Público & Pragmático

O PL 2.481/2022 e as novas regras de processo administrativo

Autores

  • Sílvia Helena Johonsom di Salvo

    é advogada em São Paulo doutora e mestre em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo especialista em business data analytics pela Universidade de Cambridge e especialista em mediação pela Universidade Harvard.

  • Bianca Soares Silva Correia

    é mestranda em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e advogada com atuação na mesma área.

18 de dezembro de 2022, 8h00

No começo deste ano, o ato conjunto dos presidentes do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal nº 01/2022 instituiu uma comissão de juristas que ficou responsável pela elaboração de anteprojetos de proposições legislativas que dinamizassem, unificassem e modernizassem o processo administrativo e tributário nacional.

Em setembro, os trabalhos desenvolvidos por essa comissão de juristas foram consolidados em um relatório final, que continha diversos diagnósticos sobre o tema, informes técnicos e, claro, os referidos anteprojetos. Dentre esses, estava aquele proposto pela Subcomissão de Processo Administrativo [1], para promover a reforma da Lei Federal nº 9.784/1999 ("Lei de Processo Administrativo Federal").

O referido anteprojeto deu origem ao Projeto de Lei nº 2.481/2022, que pretende nacionalizar a sua aplicação e desburocratizar a relação estabelecida entre a administração pública e os administrados. Suas proposições também procuram estimular os consensos, a imparcialidade e a desjudicialização, em linha com algumas disposições mais modernas de outros diplomas legais.

O Projeto de Lei nº 2.481/2022 pretende inicialmente ampliar a aplicação da Lei de Processo Administrativo — que, hoje, é restrita ao plano federal —, para garantir a uniformização e previsibilidade desses processos [2].

A medida é coerente, porque, em face da constante ampliação das competências administrativas discricionárias, o fenômeno da processualidade administrativa tem ganhado centralidade nos debates sobre direito administrativo há algum tempo. Passou a ser considerado como o principal mecanismo de controle da atuação dos órgãos e entidades administrativos, já que garante tomada de decisões mais transparentes e racionais, o que veio a justificar a sua positivação no ordenamento jurídico nacional nos idos de 1998, com a Lei nº 10.177 do estado de São Paulo e depois, em 1999, com a Lei Federal nº 9.784.

De lá para cá, muita coisa mudou e, de fato, suas normas precisavam ser revistas para serem melhoradas naquilo em que falhavam e para que acompanhassem as recentes reformulações do direito administrativo. Por isso mesmo é importante que os demais entes federativos permaneçam com competência para legislar especificamente sobre o tema, naquilo que não conflite com as normas gerais editadas pelo Congresso Nacional.

Além da proposta de nacionalização, os aprimoramentos das normas federais atualmente existentes compreendem recomendações doutrinárias antigas e consolidam avanços em matéria de direito administrativo que foram recentemente positivados por outros diplomas legais. Destaques das proposições do Projeto de Lei nº 2.481/2022 são:

1. Consequências para a não observância dos prazos para tomada de decisão: Com o intuito de garantir a duração razoável dos processos, o Projeto de Lei nº 2.481/2022 não só define prazos máximos para a instrução processual, para a tomada de decisão e para a conclusão do processo, como também prevê consequências para o descumprimento desses prazos. Nesse sentido, o projeto prevê hipóteses em que o silêncio da administração significará indeferimento do pedido (efeito negativo), aceitação tácita (efeito positivo) ou de que o silêncio da administração envie automaticamente o caso para a autoridade superior decidir (efeito translativo). Em caso de omissão reiterada, autoriza qualquer interessado a requerer que a autoridade superior apresente um plano de ação de 60 dias para destravar o processo de decisão, no qual devem constar as medidas concretas a serem adotadas, o prazo esperado para a cessação da omissão reiterada e o(s) agente(s) público(s) responsável(is) pela supervisão do seu cumprimento.

