Opinião

Criptomoedas e offshores: limites da tipicidade no crime de evasão de divisas

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20 de fevereiro de 2023, 18h27

Já não é mais novidade para ninguém que as criptomoedas vêm revolucionando o sistema financeiro global, fazendo as economias do mundo terem que se adaptar aos novos cenários econômicos e às novas demandas que surgem com as novas tecnologias. Em menos de dez anos as criptomoedas deixaram de ser uma mera curiosidade, para se tornar um assunto de discussão presente em conversas casuais, filmes, legislações e jurisprudências, expandindo os horizontes de complexidade ante a sua circulação e aplicação.

Com o surgimento das criptomoedas surge, junto a elas, uma importante ferramenta para quem lida com a internacionalização de ativos financeiros, que é a economia tributária feita com o uso de criptoativos no momento da transação internacional de dinheiro, a exemplo de quem possui operações financeiras ou empresariais em países tidos pela Receita Federal como paraísos fiscais[1].

Pessoas físicas ou Jurídicas que possuam operações financeiras ou empresariais em paraísos fiscais e que, estando no Brasil, desejam enviar dinheiro para esses países, sofrem com as altas tributações aplicadas diretamente na fonte, a exemplo do Imposto de Renda, de 25,5% e IOF de 6,38%, fazendo com que estas pessoas e empresas recorram ao uso de criptomoedas como a bitcoin para transacionar sem custos tributários adicionais, comprando o bitcoin em real e rapidamente vendendo o mesmo bitcoin pela moeda corrente do paraíso fiscal em questão.

Contudo, no Brasil se discute sobre a legitimidade desta operação e a sua efetiva vinculação típica com o crime de evasão de divisas, presente no artigo 22 da Lei n° 7492/86, que é a lei que define os crimes contra o sistema financeiro nacional, estabelecendo pena de reclusão de dois a seis anos e multa para quem incorrer na conduta descrita.

Para compreendermos melhor o que venha a ser o crime de evasão de divisas, importa dizer que ele se dá de três formas, sendo: 1. manter depósitos no exterior não declarados à Repartição Federal competente; 2. promover a saída de moedas ou de divisas para o exterior sem a autorização legal; 3. quem efetuar operação de câmbio de forma não autorizada, com fim de promover evasão de divisas.

A verdade é que o Ordenamento Jurídico brasileiro não define expressamente o que é "moeda" para o direito brasileiro, contudo, a Constituição atribui à União a competência exclusiva para "emitir moeda"[2]. No sentido em que o termo é utilizado pelo texto constitucional, faz-se referência, evidentemente, à "moeda de curso legal" no território brasileiro, ou "moeda corrente".

Neste sentido, destaca-se o estudo feito por Quiroga Mosquera (2006, p. 76-79), que diferencia as expressões "curso legal", "curso forçado" e "poder liberatório da moeda". A moeda tem curso legal quando todas as pessoas de uma determinada comunidade têm a obrigação de aceitá-la; tem curso forçado quando não se pode exigir do emitente da moeda o reembolso em outros ativos; e tem poder liberatório quando é meio juridicamente válido para extinguir obrigações. O real tem esses três atributos: seu curso legal decorre do artigo 1º da Lei nº 9.069, de 29 de junho de 1995, a Lei do Plano Real; seu curso forçado decorre do artiugo 318 do Código Civil, que determina a nulidade de convenções de pagamento que não utilizem a moeda de curso legal; e seu poder liberatório é consequência do artigo 315 do Código Civil.

Como podemos notar, as criptomoedas não se adequam a nenhuma das três características essenciais para definição do conceito de moeda, uma vez que as moedas virtuais não possuem nenhuma comunidade obrigada a aceitá-las — de modo que não há nem curso legal, nem curso forçado — e também porque seu poder liberatório decorre de uma faculdade de quem lhes recebe, não sendo automático, tal qual ocorre com outras formas de quitar obrigações. Portanto, sob esta perspectiva, parece acertada a conclusão dos autores que defendem que moedas virtuais não são moeda.

O mesmo vale para o conceito de divisas, que somente serão assim consideradas quando são ativos financeiros contabilizados no balanço de pagamento do  Banco Central brasileiro e convertidos em moeda, tais como contratos de opção, letras cambiais, cheques, etc.

Contudo, há quem defenda a tese de que criptomoedas são, sim, moedas. Roberto Quiroga Mosquera, formula seu próprio conceito jurídico de moeda tomando por base autores nacionais e estrangeiros, chegando à conclusão de que há basicamente duas correntes sobre o conceito de moeda: aquela que privilegia o aspecto positivo do termo, ao dizer que moeda é aquilo definido legalmente como tal, corrente à qual o autor se filia; e aquela que privilegia o aspecto de coesão social, segundo a qual moeda é aquilo que assume o papel especial de facilitar trocas, cujo valor decorre da confiança que a sociedade nela deposita, e não da autoridade estatal.

Melissa Guimarães Castello[3] afirma que geralmente os críticos do conceito positivo acusam a ambiguidade da definição tomando por base o fato de que a corrente positivista indiscutivelmente apresenta problemas, pois o direito positivo brasileiro não define moeda; apenas emprega o termo "moeda" quando quer regular o uso deste fenômeno. Fazendo-se uma interpretação literal do art. 21, VII, da Constituição (que é o artigo que chega mais próximo a uma definição de moeda), por exemplo, seria possível concluir que moeda é somente aquilo emitido pela União. Contudo, explica a autora, que esta limitação está evidentemente equivocada, na medida em que moedas estrangeiras também são consideradas moeda, e não são emitidas pela União. Ou seja, diante da inexistência de um conceito claro de moeda, a adoção da corrente positivista fica prejudicada e não exclui o enquadramento das criptomoedas como moedas, uma vez que o próprio conceito se amplia para as moedas estrangeiras não emitidas pela União.

Contudo, há de se destacar que para fins penais, é necessário maior rigor conceitual e taxonômico ao se trabalhar os conceitos ora postos, vez que, nos limites da tipicidade, são exigências a reserva legal, a proibição de analogia e a interpretação extensiva in malam partem, o que, por sí, já invalida qualquer tentativa concreta de adequação típica na conduta de transacionar moedas internacionalmente com o uso de criptomoedas.

Para fins penais, a legitimidade da pretensão punitiva se extrai do anteparo legal ante ao poder de punir. Assim, não há o que se falar em qualquer definição de "moeda" ou "divisas" senão aqueles firmados nos rígidos (ou ao mais sólidos) padrões de legalidade, sendo apenas apta para fins penais aquele conceito positivo, para o qual moeda é a junção das três características essenciais: o curso legal, o curso forçado e o poder liberatório da moeda, não sendo legítima qualquer vinculação aberta, social ou exegética em sentido diverso, sob ameaça de ferir a legalidade exigida para a própria definição análitica do conceito de fato punível.


[1] IN 1037 – Aqui entendidos como países de sistema tributários simplificados. Países ou dependências que não tributam a renda ou que a tributam à alíquota inferior a 20% ou, ainda, cuja legislação interna não permita acesso a informações relativas à composição societária de pessoas jurídicas ou à sua titularidade.

[2] Art. 21, VII, CF88

[3] CASTELLO, Melissa Guimarães. Bitcoin é moeda? Classificação das criptomoedas para o Direito Tributário.

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