Fábrica de Leis

Avaliação legislativa e inteligência artificial: por uma política de legislação

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21 de fevereiro de 2023, 9h01

A entrada em vigor do artigo 170 da Constituição da Confederação Helvética torna o ano de 1999 um marco para a cultura jurídica da legislação ocidental. A Suíça determina a partir de então, a avaliação dos efeitos empíricos da lei como prática administrativa. O texto constitucional dispôs que as ações governamentais da Confederação, sejam avaliadas quanto à sua eficácia. Tal modelo de governança de boa legislação promoveu mudanças, tais como: alterações na estrutura burocrática suíça, na formação de servidores, nos procedimentos garantidores das condições para o cumprimento da avaliação legislativa.

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Se grande parte das boas práticas de qualidade legislativa circulante é associada aos modelos de gestão regulatória, a experiência suíça tem como ponto de partida o próprio Parlamento, a supremacia da lei e assim qualidade regulatória se insere dentro do sistema da avaliação legislativa.

A Lei sobre o Parlamento da Suíça (2002) contem a disciplina das normas típicas dos Regimentos de casas legislativas, tais como suas atribuições e organização, suas relações com o Executivo e com o Judiciário, direitos e obrigações dos parlamentares, procedimento legislativo. Além disso, a lei contém diversos artigos relativos à gestão das comissões encarregadas de conduzirem as avaliações legislativas, além de indicarem o modo como as avaliações acontecem e o uso dos seus resultados em processos decisionais. O Regimento da Assembleia Nacional suíça concretiza as normas gerais de organização do Parlamento, e assim disciplina o exercício das suas funções de controle sobre Administração Pública mediante o procedimento para assegurar suas próprias avaliações, bem como o uso das avaliações executadas, exclusivamente, por órgãos do Executivo.

Como a Administração Pública atua sob o princípio de estrita legalidade, suas ações têm como fim concretizar as prescrições legais, inclusive por meio de atos normativos infralegais. Tanto as legislações quanto os atos normativos infralegais acham-se articuladas com os mais variados tipos de políticas públicas, portanto, são o alvo das avaliações que acabam por verificar, na prática, o grau da efetividade de direitos.

E sob esse conceito são incluídos no objeto das avaliações não só as leis, como todos os demais atos normativos, programas, projetos, portanto, os direitos e as suas respectivas políticas públicas.

Nesse ponto, é importante identificar que o sentido da eficácia desenvolvida na prática suíça, refere-se tanto aos efeitos legislativamente almejados sobre os afetados (compreendidos como destinatários e autoridades responsáveis pelas competências asseguradoras do funcionamento das leis), quanto aos efeitos sobre o próprio sistema e sobre as leis individualmente consideradas.

O que não funciona? O que necessita ser alterado? Quais condições devem existir para que os direitos estejam presentes no cotidiano das pessoas? Os objetivos propostos pela lei foram alcançados? Fazem sentido à luz dos fatos, da realidade, do contexto? Essas são questões básicas, fundamentais a serem respondidas pelas avaliações das leis.

Algumas modificações constitucionais no Brasil, também dispuseram sobre a avaliação legislativa e da necessidade de uma projetação sobre o modelo da análise dos efeitos decorrentes do cumprimento da lei.  A Emenda Constitucional nº 95/2016, incluiu no art. 113 das Disposições Transitórias a obrigatoriedade de estimativa do impacto orçamentário e financeiro para proposições legislativas que criem e alterem despesa obrigatória e renúncia de receitas. A Emenda 109/2021 incluiu o parágrafo 16 no artigo 37 que dispõe sobre a avaliação de políticas públicas (com a obrigatoriedade divulgação do seu objeto a ser avaliado e dos resultados alcançados ).

