Opinião

ANPP e os crimes raciais

Autor

  • Galtiênio da Cruz Paulino

    é mestre pela Universidade Católica de Brasília doutorando pela Universidade do Porto pós-graduado em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp orientador pedagógico da ESMPU ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República e membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

21 de fevereiro de 2023, 15h14

No último dia 6, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu, por três votos a dois, no RHC 222.599/SC, que não cabe acordo de não persecução penal nos crimes raciais, não sendo admissível, desse modo, ANPP em caso de injúria racial, sob o argumento de que os artigos 4º e 5º da Constituição, bem como a Convenção de Nova York de 1965 e a Convenção de Guatemala de 2013 proíbem, como relação os delitos de racismo, a utilização de institutos consensuais despenalizadores, diante da necessidade de punições mais fortes aos crimes raciais.

Analisando a referida decisão, é admissível a vedação em abstrato do acordo de não persecução penal sem previsão legal?

No sistema jurídico romano-germânico, adotado no Brasil, prevalece o princípio da legalidade e a positivação. Em regra, os países que adotam o referido sistema são adeptos de um sistema processual penal de natureza inquisitorial, caracterizado pelo papel central do juiz na condução do processo.

Por razões de política criminal, em busca de um processo penal mais eficiente e eficaz, muitos desses países estão incorporando institutos de caráter negocial, nos quais há a prevalência do papel das partes, cabendo ao juiz o controle de regularidade e legalidade. A incorporação de institutos negociais nesse caso deve ocorrer no estrito limite da lei, em decorrência das limitações naturais inerentes ao sistema jurídico romano-germânico. Haverá discricionariedade apenas nas situações especificadas no ordenamento jurídico.

No Brasil, o mais recente instituto negocial adotado é o acordo de não persecução penal, acrescentado ao Código de Processo Penal em 2019 por meio da Lei nº 13.964. Para a incidência do instituto, foram fixados requisitos de mensuração objetiva, ou seja, que não passam pelo crivo de apreciação das partes quanto a presença ou não, e de mensuração subjetiva, a serem aferidos pelo órgão de persecução penal, o Ministério Público.

Entre os requisitos de mensuração objetiva estão, por exemplo, a exigência de que o delito não tenha sido cometido com violência ou grave ameaça, as penas mínimas não ultrapassem os quatro anos etc. Esses requisitos estão ou não presentes no caso, não passando pelo juízo de ponderação das partes.

Há, porém, requisitos de mensuração subjetiva pelo Ministério Público, como é o caso da verificação se o acordo de não persecução penal é "necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime". Essa verificação deverá ser realizada em concreto pelo Ministério Público, em consonância com as circunstâncias do caso, que, enquanto titular da ação penal, deverá aferir se a adoção do instituto será suficiente para reparar, no caso concreto, a violação à ordem jurídica. A análise a ser realizada pelo Ministério Pública ocorre nos limites da discricionariedade estabelecido pelo legislador. Ao Judiciário caberá a análise de legalidade e regularidade do acordo.

Desse modo, vedar em abstrato a possibilidade de utilização do acordo de não persecução penal com relação a algum crime, mesmo o delito se adequando aos requisitos de mensuração objetiva previstos em lei (exemplo: delito não tenha sido cometido com violência ou grave ameaça, pena mínimas não ultrapassar os quatro anos etc), viola os estritos limites legais a serem seguidos por países que utilizam institutos negociais e possuem um sistema jurídico prevalentemente romano-germânico.

Por mais graves que sejam os delitos raciais, não há vedação legal (ou seja, em abstrato), nem mesmo na Constituição Federal, quanto à possibilidade de incidência dos institutos negociais. A vedação legal, na hipótese, assim como foi realizada pelo legislador com outros tipos penais, podia ter ocorrido no momento da fixação da pena em abstrato (no caso, a pena em abstrato admite ANPP) ou por nominal vedação com relação a tais crime, mesmo a pena em abstrato se adequando ao limite legal

Por conseguinte, a aferição de suficiência do acordo de não persecução penal para um crime racial deverá ser realizada pelo Ministério Público, enquanto titular da ação penal e parte no acordo, nos limites do poder discricionário concedido pelo legislador.

A vedação em abstrato, analisada neste caso, viola, portanto, o princípio da legalidade, bem como o princípio da presunção de inocência, enquanto regra de tratamento, pois cria uma situação de tratamento diferenciado em relação ao autor de um crime racial sem previsão legal. Garantias fundamentais como a presunção de inocência só podem ser restringidas nos estritos limites da lei.

Autores

  • é mestre pela Universidade Católica de Brasília, doutorando pela Universidade do Porto, pós-graduado em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp, orientador pedagógico da ESMPU, ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República e membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

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