Opinião

Inquérito das fakes news: a necessidade da criação de um novo direito

Autor

  • Herick Feijó Mendes

    é advogado mestrando em Segurança Pública Cidadania e Direitos Humanos (UERR) especialista em Direito Público e ex-membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais (CFOAB).

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18 de fevereiro de 2023, 17h05

As discussões sobre a atuação do Poder Judiciário ganharam proeminência no contexto nacional, a partir do cenário de polarização política que desencadeou no que se denominou de Contempt of Court [1]. O Poderes da República foram constituídos pelos Pais Fundadores com a finalidade de proteger a democracia, estipulando a atuação de cada um deles, de forma que suas atuações pudessem harmonicamente seguir os preceitos constitucionais.

No âmbito criminal o Brasil adotou o sistema acusatório, distinguindo-se do sistema inquisitivo, já que este é peculiar aos procedimentos do século 12, período da Santa Inquisição e dos Tribunais Eclesiásticos. Nesse sistema, o juiz atua como parte, investiga, dirige toda a produção da prova, acusa e julga. O sistema acusatório, resumidamente, caracteriza-se pela separação das funções de acusar, julgar, defender.

Nesse contexto que chegamos aos debates relacionados à Portaria 64, de 14 de março de 2019, editada e publicada pelo Supremo Tribunal Federal, que, de ofício, instaurou inquérito para apuração de diversas condutas supostamente criminosas, fundamentando-se no artigo 43 e seguintes do seu Regimento Interno [2]. Aqui, deixemos claro, é de se consignar que todos os fatos supostamente ilegais devem rígida e exemplarmente se submeterem ao crivo das investigações pelos órgãos de persecução criminal e, posteriormente, após o devido processo legal, sofrerem as sanções legalmente previstas.

Não obstante, o processo criminal, atrelado às garantias e direitos fundamentais, é um instrumento de proteção do cidadão contra o Estado. Justo por isso que o sistema acusatório cria uma segregação de funções necessária ao desenvolvimento regular de toda a persecução criminal, ou seja, da instauração do inquérito até a decisão judicial transitada em julgado diversos atores públicos atuam em quadras distintas.

De toda a filtragem constitucional, em nenhuma hipótese interpretativa é concebível que qualquer órgão do Poder Judiciário, na sua função típica, possa instaurar inquérito criminal, eis que aos órgãos de segurança (Polícia), vinculados ao Poder Executivo, foram incumbidos de tal missão constitucional, estendida, pela teoria dos poderes implícitos, também ao titular da ação penal (Ministério Público).

Recordemo-nos, ademais, que a inspiração da positivação de direitos fundamentais resulta precipuamente da necessidade de proteção da esfera individual da pessoa humana contra ataques tradicionalmente praticados pelo Estado.

Observo que o Parlamento tem tentado equalizar essa situação por diversas frentes, sendo as principais a tentativa de instauração de CPI, propositura de lei visando alterar o CPP e investidas via pedidos de impeachment.

A instauração de CPIs, notadamente, esbarraria no artigo 2º da Lei Fundamental de 1988, já que seria um procedimento investigatório contra a atuação típica de um Poder contra o outro, além da existência de precedentes da Suprema Corte contra comissões parlamentares de inquérito que visam investigar a atuação do judiciário em sua função típica.

O impeachment é algo por demais complexo ao regime democrático, de modo que demandaria um esforço político que, ao fim e ao cabo, assim como a CPI, não resolveria o problema de proteção aos direitos fundamentais dos cidadãos.

A alteração do Código de Processo Penal, a exemplo do Projeto de Lei n° 3451, de 2020 [3], de autoria do Senador Alessandro Vieira, em nosso entender, não superaria a técnica de antinomia aparente entre normas, eis que a compreensão, até então ventilada, é de que o Regimento Interno do STF teria status de lei e, por essa razão, seria considerada lei especial frente ao Código de Processo Penal (norma geral).

