate de erro escusável, caberia o afastamento da penalidade/multa, mas com a manutenção do recolhimento de eventuais diferenças tributárias apuradas – o que nos parece mais do que razoável.

Em uma primeira análise, a regulamentação do tema no Brasil, com vistas a operacionalizar o que resta previsto e em vigor por meio do Protocolo ao Atec, pode parecer complexa. No entanto, se avaliarmos com mais cuidado, encontramos não apenas bons benchmarks internacionais, como também nacionais — em outros ramos do Direito.

A noção de negligência grosseira ou recklessness é bastante utilizada pelo Direito Penal enquanto elemento subjetivo de exacerbação da culpa e, portanto, possui contornos assemelhados ao dolo eventual e à culpa consciente. Em termos práticos, o Direito Penal, ao aplicar esses institutos, visa afastar a possibilidade de exclusão de responsabilidade em casos em que o infrator agiu de maneira desaconselhada, assumindo riscos conhecidos, a exemplo de homicídio culposo derivado de acidente de trânsito em que o condutor se encontrava em estado de embriaguez ou participando de corrida ilícita.

Transpondo esse tipo de aplicação ao mundo aduaneiro, teríamos uma situação de negligência grosseira — e, portanto, não passível de exclusão de penalidade — no caso de utilização inadvertida pelo importador de um certificado de origem preferencial falso. Ainda que o operador não tenha conhecimento da fraude cometida pelo exportador, por se tratar de documento relevante e que lhe trará benefícios na apuração dos tributos devidos, é inaceitável que o mesmo apresente o certificado à Aduana sem tomar precauções mínimas para verificar sua correição e validade.

Em resumo, nos parece que a regulamentação do artigo 15.4 do Anexo I do Decreto nº 11.092/2022 é muito menos complexa do que parece, seja pela existência de robustos e sedimentados exemplos internacionais, seja por ser instituto que já é utilizado em outros ramos do Direito brasileiro.

A peça-chave, neste momento, é que haja vontade política e institucional das autoridades aduaneiras em aprofundar a parceria público-privada e optar por investir na presunção de boa-fé dos operadores para situações de menor risco. Ademais, resta claro que a possibilidade de exclusão da penalidade dependerá, sempre, da análise do caso concreto e de suas especificidades, o que reforça a noção de que não se trata de cheque em branco ou de se favorecer infratores mal intencionados.

Aproveitando que esta terça-feira é data festiva e especial aos brasileiros, cabe fazer um paralelo do tema com o próprio Carnaval, época em que costumamos ser mais tolerantes e condescendentes com certos deslizes e pequenos erros de comportamento, desde que o folião seja uma pessoa de boa índole, com um histórico "limpo" e que não aparente ter agido de forma premeditada ou de má fé. Talvez seja a hora de a aduana se inspirar no Carnaval e se permitir uma postura mais amistosa e tolerante frente aos operadores, ainda que esta não deva, em hipótese alguma, ser confundida com permissividade ou complacência.


[1] Acórdão CARF n. 3401-006.715 de 24/07/2019.

[2] O art. 15.4 do Anexo I do Protocolo ao ATEC dispõe que: “Cada Parte deverá assegurar que um erro menor em uma transação aduaneira, conforme definido em suas leis, regulamentos ou procedimentos, publicados em conformidade com o Artigo 1 (Publicação pela Internet), poderá ser corrigido sem a determinação de uma penalidade, a menos que o erro seja parte de um padrão consistente de erros por aquela pessoa.”

[3] O Protocolo ao ATEC foi tema de artigo anterior nesta coluna em 21/07/2022, disponível neste link.

[4] European Union Customs Code (Regulation EU n. 952/2013 of the European Parliament and of the Council.

[5] Section 1592, Title 19 of the US Tariff Act of 1930.

[6] Agreement between the United States of America, the United Mexican States, and Canada (USMCA). Disponível em < https://ustr.gov/trade-agreements/free-trade-agreements/united-states-mexico-canada-agreement/agreement-between>. Acesso em 19/02/2023.

[7] WCO. RKC Guidelines on RKC General Annex – Chapter 3. Disponível em <https://www.wcoomd.org/-/media/wco/public/global/pdf/topics/wto-atf/dev/rkc-guidelines-ch3.pdf>. Acesso em 19 fev 2023.

[8] O art. VIII:3 do GATT dispõe que “Nenhuma Parte Contratante imporá penalidades severas por ligeiras infrações à regulamentação ou ao processo aduaneiro. Em particular, as penalidades pecuniárias impostas em virtude de omissões ou erros nos documentos apresentados à Alfândega não excederão, nos casos em que forem facilmente reparáveis e manifestamente isentos de qualquer intenção fraudulenta, que não correspondam a negligência grave, importância que represente uma simples advertência”.

Autores

  • é doutora em Direito do Comércio Internacional, advogada, consultora especializada em Comércio Internacional e Direito Aduaneiro, professora de pós-graduação e conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) do Ministério da Economia.

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