Opinião

Interdependência das instâncias e a reforma da LIA: fui absolvido. E agora?

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19 de fevereiro de 2023, 7h04

Todo e qualquer sistema punitivo, seja ele estatal ou não, precisa ter um compromisso inabalável com a coerência e a proporcionalidade. Fundamental para sua própria sobrevivência e aceitação. Deve ser coerente para evitar o sentimento de injustiça, a insegurança jurídica e a falta de previsibilidade da resposta estatal diante da prática do ilícito. Deve ser proporcional, a fim de que as sanções assegurem um apropriado equilíbrio no cotejo com a gravidade das condutas realizadas.

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No Brasil, ainda é muito presente o sentimento popular de que, quanto maior a sanção, e, quanto mais vezes o demandado for punido, menor o risco de repetição de um ilícito, e mais eficazmente a punição terá cumprido o seu propósito. Há, com raras exceções, um caótico, desorganizado e, por vezes, apaixonado sistema punitivo desacompanhado de um maior rigor científico acerca da eficiência dos métodos adotados. A lógica de que "quanto mais sanções tivermos pelo mesmo fato é melhor para a sociedade" não encontra respaldo científico e a sua obediência cega pode originar problemas insolúveis. Um deles é a impossibilidade de se chegar a uma sanção justa em um caso concreto. Demais disso, o exagero na dose da punição pode verdadeiramente desafiar sua função preventiva e criar um ambiente do tipo tudo ou nada em que vale a pena arriscar na prática do ilícito e não ser punido.

Somado a este contexto, a nossa legislação é débil em relação ao tema da "comunicabilidade de instâncias" e quanto ao tópico dos efeitos vinculantes da absolvição em uma das esferas.[1] O que temos de tradicionais protagonistas nessa matéria são o artigo 935 do Código Civil (que torna vinculantes os efeitos da absolvição criminal unicamente nas hipóteses da inexistência da autoria e da materialidade) e a Súmula 18 do STF (que permite a punição pela falta residual diante de uma absolvição criminal). Muito pouco há além desses dois exemplos para a construção de um autêntico sistema punitivo estatal que crie um sofisticado ambiente de verdadeira interdependência e comunicabilidade entre as instâncias.

Quanto ao tópico, a Lei nº 14.230/21 promoveu, na nossa perspectiva, um grande avanço em relação ao reforço da interdependência e vinculação entre as instâncias punitivas. Primeiramente, por meio da regra do §3º do artigo 21, que estabelece a vinculação de efeitos na improbidade administrativa como consequência da absolvição do réu na esfera civil (e não mais apenas na criminal) diante da inexistência da conduta ou da negativa da autoria. Tendo o magistrado cível concluído que o fato não ocorreu, ou que o réu não foi quem o praticou, tal circunstância passa, agora, a impossibilitar a condenação por improbidade pelo mesmo fato.

A reforma da lei de improbidade também inaugurou um considerável avanço, quando estipulou, no §2º do seu artigo 21, que "as provas produzidas perante os órgãos de controle e as correspondentes decisões deverão ser consideradas na formação da convicção do juiz". Tal previsão não obriga o magistrado a chegar às mesmas conclusões que os demais órgãos de controle tiveram (até porque são órgãos submetidos ao controle jurisdicional, e não o inverso), mas estimula o conhecimento pelo magistrado do que já foi produzido de prova. E, havendo divergência quanto às conclusões, ela deverá ser motivada pela autoridade judicial. Essa modificação normativa contribui, sobremaneira, para que não haja contradições inexplicáveis entre as instâncias punitivas.

Outra grande evolução proporcionada pela reforma da lei de improbidade adveio do seu artigo 21, §4º.[2] Ele estabelece que a ação de improbidade não mais poderá prosseguir se o réu for absolvido criminalmente, com a confirmação da absolvição por decisão colegiada. Exige-se que os fatos apurados na ação penal sejam os mesmos que os revelados no âmbito da ação de improbidade, e a vinculação impeditiva da tramitação da improbidade ocorrerá por qualquer fundamento contido no artigo 386 do Código de Processo Penal (CPP).