Não se poderia cogitar, ainda, uma alteração do Regimento Interno do STF pelo Parlamento, considerando que a Constituição [4] atribuiu uma competência privativa a cada tribunal para elaborar seus regimentos internos.

Cabe, portanto, aos representantes eleitos catalisar os ajustes necessários à Lei Fundamental, até porque o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 572 para declarar a legalidade e a constitucionalidade do Inquérito (INQ) 4781.

Nesse ponto que o Parlamento detém a seu favor o efeito backlash. O STF, em votos proferidos pelo ministro Luiz Fux, já reconheceu a existência desse fenômeno, consignando ser dever da Suprema Corte levá-lo em consideração como uma forma de aumentar a legitimidade democrática de suas decisões. "O Supremo Tribunal Federal não pode renunciar à sua condição de instância contramajoritária de proteção dos direitos fundamentais e do regime democrático. No entanto, a própria legitimidade democrática da Constituição e da jurisdição constitucional depende, em alguma medida, de sua responsividade à opinião popular. POST e SIEGEL, debruçados sobre a experiência dos EUA  mas tecendo considerações aplicáveis à realidade brasileira , sugerem a adesão a um constitucionalismo democrático, em que a Corte Constitucional esteja atenta à divergência e à contestação que exsurgem do contexto social quanto às suas decisões". (TRECHO DO VOTO PROFERIDO PELO MINISTRO LUIZ FUX NA ADC 29, TRIBUNAL PLENO, JULGADO EM 16/02/2012. A PASSAGEM TRANSCRITA ENCONTRA-SE NA PÁGINA 27 DO RESPECTIVO ACÓRDÃO).

Portanto, uma forma de garantir a regularidade da instauração de inquéritos na República, de maneira uniforme, já que cabe à União legislar privativamente sobre direito e processo penal, é com a propositura de uma emenda à constituição, deixando-se expresso, como direito fundamental, a impossibilidade de instauração de inquéritos de ofício pelo Poder Judiciário, em qualquer grau de jurisdição.

A deflagração da PEC não estaria eivada por vício de iniciativa (forma), eis que a  Suprema Corte, em diversos precedentes, deixou sedimentando o entendimento de que "no plano federal, o poder constituinte derivado submete-se aos limites formais e materiais fixados no artigo 60 da Constituição da República, a ele não extensível a cláusula de reserva de iniciativa do Chefe do Poder Executivo, prevista de modo expresso no artigo 61, §1º, apenas para o poder legislativo complementar e ordinário  poderes constituídos".

A pretensa PEC também não estaria obstada pelo aspecto material, pois o artigo 60, §4º veda apenas a abolição de direitos fundamentais e não a sua criação ou incremento, como é o caso desta proposição. A exemplo disso tivemos recentemente a criação do direito fundamental à proteção dos dados pessoais, por meio da EC 115/2022.

Não podemos deixar de consignar a árdua missão da Suprema Corte e o trabalho que seus ministros veem prestando à nação brasileira, mas qualquer atuação dos Poderes da República, sobretudo do Poder Judiciário, precisa estar sedimentada na inabalável proteção dos direitos fundamentais, pois a característica da historicidade da positivação de direitos fundamentais resulta da necessidade de proteção da esfera individual da pessoa humana contra o Estado.


[1] Ataques ao Tribunal

[2] Artigo 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro ministro. §1º Nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente. §2º O Ministro incumbido do inquérito designará escrivão dentre os servidores do Tribunal.

[3] Determina que, na ocorrência de infrações penais na sede ou dependência do Supremo Tribunal Federal e de Tribunais superiores ou em prejuízo de seus membros, o Presidente do Tribunal requisitará a instauração de inquérito ao Ministério Público, sendo vedada sua abertura de ofício.

[4] Artigo 96. Compete privativamente:

I – aos tribunais:

a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;

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  • é advogado, mestrando em Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos (UERR), especialista em Direito Público, ex-membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais (CFOAB).

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