Interesse Público

Silêncio administrativo individual e coletivo no PLS 2.490/2022

Autor

  • Paulo Modesto

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público membro do Ministério Público da Bahia da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Observatório da Jurisdição Constitucional da Bahia.

20 de outubro de 2022, 8h35

A Administração Pública não é o espaço encantado dos interesses públicos. É centro de poder, aglutinador de interesses contraditórios, capaz de praticar abusos perante cidadãos e pessoas jurídicas por ações e omissões. 

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Atos e regulamentos administrativos ilegais podem ser suspensos ou anulados por recursos administrativos, ações judiciais ou decretos do Congresso (artigo 49, V, CF). O controle da omissão da Administração Pública apresenta solução mais complexa, pois exige muitas vezes a mobilização de recursos financeiros, capacidades institucionais especiais e eventuais medidas mitigadoras de riscos que os órgãos de controle não conseguem suprir.

Uma das principais técnicas de garantia do administrado em face da inatividade decisória formal da Administração Pública é o silêncio administrativo. Por esta técnica, de evidente natureza preventiva, violado o prazo assinado à Administração Pública para decidir os requerimentos formulados ou para praticar atos de ofício, a lei imputa diretamente efeitos jurídicos à omissão ilegítima, que substituem a decisão omitida. É dizer: silêncio administrativo é a omissão qualificada a que norma jurídica atribui efeitos substitutivos da decisão expressa da Administração Pública.

Não se trata de uma simples omissão, mas de omissão qualificada pelo incumprimento de um dever concreto de decidir e, por conseguinte, caracterizada objetivamente em norma como fato antijurídico e ensejador de precisos efeitos de direito. Onde há silêncio administrativo há inércia contra legem, violação do dever legal de emitir decisão expressa [1], porém também medida substitutiva atenuadora ou superadora do estado de indefinição decisória.

Segundo a doutrina convencional, os efeitos ou as medidas substitutivas previstas pela lei para suprir a omissão são de natureza jurídico-material: a lei pode estabelecer a ficção concessória ou a ficção denegatória do pleito apresentado pelo particular ou de decisão exigida em norma de competência, em face da superação de prazos estabelecidos para a emissão da decisão administrativa. A ficção concessória é denominada silêncio positivo; a denegatória, silêncio negativo.

Em artigo de 2016, sugeri a possibilidade de um terceiro tipo de medida substitutiva, de natureza  processual, que denominei de silêncio translativo.[2] No silêncio translativo não há ficção de deferimento ou de indeferimento da pretensão, ou resolução da questão de fundo por decisão material substitutiva. Vencido o prazo de decidir a lei deve prever o deslocamento, transitório e concreto, da competência decisória ou opinativa de um órgão para outro na organização administrativa, em princípio para a autoridade imediatamente superior à autoridade omissa. Trata-se de transferência eventual e automático da competência para o caso e não de simples transferência do exercício pontual da competência, por decorrer diretamente de previsão abstrata da lei (competência originária eventual) e não de deliberação voluntária do gestor (delegação ou avocação). No silêncio translativo não há supressão de instância, mas competência originária eventual substitutiva automática.

O agente substituto exerce competência legal própria, acionada apenas ante a omissão ilícita da autoridade competente primitiva. Essa perda de poder em concreto da autoridade primitiva, além de evidenciar a falta e acionar eventuais medidas de responsabilização funcional, constitui um incentivo ao cumprimento dos prazos previstos e ao mesmo tempo — embora sem resolver a questão de fundo — homenageia a segurança jurídica devida ao particular. A autoridade substitutiva pode ser autoridade hierarquicamente superior ou outra autoridade especializada prevista em lei.  O silêncio translativo deve ser previsto em temas que não se compatibilizam com ficções materiais e que exigem análise fática e contextual necessária e, eventualmente, a imposição de medidas mitigadoras administrativas expressas (exemplo: matéria ambiental, nuclear, sanitária ou urbanística de alto impacto, entre outras). Em matéria ambiental, por exemplo, é possível identificar no Art. 14 da Lei Complementar 140/2011, a previsão de silêncio translativo interfederativo, em caso de omissão do órgão competente originário de um ente da Federação.

