Uma jurisprudência elegante para tempos mais civilizados
18 de fevereiro de 2023, 8h00
Nos anos que se seguiram à promulgação da Constituição de 1988, a jurisdição constitucional no Brasil teve papel marcante na estabilidade das relações, na garantia da segurança jurídica e na solução dos graves problemas de direito intertemporal que foram criados com o estabelecimento de sucessivos planos econômicos no Brasil (Plano Funaro, Plano Bresser, Plano Verão, Plano Collor I, Plano Collor II e Plano Real).
O grande objetivo das instituições políticas na década de 90 era a estabilização da moeda e o combate efetivo à hiperinflação, cabendo ao STF, em matéria estritamente técnica, fixar os parâmetros e regras que definiriam essa tarefa, fixariam as possibilidades e limites da política monetária, com o respeito aos direitos fundamentais.
Foi esse cenário que envolveu um dos grandes momentos da história do STF, marcado pela formação da jurisprudência em matéria de segurança jurídica, direito adquirido e aplicação do princípio da irretroatividade das leis no país (artigo 5º, XXXVI, da CF).
Por certo, a jurisprudência histórica da corte sempre se orientou para uma melhor compreensão do conteúdo e dos limites da cláusula do "direito adquirido", inclusive com o enfrentamento dos problemas advindos de sua dupla dimensão: legal e constitucional.
A redação original do artigo 6º da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657, de 4/9/1942), editada ainda na vigência da Constituição de 1937, admitia a possibilidade de lei nova retroagir para atingir situações já constituídas. Esse quadro, entretanto, mudou com a promulgação da Constituição de 1946 (especialmente a previsão pioneira contida no artigo 141, § 3º), o que forçou a nova redação do dispositivo legal a partir do Decreto-Lei nº 3.238, de 1/8/1957. A cláusula se tornava uma proteção constitucional, tal como uma garantia fundamental do cidadão, e essa tradição se manteve até a Constituição de 1988.
O direito adquirido, entretanto, não poderia servir como limitador caprichoso da ação do legislador na criação e conformação de regimes estatutários. Foi o STF, portanto, que estabeleceu a famosa jurisprudência de que, na dimensão constitucional da proteção, não há direito adquirido a regime jurídico. No âmbito legal, entretanto, essa proteção se dá apenas quando o indivíduo cumpre concretamente todos os requisitos fixados na lei do tempo para adquirir determinado direito.
Dessa forma, no plano constitucional, a garantia do direito adquirido é, em realidade, uma questão de direito intertemporal quanto ao sentido de aplicação da nova lei às situações jurídicas (RE nº 226.855/RS, relator ministro Moreira Alves). Resta no plano legal a garantia em concreto do indivíduo em relação à irretroatividade da nova lei.
A leitura constitucional do direito adquirido, entretanto, nunca significou uma forma de contornar o princípio da irretroatividade das leis. Ao contrário, estamos, em realidade, diante da mesma proteção ("direito adquirido" em matéria de direito público, "ato jurídico perfeito" em matéria de direito privado e "coisa julgada" em matéria jurisdicional).
De fato, o STF fixou, por meio da ADI nº 493, o sentido jurídico próprio desse princípio e a gravidade de sua sedes materiae na Constituição. Em voto antológico naquele julgamento, o ministro Moreira Alves atribuiu o peso devido ao instituto, afastando-o da natureza meramente doutrinária que acabou adquirindo na França ou na Itália a partir de obras como as de Paul Roubier ou de Carlo Francesco Gabba. No Brasil, a irretroatividade não é apenas uma conveniência jurídica, mas um limite efetivo ao legislador e uma garantia do cidadão.
Nesse julgado, o tribunal definiu três tipos de retroatividade da lei: a máxima ou restitutória (quando a lei nova desconstitui a coisa julgada ou fatos já consumados, tais como no caso do artigo 96, parágrafo único, da Constituição de 1937); a média (quando a lei nova atinge os efeitos pendentes de atos jurídicos passados); e a mínima ou mitigada (quando a lei nova atinge somente os efeitos futuros dos atos anteriores, como no caso do Decreto-Lei nº 22.626, de 7/4/1933).
Tal como fixado pelo tribunal, em virtude da cláusula constitucional, não se admitiria qualquer desses tipos de retroatividade no Brasil, sendo inconstitucional qualquer legislação que atingisse contratos celebrados no passado ou seus efeitos futuros (tal como se aplicou no RE nº 188.366 e no RE nº 205.999).
Se, no plano individual-concreto, o STF reconhecia a impossibilidade absoluta de se ter leis retroativas no Brasil, no plano estatutário-institucional não havia como o indivíduo se opor ao novo estatuto jurídico com base nessa garantia (veja, por exemplo, RE nº 47.931; RE nº 50.325; RE nº 51.606; RE nº 52.060; dentre outros da década de 60).