2. Processo administrativo eletrônico e negócio jurídico processual administrativo: Com o intuito de facilitar o acesso aos autos do processo administrativo, o Projeto de Lei nº 2.481/2022 volta a atenção para a implementação do processo administrativo eletrônico, admitindo, inclusive, a utilização de inteligência artificial pela administração pública, desde que de forma transparente, previsível, auditável, previamente informada e que seus dados e resultados possam ser revisados. Além disso, em linha com as diretrizes já adotadas pela Lei Federal nº 13.105/2016 ("Código de Processo Civil"), o Projeto de Lei nº 2.481/2022 conta com proposição que permite que as partes dos processos administrativos possam estabelecer as regras procedimentais que sejam mais adequadas para a relação processual em questão, a exemplo da estipulação de prazos específicos ou da obrigatoriedade de realização de audiências públicas.

3. Observância de precedentes e da "coisa julgada administrativa": Também há previsão para que, sempre que possível, sejam considerados os precedentes judiciais já existentes — especialmente daqueles em que já houver se formado coisa julgada ou que tenham sido proferidos por Tribunais Superiores — e os processos administrativos sobre temas semelhantes que ela mesma tenha decidido, com incentivo, inclusive, à criação de enunciados administrativos vinculantes. A ideia é ampliar os efeitos das decisões proferidas em âmbito administrativo e evitar, com isso, a judicialização de inúmeras demandas. A "coisa julgada administrativa" também foi abordada e pretende impedir que, em uma mesma instância, a administração venha a rediscutir matéria, cujo mérito já tenha sido apreciado em relação às mesmas partes e fatos, o que contribui para que a alternância de poder não interfira no deslinde dos casos.

4. Realização de AIR e de ARR para decidir sobre atos normativos de interesse geral: Diante da eventual necessidade de apreciação de aspectos técnicos em um processo administrativo, o Projeto de Lei nº 2.481/2022 torna obrigatória a realização de Análise de Impacto Regulatório (AIR) previamente à edição, alteração e revogação de atos normativos de interesse geral e prevê a possibilidade de elaboração de uma Avaliação de Resultado Regulatório (ARR) para verificar o impacto de atos normativos em vigor, considerados os objetivos pretendidos e os efeitos concretamente observados em decorrência de sua implementação.

5. Nulidades: O Projeto de Lei nº 2.481/2022 também propõe uma aproximação com as normas do Decreto-Lei nº 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro ou LINDB) e com as normas da Lei Federal nº 14.133/2021 (Nova Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos) para avaliar, na prática, a necessidade de anulação de determinado ato administrativo. Em benefício da segurança jurídica e da confiança legítima dos administrados, seria preciso avaliar os efeitos práticos da eventual nulidade de um ato administrativo, a possibilidade de convalidação desse ato ou, ainda, a possibilidade de modulação dos efeitos de sua nulidade ou de sua revogação. O prazo para anulação de atos administrativos praticados com má-fé foi aumentado de cinco para dez anos e foi assegurada a prerrogativa administrativa de suspender cautelarmente a execução de ato administrativo cuja anulação está em curso.

6. Direito Sancionador e regra prescricional geral: O Projeto de Lei nº 2.481/2022 também reconhece a relevância de mecanismos e procedimentos de integridade para a dosimetria da sanção e preserva garantias oferecidas aos réus de ações penais, a exemplo da devida cadeia de custódia das provas. À semelhança do que ocorreu com a reforma da Lei de Improbidade Administrativa promovida pela Lei Federal nº 14.230/2021, amplia a comunicabilidade das instâncias, de maneira que as sentenças civis possam produzir efeitos no âmbito do processo administrativo. Segundo o Projeto de Lei nº 2.481/2022, as autoridades devem evitar impor mais de uma sanção de igual natureza em razão do mesmo fato e, para tanto, autoriza o compartilhamento de provas, a suspensão de um dos processos sancionadores, de uma das sanções ou atuação de forma coordenada. Por fim, o anteprojeto apresenta uma regra prescricional geral para o procedimento administrativo sancionador, que consiste no prazo prescricional de cinco anos, contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado, com a possibilidade de prescrição intercorrente na hipótese em que o processo administrativo sancionador fique paralisado sem justa causa por período superior a dois anos.

Sem a pretensão de cravar resultados — algo bem em voga nesses tempos futebolísticos —, diante do conjunto de proposições trazido pelo Projeto de Lei nº 2.481/2022, é possível fazer algumas análises sobre quais serão os novos rumos do processo administrativo brasileiro.