Assim, os órgãos e as entidades da administração pública, individual ou conjuntamente devem realizar a avaliação, na forma da lei. Ainda que haja iniciativas de projetos de lei[1] nenhum disciplinou expressamente sobre uma política de boa legislação sob a perspectiva de normas gerais que sinalizem a implementação da análise do cumprimento da lei. Também devem ser consideradas a existência de diplomas legais que assinalam procedimentos para a avaliação (eg.Código do Usuário do Serviço Público), inclusive aqueles decorrentes de regras processuais em Regimentos Parlamentares, passando por comissões com atribuições específicas e mesmo ações de organização dos trabalhos legislativos, como o Portal de Políticas Públicas da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais. Essas ações revelam a eficácia do dispositivo constitucional no fruto do exercício de competências legais.

A introdução de modelos jurídicos de avaliação legislativa não se esgota na sua mera positivação. A advertência de Taruffo (2013) sobre o uso de legislação comparada continua válida: é preciso considerar o projeto cultural do contexto de incidência do futuro ato normativo.

O caso brasileiro é bem mais complexo do que o suíço. Nossos gestores/juristas além de melhorias quanto à sua formação necessitam de ferramentas de análise. Metodologias precisam fazer sentido na superação de textos legais nacionais para levar a sério contextos/âmbitos de incidência normativa diversos.

Não menos importantes, o acesso aos dados, à sua coleta e armazenamento idôneos são condicionantes, de partida, para a tarefa de "mensurar" a efetividade das leis. Não é trivial a tarefa de avaliar os níveis de eficácia de um dado direito, em ambiente de legislação multinível onde competências concorrentes, podem trazer ações governamentais federais, estaduais e municipais e também os seus respectivos textos legais. E se não fosse complexo o suficiente, o âmbito de atuação de diversas legislações se entrelaça promovendo a necessidade do manejo de plurais camadas de análise que permitam reconstruir o cenário de incidência presente e o cenário de incidência futura.

Uma outra dimensão de análise a ser considerada, se refere às relações entre um dado projeto de lei e sua respectiva rede de fontes do direito. No caso,  de uma  avaliação legislativa dos resultados(posterior), o processo decisional da escolha dos objetivos deve fornecer os indicadores de análise do grau de cumprimento de uma dada lei( análise prévia). Quanto às previsões de avaliações legislativas no corpo de textos legais são bem vindos.

O uso de inteligência artificial na avaliação legislativa também se funda na necessidade de identificação de temas/assuntos dentro de um volume imenso de atos normativos. Novamente, a presença de diversas camadas de informações exige que a metodologia de avaliação legislativa (como por exemplo, a Legística) possa ser expressa na arquitetura de um dado que ensine uma máquina a pensar sobre o que definiria o cumprimento de um dado direito e uma dada legislação[2].

O estabelecimento de relações, hierarquias, redes "de e entre" conjuntos de informações, justificadamente, pré-definidas permitiria instrumentalizar gestores e juristas para atuarem com um maior nível de informações no mundo das leis e no mundo sobre o qual as leis pretendem atuar.

Para quem acha que o assunto ainda pertence à ficção científica, vale a pena pensar sobre o volume e a tipologia de informações legíveis por máquina que estão à disposição: textos legais, decisões judiciais, mapas, fotos, geolocalização, planilhas de dados sociais, orçamentários, econômicos todos a fornecerem peças do mosaico para melhor compreensão do problema-objeto de uma ação legislativa.

Uma política de boa legislação para o Brasil necessita levar a sério as possibilidades tecnológicas que viabilizem uma análise do cumprimento da lei que de fato, ao fim do dia, maximize a efetivação de direitos fundamentais e isso é tarefa primordial dos Parlamentos.

[1] Proposta de Emenda Constitucional nº 184/2015; Projeto de Lei nº 488/2017, Projetos de Lei Complementar nº 61 e 64, ambos de  2022 e o Projeto de Lei nº 1025/2022.

[2] Esse foi o tema de Pós Doutorado por nós desenvolvido junto ao Laboratório de Inteligência Artificial do Departamento de Ciência da Computação da UFMG sob a supervisão do Prof Adriano Velloso e em parceria com o mestrando Douglas Pontes em 2022.

Autores

  • é professora do curso de graduação e do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutora e mestre em Direito pela UFMG e coordenadora do Observatório para qualidade da Lei e do Legislab.

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