O conceito que propus de silêncio translativo inspirou o eminente senador Antonio Anastasia a apresentar o Projeto de Lei 129/2017, como informa a exposição de motivos, que adotou o mesmo entendimento que sustentei em 2016 para prever hipótese geral de "transferência da competência para a decisão do processo" em face de inércia decisória da administração pública. O PLS 129/2017 foi aprovado no Senado e remetido em 09/10/2019 para a Câmara dos Deputados, tendo recebido nesta casa legislativa nova numeração (PL 5473/2019) e aguarda deliberação conclusiva pelas Comissões de Trabalho, de Administração e Serviço Público e Constituição e Justiça e de Cidadania (artigo 54 RICD).

Em novo artigo, publicado na ConJur em 27/1/2022, regressei ao tema com outras  considerações e a sugestão de um quarto tipo de efeito substitutivo, igualmente processual, para a inércia administrativa: o efeito ablativo, efeito processual radical da inatividade formal.[3] Pelo silêncio ablativo, ante a inertia deliberandi do administrador, a lei exclui a participação da autoridade omissa e de qualquer outro órgão da Administração Pública na decisão administrativa e substitui a intervenção faltosa por critério decisório geral e abstrato previamente estabelecido. Exemplifiquei com a previsão contida no artigo 9º, § 4º, da Lei nº 8.625/93, Lei Orgânica Nacional do Ministério Público.

Volto ao tema após a leitura do recente PLS 2.481/2022, apresentado em 16/9/2022 pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, o primeiro de 11 projetos de lei apresentados na Casa a partir dos textos elaborados por ilustre Comissão de Juristas, coordenada pela ministra do Superior Tribunal de Justiça Regina Helena Costa. O subgrupo de direito administrativo da Comissão de Juristas teve como relator o eminente professor e juiz Valter Shuenquener de Araújo [4]

O silêncio administrativo no PLS 2481/22
O PLS 2.481/22 renova o debate sobre o tema do silêncio administrativo com contribuições originais e incorpora, de forma quase literal, todo o conteúdo do PLS 129/2017, aprovado no Senado, com tramitação adiantada e dependente apenas de aprovação de Comissões da Câmara, renumerado como PL 5.473/2019. Decisão prudente, pois se o projeto de lei for aprovado primeiro, será simples suprimir, sem perda de organicidade, a parte referente ao silêncio translativo do PLS 2.481/22.

No relatório da Comissão de Juristas, base para o PLS 2.481/22, sobre o tema em análise, destaco as seguintes diretrizes enunciadas:

a)  "O caráter nacional da matéria procedimento em processo administrativo";
b
) "A fixação de prazos específicos para as etapas de instrução e decisão e para a conclusão do processo, com o objetivo de se concretizar, em todos os níveis, a duração razoável do processo";
c) "A estipulação de que ordinariamente o silêncio da Administração produz o efeito translativo e que apenas excepcionalmente produzirá o efeito negativo ou positivo";
d) "A necessidade de uma solução normativa para os casos de omissão reiterada, em que a Administração deve adotar um planejamento contendo ações destinadas a resolver o atraso sistêmico em um determinado órgão ou entidade".

A primeira diretriz inova: transforma as normas da Lei 9784/1999, originalmente dirigidas à União, em normas nacionais, diretamente aplicáveis a todas as unidades da Federação, com invocação do artigo 24, XI, da Constituição. Este artigo, como é notório, enuncia competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal para disciplinar "procedimentos em matéria processual". Portanto, com fundamento no artigo 24, XI, da CF, a Comissão sugere converter a Lei 9784 em "lei geral de procedimento em processo administrativo" e, com isso, nacionalizar igualmente as medidas de reação à inatividade formal da Administração como normas gerais nacionais. Essa mudança de orientação, mais complexa do que aparenta, pretendo abordar em artigo específico e por isso não a aprofundarei no presente texto.

