O Estado responde pelas mortes civis em operações policiais?
21 de fevereiro de 2023, 8h43
O Supremo Tribunal Federal (STF) vai decidir se o Estado pode ser responsabilizado pela morte de vítima de disparo de arma de fogo durante operações policiais ou militares quando a perícia que determina a origem do disparo for inconclusiva. A matéria é objeto do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1.385.315/RJ, com repercussão geral reconhecida (Tema 1.237), ainda sem previsão para julgamento.
Em decorrência de tais fatos, foi proposta ação de indenização por danos materiais e morais pelos pais e irmão do falecido, que tramitou na 20ª Vara Federal do Rio de Janeiro, contra a União e o Estado do Rio. Os demandantes requereram a condenação das rés na obrigação de pagar indenização, a título de danos extrapatrimoniais, no importe de R$ 500 mil, além do ressarcimento de despesas do funeral e ao pagamento de pensão vitalícia aos dois primeiros autores, na proporção de 1/3 do valor do salário mínimo para cada um, incluindo 13º salário, férias e gratificações.
A perícia realizada no material coletado no interior da residência apurou apenas que o projétil de arma de fogo estava deformado frontal e longitudinalmente, sendo de calibre 7,62, do tipo encamisado total pontiagudo (ETPT), permanecendo inconclusivo quanto à origem. Dentre as provas coletadas, há de se destacar que, em investigação preliminar, o inspetor de polícia concluiu que haveria duas hipóteses para o delito: homicídio praticado por parte de traficantes da região ou, por erro de execução, praticado por um dos militares da Força de Pacificação.
O juiz de primeiro grau julgou improcedentes os pedidos formulados, sob o fundamento de que não houve efetiva comprovação de que o disparo que ensejou o óbito da vítima tenha sido realizado por militares do Exército. Ressaltou a necessidade da presença de um liame etiológico entre o fato e dano, asseverando que o CC/02 adotou, no artigo 403, a teoria da causa direta e imediata, segundo a qual "causa é todo evento que puder razoavelmente ser concebido como desdobramento direto e imediato do evento em exame".
Os autores, irresignados, interpuseram recurso de apelação contra a sentença, visando a sua reforma, sustentando que não seria necessário identificar a origem do disparo, já que a responsabilidade do Estado é objetiva e pautada na teoria do risco administrativo, nos termos do artigo 37, §6º da Constituição Federal.
No julgamento do recurso, a relatora do acórdão no TRF-2, juíza federal Marcella Araújo da Nova Brandão, asseverou que a teoria do risco administrativo, à luz do citado dispositivo legal, prescinde de comprovação da culpa, bastando a demonstração do ato/omissão, do nexo de causalidade e do dano suportado. Salientou que, no caso em análise, restou incontestável a atuação dos militares da Força de Pacificação na comunidade em que a vítima residia, bem como a existência do dano, dado a morte do morador da região. Ressalvou, no entanto, que seria inviável reconhecer o nexo de causalidade entre a conduta estatal e a lesão infligida à vítima. Em casos tais, afirmou a relatora, assume especial relevância a comprovação da origem do projétil que ocasionou a morte, sob pena de responsabilização do Estado por todo tiro disparado em operações policiais ou militares.
As decisões judiciais têm o mérito de exigir a comprovação do liame causal entre a conduta do lesante e o dano causado. De fato, em tempos de ampla defesa da "flexibilização" do nexo de causalidade[1], havendo mesmo quem sustente, de forma mais drástica, a sua completa supressão, com base unicamente em princípios como a solidariedade social, dignidade da pessoa humana e reparação integral, sem um maior adensamento dogmático, faz-se crucial a afirmação da conservação de sua imprescindibilidade como pressuposto da responsabilidade civil[2], tanto para fins de afirmação do dever de indenizar, quanto para a delimitação de sua extensão[3].
De outro lado, contudo, permanece a jurisprudência brasileira atada à literalidade do artigo 403 do CC/02, sustentando ter o direito nacional adotado a teoria do dano direto e imediato ou a da necessariedade da causa[4]. A tese já foi utilizada pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário 130.764-1/PR[5] e, mais recentemente, no julgamento do RE 608.880[6], submetido à sistemática da repercussão geral (tema 362). A teoria indicada, no entanto, peca por seu pouco apuro técnico, deixando de estabelecer critérios objetivos de imputação, com a elevação do risco e o escopo de proteção da norma[7], não fornecendo um fundamento plausível para a exclusão da responsabilidade[8]. Em função de seu acanhado desenvolvimento teórico[9], a ideia de interrupção do nexo de causalidade tem vindo, ao longo do tempo, a ser cada vez mais rejeitada[10]. No entanto, o seu emprego pelos tribunais brasileiros é corriqueiro.
Por fim, há de se alertar para o fato de que os julgados examinados sequer mencionam a complexa questão da causalidade alternativa, que se apresenta quando há controvérsia acerca da identificação do ofensor, embora o dano tenha sido praticado efetivamente por determinados potenciais lesantes[11]. Diferentemente do direito alemão, que regulou a matéria no § 830 I/2 do BGB, determinando a responsabilidade de cada um, por todo o dano, quando não for possível estabelecer qual das pessoas envolvidas realmente causou a lesão, o direito brasileiro positivo nada dispôs sobre a questão. Não obstante, os tribunais nacionais têm aplicado a teoria[12], ainda que ausente previsão legal específica.