A questão é, acima de tudo, pragmática. Se fosse dada ao cidadão a possibilidade de se opor a qualquer nova lei com base em um "direito adquirido" estatutário, ter-se-ia, em realidade, a impossibilidade absoluta de ação do legislador, uma vez que qualquer nova lei significaria mudança de tratamento jurídico para um indivíduo.
Essa importante consequência já era defendida por adeptos da teoria do direito adquirido e da teoria do fato realizado, e por autores da estirpe de Carlos Maximiliano e Savigny. O Tribunal vinha a reafirmar esse entendimento regularmente: RE nº 105.137; RE nº 105.137; RE nº 105.322. Assim, "se a lei nova modificar o regime jurídico de determinado instituto de direito (como é o direito de propriedade, seja ela de coisa móvel ou imóvel, ou de marca), essa modificação se aplica de imediato" (RE nº 94.020).
A mesma jurisprudência foi articulada no julgamento da ADI nº 3.105, quando se analisou, por exemplo, a incidência da EC nº 41/2003 e a possibilidade de contribuição previdenciária sobre os proventos de aposentadoria e pensões de servidores públicos.
Desafio ainda maior, entretanto, apresentava-se no horizonte. A alteração do padrão monetário, por definição, é necessariamente uma mudança imediata das bases da economia, devendo valer para todos e para todas as situações e, embora se possa defender que tais alterações devam respeitar a irretroatividade máxima ou até média, certamente com ela é incompatível a irretroatividade mínima.
Isso quer dizer que para que planos econômicos sejam efetivados sua validade deverá incidir necessariamente sobre contratos em curso, atingindo seus efeitos futuros e parcelas a vencer. Sem essa sutileza na interpretação, admitir-se-ia a circulação paralela de mais de uma moeda e a vigência no país de mais de um regime monetário. Seria o direito "brigando" com a realidade e sacralizando as suas próprias premissas.
O STF, entretanto, assumindo a elegância da exceção, afirmou sua posição "no sentido de que as normas que alteram o padrão monetário e estabelecem os critérios para a conversão dos valores em face dessa alteração se aplicam de imediato, alcançando os contratos em curso de execução, uma vez que elas tratam de regime legal de moeda, não se aplicando, por incabíveis, as limitações do direito adquirido e do ato jurídico perfeito" (RE nº 114.982, relator ministro Moreira Alves, DJ 1/3/1991, na linha do que já se julgava no RE nº 105.137, RE nº 106.132, RE nº 116.063, RE nº 110.321).
A consolidação desse entendimento veio com o julgamento do RE nº 141.190, que examinou a controvérsia sobre a aplicação do fator de deflação aos contratos anteriores com valor de resgate prefixados: a Tablita. Assim o tribunal se posicionou:
"A plano Bresser representou alteração profunda nos rumos da economia e mudança do padrão monetário do país. (…) A tablita representou a consequência necessária do congelamento como instrumento para se manter a neutralidade distributiva do choque na economia. O decreto-lei, ao contrário, de desrespeitar, prestigiou o princípio da proteção do ato jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI, da CF) ao reequilibrar o contrato e devolver a igualdade entre as partes contratantes."
A exceção à regra geral da cláusula do "direito adquirido" e do "ato jurídico perfeito" foi a solução jurídica efetivamente elegante para um tempo mais civilizado, no qual a jurisdição se esforçava por "limpar" o ambiente de limitações e obstáculos desnecessários e impertinentes aos problemas enfrentados. O esforço de combate à hiperinflação também era assumido pelo STF e se esperava de sua jurisprudência empenho para fornecer a solução jurídica adequada, mantendo-se a consistência e solidez do sistema jurídico-constitucional.
Essa jurisprudência, que bem marcou a correta compreensão de institutos e garantias como o do "direito adquirido", "ato jurídico perfeito", "irretroatividade da lei" e "segurança jurídica", fornece um arsenal poderoso para se enfrentar (e resolver) questões jurídicas complexas ainda advindas da interpretação dos planos econômicos.
Observa-se, entretanto, hesitação entre os ministros do STJ e do STF no manejo desses conceitos e na aplicação dessa herança jurisprudencial valiosíssima. A ADPF nº 77, julgada em 16/5/2019, foi um bem-vindo lampejo a reavivar esse conjunto jurisprudencial e declarar a plena constitucionalidade do artigo 38 da Lei nº 8.880/94 (Plano Real). A mesma solução elegante formatada pelo STF no passado demonstrou, mais uma vez, a sua utilidade para a solução da questio juris e para o sistema constitucional. Não há motivo, portanto, para que o atual Tribunal, assumindo a sua própria jurisprudência, não resolva em definitivo processos emblemáticos, como a ADPF nº 165 (processo que trata da constitucionalidade dos planos econômicos e no âmbito do qual, em virtude dessa injustificada hesitação, as partes foram impelidas a negociar acordo posteriormente homologado) e o RE nº 1.141.156 (constitucionalidade dos planos econômicos aplicada ao caso dos depósitos judiciais), liberando finalmente o Judiciário e o país de um dos seus mais famosos esqueletos.
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