Em primeiro lugar, é bem-vinda a ampliação da abrangência da Lei Federal nº 9.784/1999 a partir do estabelecimento de normas gerais de processo administrativo que podem vir a ser complementadas pelos demais entes administrativos. Isso certamente implicará a revisão de muitas legislações estaduais e municipais atualmente vigentes, já que, atualmente, esses entes dispõem de um espaço legislativo mais amplo, ainda que comumente reproduzam os exatos termos da Lei Federal de Processo Administrativo. Contudo, essa estrutura tende a favorecer a racionalidade das normas processuais por facilitar o seu conhecimento e a sua correta interpretação. Além disso, pode preservar um núcleo de garantias básicas dos administrados na lei de abrangência nacional, sem que se deixe de resguardar um espaço de adaptabilidade das normas processuais às particularidades regionais e locais dos estados e municípios. Em outras palavras, a atividade legislativa dos estados e municípios e, consequentemente, a atividade administrativa desses entes ficariam condicionadas à observância das garantias processuais dos administrados que venham a ser resguardadas pela lei de abrangência nacional.

Outro aspecto que chancela o amadurecimento da técnica processual-administrativa é a estipulação de consequências jurídicas para os constantes descumprimentos dos prazos processuais pela administração pública que, impunes, prejudicam significativamente a duração razoável dos processos. Não por outra razão, os administrativistas recomendam há bastante tempo a estipulação dessas consequências, que, finalmente, podem passar a fazer parte do ordenamento jurídico e contribuir para a observância de uma garantia processual elementar dos administrados.

Também as proposições que pretendem acompanhar a tendência da administração pública consensual e participativa são mais um sinal da incorporação definitiva do consensualismo na atividade administrativa. Nesse sentido, o negócio jurídico processual administrativo, que permite que as partes adequem as regras processuais às necessidades concretas de cada caso, sem engessá-las numa estrutura prévia, que pode ser tão desnecessária, quanto inadequada, para a busca por uma solução para um universo tão complexo de demandas que são submetidas à administração pública diariamente.

Da mesma forma, a realização de AIR e ARR [3] para decidir sobre atos normativos de interesse geral, por sua vez, reforça o amparo técnico das decisões administrativas, legitima a tomada de decisão da administração pública, encerra uma postura de antagonismo entre regulador e regulado e, ainda, mantém uma estrutura regulatória racional, que tenha o tamanho exato para regular o exercício de determinada atividade, sem agigantamentos desnecessários e custosos.

Outras medidas procuram oferecer segurança jurídica na aplicação das regras processuais de direito administrativo, como a atualização do regime de nulidades para observar as consequências práticas da decisão, da observância de precedentes judiciais e administrativos — na linha do que já preconiza a LINDB — e da estipulação de uma regra prescricional geral.

Mesmo que alguns temas abordados no Projeto de Lei nº 2.481/2022 não avancem, pode-se esperar que as proposições abraçarão os avanços promovidos para as tomadas de decisão da administração pública e para a relação estabelecida com os administrados. Aqui, mais um sinal de maturidade: trata-se de esforço de aprimoramento das normas processuais existentes – em vez da mera substituição ou do abandono da Lei Federal nº 9.784/1999.

 


[1] A Subcomissão de Processo Administrativo, órgão fracionário da Comissão de Juristas presidida pela ministra Regina Helena Costa, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), foi coordenada pelo seu relator, o juiz federal e professor dr. Valter Shuenquener de Araujo e teve como integrantes os professores doutores Gustavo Binenbojm, Patrícia Ferreira Baptista, Flávio Amaral Garcia, Alexandre Aroeira Salles, Maurício Zockun e Andre Jacques Luciano Uchoa Costa.

[2] A proposta encontra fundamento no art. 24, inciso XXIV da Constituição Federal de 1988, que estabelece competência legislativa concorrente da União para legislar sobre normas gerais de matéria processual.

[3] Análise de Impacto Regulatório (AIR) e Avaliação de Resultado Regulatório (ARR).

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