O julgamento do ARE 1.385.315/RJ oferece mais uma oportunidade para que o STF aprofunde o tratamento dogmático do nexo de causalidade no direito brasileiro, superando, assim, a abordagem rasa que tem predominado na jurisprudência nacional.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II—Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).
[1] “A ideia de que o nexo causal foi flexibilizado ou está a sofrer esse processo de flexibilização tem obtido muitos adeptos na doutrina brasileira. […] Finalmente, não podem ser confundidas situações ligadas a objetivação da responsabilidade civil, que no sistema brasileiro pode ocorrer por expressa previsão legal ou pelo reconhecimento específico da existência de uma atividade de risco, com a flexibilização do nexo de causalidade” (RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Nexo causal probabilístico: elementos para a crítica de um conceito. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 8, ano 3, p. 115-137, jul.-set./2016, p. 127 e 133).
[2] Marta Infatino afirma que, em que pese não haja consenso quanto à sua conceituação, a causalidade é, em todos os lugares, ingrediente essencial na responsabilidade civil (INFANTINO, Marta. Unravelling Causation in European Tort Law. Rabels Zeitschrift für ausländisches und internationales Privatrecht, 83. Jahrg., p. 647-673, 2019, p. 648).
[3] BORDON, Raniero. Il nesso di causalità. Torino: Utet, 2006, p. 32.
[4] Essa é a posição de Agostinho Alvim, responsável pela redação do anteprojeto do direito das obrigações, que resultou no Código Civil de 2002 (ALVIM, Agostinho Neves de Arruda. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 356).
[5] STF, RE 172.025-5/RJ, rel. Min. Ilmar Galvão, 1.ª T., j. 08.10.1996, DJ 19.12.1996.
[6] No mencionado julgamento foi fixada a seguinte tese de repercussão geral: “Nos termos do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, não se caracteriza a responsabilidade civil objetiva do Estado por danos decorrentes de crime praticado por pessoa foragida do sistema prisional, quando não demonstrado o nexo causal direto entre o momento da fuga e a conduta praticada” (STF, RE 608.880/MT, Tribunal Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, rel. p/ o Acórdão Min. Alexandre de Moraes, j. 08.09.2020, DJe 01.10.2020).
[7] Discute a doutrina alemã se os critérios associados ao risco estão abarcados pela teoria do escopo da norma ou figuram como parâmetros independentes de imputação. Sobre o tema, cf. STOLL, Hans. Kausalzusammenhang und Normzweck im Deliktsrecht. Tübingen: J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1968, p. 26-27.
[8] KOZIOL, Helmut. Basic questions of tort law from a Germanic perspective. Trad. Fiona Salter Townshend. Wien: Jan Sramek Verlag, 2012, p. 271.
[9] “Por fim, a subteoria da necessariedade da causa é infrutífera, pois Agostinho Alvim não expõe com clareza o que entende por relação de necessariedade e essa orientação dogmática falha repercute em aplicações casuísticas pouco convincentes” (REINIG, Guilherme Henrique Lima. A teoria do dano direto e imediato no Direito Civil brasileiro: análise crítica da doutrina e comentários à jurisprudência do STF sobre a responsabilidade civil do Estado por crime praticado por fugitivo. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 12, p. 109-163, jul.-set./2017, p. 136). Nas palavras de Renato Moraes, “o conceito de causalidade necessária é tão impreciso quanto a exigência de dano direto e imediato, prevista no art. 403 do Código Civil” (MORAES, Renato Duarte Franco de. A causalidade alternativa e a responsabilidade civil dos múltiplos ofensores. São Paulo: LiberArs, 2017, p. 45).
[10] ZIMMERMANN, Reinhard. Herausforderungsformel und Haftung für fremde Willensbetätigung nach § 823 I BGB. JuristenZeitung, v. 35, n. 1, p. 10-16, 1980, p. 14.
[11] No caso estudado, ante a não identificação de qualquer agente criminoso, e menção aos agentes policiais, põe-se em dúvida a relevância da aplicação da teoria da causalidade alternativa.
[12] Paradigmáticos são os casos dos pinheiros e dos caçadores, respectivamente: TJRS, ApCív 21.062, rel. Des. Antonio V. Amaral Braga, 3.ª C. C., j. 08/11/1973; TJRS, ApCív 11.195, Rel. Des. Oscar Gomes Nunes, 1.ª C. C., j. 25.11.1970. Mais recentemente colhem-se os seguintes arestos do STJ: STJ, REsp n. 64.682/RJ, rel. Min. Bueno de Souza, 4.ª T., j. 29.09.1999, DJ 09.12.1997; STJ, REsp 26.975/RS, rel. Min. Aldir Passarinho Junior, 4.ª T., j. 18.12.2001, DJ 20.05.2002.
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