A segunda diretriz é oportuna, pois atualmente a Lei 9.784/99 prevê apenas um prazo máximo de decisão, concluída a instrução, mas não um prazo para ultimar-se a própria instrução processual. Essa lacuna exige superação, como corretamente identificou a Comissão. Esta sugeriu um prazo explícito máximo para a instrução de 60 dias, admitindo-se a prorrogação por igual prazo, ressalvada norma especial expressa (artigo. 29, §3º). Por outro lado, o prazo máximo proposto pela Comissão para a decisão do processo administrativo geral permanece o mesmo: 30 dias, prorrogável por igual período (artigo 49). Logo, pelo projeto, a instrução deve ocorrer no máximo em 120 dias e a decisão final deve ser emitida em, no máximo, 60 dias, ressalvada lei especial em contrário.

A existência de um prazo global máximo pode acarretar problemas variados:

  1. se a instrução for prologada em excesso (e esse excesso, por si, não convoca as normas referentes ao silêncio translativo) pode o órgão de decisão ser desafiado a decidir sem prazo mínimo razoável para emissão de uma decisão fundamentada?
  2. esgotado os seis meses apenas com a instrução, resta a dúvida: deve ser considerada preclusa a competência para decidir da autoridade originária e imediatamente aplicada a norma que transfere a competência decisória para autoridade superior?
  3. neste caso, qual será o prazo para a autoridade superior decidir: o prazo global novo de seis meses ou apenas o prazo de decisão de 30 dias, prorrogável por mais trinta dias, ante a conclusão da instrução?  Pode a autoridade superior reabrir a instrução e desconsiderar atos praticados pela autoridade inferior primária para ampliar o seu prazo de decisão e instrução?
  4. se a Administração e o interessado, mediante "negócio jurídico processual administrativo" (artigo 25-A), acordarem "mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da situação concreta" podem fixar prazo global de decisão superior a seis meses para o processo?

Por fim, o prazo global parece incoerente com a previsão do artigo 49, §2º, b, pois o texto do projeto admite neste passo "a suspensão do curso do prazo para a conclusão do processo quando decisão administrativa depender de pronunciamento prévio e obrigatório de órgão ou de entidade legalmente competente". Essa suspensão foi prevista sem limite objetivo. Essa norma de suspensão encontra-se em direto conflito com o disposto no artigo 42, 1º, do projeto, que enuncia exatamente o oposto: "Se um parecer obrigatório e vinculante deixar de ser emitido no prazo fixado, o processo seguirá conforme o disposto nos parágrafos do artigo 49, responsabilizando-se quem der causa ao atraso". Esse conflito evidente deve ser resolvido no curso da análise do PL, com supressão do disposto no artigo 49, §2º, b.

A terceira diretriz é surpreendente, pois revela uma mudança paradigmática importante: o efeito substitutivo decorrente da inércia ilegítima passa a ser predominantemente processual e não material no silêncio administrativo, com abandono radical da doutrina tradicional brasileira.

No Relatório da Comissão de Juristas, colhe-se a afirmação:
"
O efeito do silêncio da Administração foi tema estudado e debatido pela Subcomissão de Processo Administrativo. Partindo-se da ideia de que o silêncio poderá produzir três efeitos (negativo, positivo e translativo), a opção normativa se deu pela predominância deste último. Nesse contexto, deixando a autoridade competente de decidir no prazo legalmente previsto, tal competência será, como regra, transferida à autoridade superior. O texto do anteprojeto também apresenta hipóteses em que o silêncio equivalerá a um indeferimento (efeito negativo), tal como na circunstância em que o requerimento implica responsabilidade patrimonial da Administração. A proposta destaca, ainda, que o efeito positivo do silêncio, equivalente a uma aceitação tácita, poderá ser reconhecido por meio de ato normativo ou de contrato administrativo".