É bem verdade que algumas das hipóteses estampadas nos incisos do artigo 386 do CPP não deveriam originar o efeito legalmente previsto. A título de ilustração, a absolvição criminal pelo fato de a conduta não caracterizar infração penal (artigo 386, III, do CPP) não deveria ser impeditivo automático do prosseguimento da ação de improbidade. É possível que um dado fato não seja crime, mas que ele configure improbidade administrativa. A própria lógica da famosa súmula 18 do STF[3] resultaria, ainda que por analogia, nessa mesma conclusão. Por essa razão, é forçoso concluir que o artigo 21, §4º da Lei nº 8.429/92 ampliou, excessiva e desproporcionalmente, as hipóteses de vinculação da absolvição no âmbito da improbidade. A intenção do legislador foi muito boa, mas, a nosso sentir, equivocou-se na calibragem da largueza da citada norma.

Por outro lado, essa conclusão não deveria tornar o referido dispositivo legal introduzido pela reforma da Lei nº 14.230/21 totalmente inconstitucional, sob o fundamento de que ele representa um retrocesso no enfrentamento à corrupção. Uma interpretação conforme à Constituição pode salvar parte importante do artigo 21, §4º, da Lei nº 8.429/92 e colocar o direito administrativo sancionador brasileiro em outro patamar.

Nesse diapasão, não é razoável que um réu seja absolvido em uma ação penal por duas instâncias, e em uma delas de forma colegiada, sob o fundamento da ausência de provas do fato (artigo 386, II, do CPP) ou de que o réu concorreu para a infração penal (artigo 386, V, do CPP) e que isso seja desconsiderado pelo Estado no exercício do seu ius puniendi.

Depois de todas as despesas que teve e do tempo de vida consumido na sua defesa penal, o réu, agora absolvido por ausência de provas do fato ou de que o praticou, teria de recomeçar tudo de novo na esfera da improbidade. Teria de novamente demonstrar que não há provas ou que ele não concorreu para a prática do mesmo fato já exaustivamente apurado na ação penal. E o mais angustiante decorre da circunstância de que, via de regra, a instrução dos dois feitos é requerida e acompanhada pela mesma instituição: o Ministério Público.[4] Se o Ministério Público não juntou provas da prática de um fato pelo réu no âmbito da ação penal, porque ele terá o direito de tentar provar o mesmo em uma ação de improbidade?

Nada justifica tal redundância e o incremento (pretendido pelo artigo 21, §4º) do efeito vinculante da absolvição como consequência do fortalecimento da comunicabilidade de instâncias não ocasiona um enfraquecimento no combate à corrupção. Ao revés, por tornar o sistema punitivo mais coerente e proporcional, citado preceito contribui para a existência de um mais justo e eficaz direito administrativo sancionador.

Sobreposição excessiva de instâncias não significa certeza punitiva e muito menos uma eficiente função dissuasória. Em lugar da enorme variedade de instâncias, e da ineficiente disputa das corporações pelo papel de quem tem mais força para punir, ressoa mais interessante o enaltecimento de um ambiente de colaboração investigava e punitiva entre as variadas esferas sancionatórias. E essa mudança de paradigma que o artigo 21, §4º, da Lei 8.429 incentiva, contribui para reforçar uma maior uniformidade decisória, para fortalecer a segurança jurídica e a previsibilidade, e, sobretudo, para fazer crescer o sentimento de maior justiça e eficácia do nosso sistema punitivo. Ajustes hermenêuticos ao texto do referido dispositivo legal com amparo em uma interpretação conforme à Constituição poderiam revelar-se suficientes para eliminar as dificuldades oriundas do seu excessivamente largo alcance.


[1] Escrevemos sobre o tema da interdependência das instâncias no artigo “O princípio da interdependência das instâncias punitivas e seus reflexos no Direito Administrativo Sancionador” publicado na Revista Jurídica da Presidência. Disponível aqui. Acesso em: 17/02/2023.

[2] Atualmente o art. 21, §4º, da Lei nº 8429 está suspenso por decisão monocrática na ADI 7.236.

[3] Sendo possível a punição administrativa da falta residual, também deveria ser viável a punição por improbidade na forma residual. Súmula 18. Pela falta residual, não compreendida na absolvição pelo juízo criminal, é admissível a punição administrativa do servidor público.

[4] Por mais que nas ADIs 7.042 e 7.043 o STF tenha restabelecido a legitimidade ativa da pessoa jurídica interessada na ação de improbidade, o MP é efetivamente o órgão que mais distribui ação de improbidade administrativa.

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