Embargos Culturais

Sérgio André Rocha e o libelo em favor da segurança jurídica tributária

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

19 de fevereiro de 2023, 8h00

O permanente tema da reforma tributária, a recente decisão do Supremo Tribunal Federal relativa à flexibilização da coisa julgada na hipótese de tributos de trato contínuo, a decisão também recente do Superior Tribunal de Justiça sobre cobrança de IPI na revenda de produtos importados, a discussão relativa ao voto de qualidade no Carf, a ordem do STF para que a União compense perdas do ICMS de um estado da Federação (Goiás), entre outros, são temas que anunciam e comprovam momento extremamente desafiador para quem gostamos de direito tributário.

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Nesse contexto há farto material bibliográfico para instrumentalizar o enfrentamento de algumas dessas questões. A prática exige base teórica consistente, sem a qual perde-se no achismo e na repetição de clichês. Entre autores da nova geração de tributaristas sobressai-se também Sérgio André Rocha, que tirou a livre-docência na USP e que leciona na UERJ. Para nossos tempos refiro-me especialmente ao livro Da Lei à Decisão, a Segurança Jurídica Possível na Pós-Modernidade. É a recomendação da semana.

O livro é dividido em duas partes. Na primeira parte Sérgio André apresenta-nos um libelo em favor da segurança jurídica, especialmente com foco nas instituições responsáveis pela aplicação do direito tributário. Muda o foco do problema. Afasta-se da obsessão com a lei. Preocupa-se com as agências que aplicam a lei. Nesse sentido, revela-nos as fragilidades de tipologias tradicionais na matéria, obcecada com a legalidade estrita, com a tipicidade cerrada e com a consequente deificação da lei no direito tributário brasileiro. Essa obsessão com a lei é de algum modo sintoma da forma napoleônica de se compreender a experiência normativa, aspecto que Sérgio André ressalva, inclusive diferenciando a hermenêutica do Pequeno Caporal com a metodologia do positivismo jurídico.

Acrescento ao argumento que o legado jurídico napoleônico transcende à codificação do direito privado. Há uma absoluta incorporação da compreensão organizacional de Jean-Jacques Rousseau, para quem a vontade geral que se revelava na lei referendava a imposição normativa sobre decisões e opções. Vontade geral e soberania se equivalem na teorização política de Rousseau. A indivisibilidade da soberania decorreria da indivisibilidade da própria vontade geral. Esta última, vontade geral, seria substancialmente distinta de uma vontade de todos. O formalismo jurídico, de algum modo, é subproduto dessa concepção de democracia. Não se confunde com o positivismo jurídico, como enfatiza o autor.

Ao mesmo tempo em que reconhece a qualidade de muitos tributaristas da velha guarda, Sérgio André apresenta conjunto de impugnações e senões. É o que se lê, por exemplo, na passagem em que problematiza concepções de Alberto Xavier (jurista português que viveu no Brasil, aqui falecendo em 2016, aos 74 anos). Sérgio André percebe em passagens de Alberto Xavier uma desconfiança para com a autoridade administrativa.

Sérgio André também argumenta contrariamente à posição de alguns autores que insistem em similitudes conceituais entre o direito tributário e o direito penal. Surpreende-se com a frágil equiparação entre o bem jurídico "liberdade" e o bem jurídico "patrimônio", que está no núcleo daqueles que aproximam o direito penal e o direito tributário. Ilustra com as normas penais em branco, que são recorrentes no direito penal, o que contrastaria com a legalidade e a tipicidade cerrada que marcariam o direito tributário, especialmente como lemos em Ricardo Mariz de Oliveira. Nesse ponto, Sérgio André conclui que "uma das características da teoria formalista brasileira é uma claríssima desconfiança dos órgãos de aplicação do direito, principalmente da autoridade administrativa, que é vista como alguém que tende a abusar de seu poder".

Esgotado o tema da lei (que é marcado pela obsessão com o formalismo), Sérgio André avança para o problema da decisão, estudando o processo tributário. É a segunda parte do livro. Parece-me a parte mais polêmica. Sérgio André coloca abertamente problemas que matizam e maculam o Carf. Defende uma justiça tributária especial e especializada, "que selecionasse, desde o concurso, julgadores com formação e conhecimentos tributários e contábeis sólidos, abrindo-se a concorrentes sem formação jurídica formal — ou seja, o julgador não teria que ser necessariamente formado em direito". Não pretende simplesmente o mais do mesmo.

Há recentemente uma profusão de dissertações acadêmicas sobre o Carf. Adriana Gomes Rego apresentou aqui em Brasília uma belíssima tese (melhor elogio para um trabalho de mestrado) por mim orientada. Acrescento os trabalhos de Luiz Eduardo de Oliveira Santos (orientado por Liziane Paixão) e de Margaret Nunes (orientada por Maurício Timm do Vale. Margaret preocupa-se com o Carf enquanto instânica especializada de verdadeiro acesso à justiça fiscal. O Carf é um tema central na compreensão de nossa justiça, assim no âmbito acadêmico como na lide diária.

Ao propor esse novo tribunal (que Sérgio André denomina de Novo Carf, como explica na nota de rodapé 83), parece-me, enfrenta os dois maiores problemas do tribunal administrativo com o qual hoje contamos. Há necessidade de uma justiça especializada, dada a complexidade dos assuntos. A seleção de especialistas atende a esse requisito. O Carf, no entanto, queiramos ou não, gostemos ou não, é um tribunal vinculado ao Ministério da Fazenda. Pode parecer natural que conselheiros que representam a Fazenda Pública possam carregar em suas decisões uma compreensão fazendária dos problemas. É o que a filosofia hermenêutica denominaria de instância de pré-compreensão. Não tenho dados empíricos para essa afirmação, não consigo exemplificar objetivamente. Registro apenas uma especulação, que a discussão em torno do voto de qualidade parece confirmar, pelo menos quanto ao problema colocado. Escrevi sobre isso aqui na ConJur ao longa da semana.

Sérgio André é um pensador do direito tributário. Lembra-me muito Ricardo Lobo Torres, sobre quem também já escrevi nessa coluna, a propósito do tema do mínimo existencial. Sérgio André tem opiniões firmes, com as quais concordo, a exemplo do postulado de que a tributação pode ser usada para combater desigualdades, mas sempre com o necessário cuidado, para que não se crie um outro problema.

Um novo tribunal para questões tributárias poderia resolver miríade de problemas, se pensado e operacionalizado com cautela e parcimônia, com a lentidão dos herbívoros e não com o assanhamento e a pressa dos carnívoros. Basta uma comparação entre o orçamento do Carf e de outros tribunais, à luz das questões que são julgadas no Carf, em comparação com questões tratadas em outros ambientes decisórios. O problema não está na lei. O problema pode estar nas agências decisórias. É essa a lição que extraí desse excelente livro, que é antecedido por prefácio de Marciano Seabra de Godoi, competente professor da PUC-MG.

Autores

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

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