Por óbvio, tendo refletido com pioneirismo sobre o próprio conceito de silêncio translativo, subscrevo a orientação da comissão e a louvo. Entendo que a técnica do silêncio negativo é insuficiente para o interessado, pois viola o direito a uma decisão expressa, fulmina o dever de motivação e prolonga o percurso processual sem a decisão de mérito. Por sua vez, o silêncio positivo é perigoso nas relações administrativas multilaterais, sendo inseguro para o beneficiário, porquanto traduz permissão apenas prima facie, sujeita a alteração posterior pela Administração, e insegura para os contrainteressados afetados pela decisão, dada a deficiente publicidade. Por isso, conceder prioridade ao silêncio translativo parece acertado na sociedade complexa dos nossos dias. O efeito translativo evita os prejuízos decorrentes da falta de iniciativa recursal do interessado em caso de indeferimento tácito, preserva o dever de motivação das decisões administrativas, permite a participação dos interessados e contrainteressados na dialética processual e cria incentivos para o cumprimento dos prazos vigentes e para a responsabilização dos omissos. Deve, entretanto, possuir limites e ensejar responsabilidades, porque a dever de emitir decisão expressa em tempo razoável permanece a exigência constitucional (Art. 5º, LXXVIII, da CF).

O PL inova igualmente ao abordar o tema da inércia reiterada, coletiva ou de massa, que atinge um número relevante de administrados.  O tema consta do artigo 49-I do Projeto, que confere a qualquer interessado a possibilidade de requerer à autoridade superior que, no prazo improrrogável de 60 dias, apresente plano de ação para viabilizar que os pedidos sejam decididos no prazo previsto no artigo 49. §1º. A medida também pode ser adotada ex officio pela autoridade superior e o plano deve receber ampla publicidade no portal do órgão ou entidade na internet durante o seu período de execução e deve indicar, no mínimo, as medidas concretas a serem adotadas, o prazo esperado para a cessação da omissão reiterada e os agentes públicos responsáveis pelo seu cumprimento.

As sugestões merecem a atenção do Congresso e da comunidade acadêmica. Podem ser aperfeiçoadas no curso do debate parlamentar, mas assentam com rigor bases modernas e pragmáticas para temas sensíveis da Administração Pública contemporânea. Oxalá receba os ajustes, o cuidado e a rápida deliberação que merece.

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[1] O dever de decisão expressa, embora decorra implicitamente do próprio direito fundamental de petição e certidão previsto na Constituição (Artigo 5º, XXXIV, "a" e "b", da CF), possui também consagração legal explícita, com destaque para o artigo 48 da Lei de Processo Administrativo da União (Lei 9784/1999). Na mesma lei, o Artigo 49 prescreve que “concluída a instrução de processo administrativo, a Administração tem o prazo de até trinta dias para decidir, salvo prorrogação por igual período expressamente motivada”. Logo, é de 60 dias o prazo para a decisão final de processos administrativos na União, após a conclusão da instrução, o que apenas não prevalece se houver procedimento especial previsto em lei com prazo distinto. Essa disposição tem sido reproduzida em leis estaduais de processo e, na ausência delas, recebido aplicação subsidiária da lei federal.

[2] MODESTO, Paulo. Silêncio Administrativo Positivo, Negativo e Translativo: a omissão estatal formal em tempos de crise. Revista Colunistas de Direito do Estado, 22/12/2016, nº 317, disponível em https://bit.ly/silencio-adm ou no livro Café com Prosa: crônicas de direito e reforma do estado. Rio de Janeiro: Ed. GZ, 2021, pp.230-241.

[3] MODESTO, Paulo. O silêncio administrativo como técnica de experimentação. ConJur – Interesse Público. Publicado em 27/01/2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jan-27/interesse-publico-silencio-administrativo-tecnica-experimentacao  ou em https://www.academia.edu/70211405

[4] A subcomissão administrativa foi integrada ainda pelos ilustres professores doutores Gustavo Binenbojm, Patrícia Ferreira Baptista, Flávio Amaral Garcia, Alexandre Aroeira Salles, Maurício Zockun e Andre Jacques Luciano Uchoa Costa.

Autores

  • é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

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