Interesse Público

Interdependência entre Direito, políticas públicas e ambiente institucional

Autor

  • Vanice Valle

    é professora da Universidade Federal de Goiás visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School pós-doutora em administração pela Ebape-FGV doutora em Direito pela Universidade Gama Filho procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

16 de fevereiro de 2023, 8h00

Nos últimos anos, o Direito tem sido assediado por aportes de outros áreas do conhecimento. O tema da economia comportamental, evidenciado quais são os reais mecanismos a presidir as escolhas individuais apresentou os mecanismos de indução (nudges) como alternativas estratégicas úteis na conformação do comportamento social, como o são as leis, no modelo originário de compreensão do sistema jurídico. Mais recentemente, a análise econômica do Direito debate as relações entre estas duas áreas, internalizando os mecanismos de influência recíproca incidentes no desenvolvimento de funções, notadamente a regulação de setores como a infraestrutura e outros. A ênfase na dimensão da igualdade como reconhecimento evoca a sociologia como conhecimento afim, que subsidiará a análise dos fenômeno de vocalização de novos grupamentos sociais, que reclamam do Direito sua consideração específica.

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Não menos relevante tem sido o debate em torno do encontro entre Direito e Políticas Públicas — que já foi enfrentado aqui nesta coluna algumas vezes [1]. A reflexão aprofundada da matéria tem se adensado com a proposição de uma abordagem Direito e Políticas Públicas, proposta pioneiramente por Maria Paula Dallari Bucci [2], inspiradora de um debate que vem ganhando organicidade na Rede Direito e Políticas Públicas [3], congregando professores e profissionais do Direito de todo o país.

Há poucas semanas, o professor Fabrício Motta, em seu texto Inquietações sobre ensino jurídico e políticas públicas, apontava com precisão cirúrgica, conhecimentos e habilidades que haveriam de ser incorporado à modelagem tradicional do estudo do direito, enfatizando conexões interdisciplinares, como as acima referidas, e ainda "construção de consensos, articulação, comparação e avaliação de alternativas, prototipagem de projetos e soluções e modelagem jurídica institucional". São considerações indispensáveis para a formação de uma nova geração de profissionais do Direito que contribuirão para a cunhagem, desenvolvimento e controle de uma ação estatal orientada à concretização dos compromissos valorativos da Constituição. Urge, todavia, ter em conta uma outra dimensão desse encontro entre Direito e Políticas Públicas, atinente à contemporaneidade – como se dá hoje essa intercessão? Quais os temas que hoje, esse encontro de saberes provoca à consideração?

O momento presente parece particularmente relevante à observação e aprendizado. Sem qualquer aproximação valorativa, é inegável que se tem por todo o país, alternância de poder  e portanto, de inclinações políticas em relação às estratégias disponíveis à ação estatal orientada pelos objetivos fundamentais da República. Já apontei, em texto anterior, a importância, a partir da Emenda Constitucional 109/2021, da avaliação das políticas públicas em curso, como elemento adicional de legitimação de uma eventual opção por descontinuidade destas mesmas estratégias  diz-se adicional, porque evidentemente tal opção tem ainda em seu favor outro componente de legitimação, associado à dimensão representativa do princípio democrático.

Existe, todavia, outro componente da intercessão entre Direito e Políticas Públicas que é de ser considerado, e este diz respeito ao ambiente institucional onde estas últimas são inseridas, a partir de uma definição que se tem como típica do Direito, em especial, do Direito Administrativo, a saber, a distribuição de competências.

O critério clássico de determinação da organização administrativa, como se sabe, é aquele da especialização funcional. O reconhecimento do caráter especializado de uma temática determina a criação de um centro de competências que se identificará como um órgão. Uma vez atribuída por pelo pertinente instrumento jurídico a competência, esta estrutura institucional se vê investida de poder e responsabilidade pelo desenvolvimento das atividades a ela relacionadas.

É num determinado ambiente, delimitado por competências, que se constroem as políticas públicas, identificando-se quais as estruturas administrativas que podem contribuir  com expertise, com conhecimento histórico, com recursos de toda ordem (financeiros, materiais, pessoal, etc)  para o desenvolvimento daquele programa de ação estatal. Há uma relação de condicionamento recíproco  porque essa é a estrutura, e esses são os recursos, o programa de ação é configurado de uma determinada maneira no estágio de formulação do conhecido ciclo de políticas públicas. Mas a importância do ambiente institucional em que a política pública é pensada não se esgota na formulação. São essas mesmas condições, ponderadas na formulação do programa de ação estatal, que se revelarão necessárias à viabilizar-se sua concretização como concebida. Finalmente, a curva de aprendizado associada à avaliação será enriquecida também pela preservação do ambiente institucional original  afinal, manter-se-ia naquele ecossistema todo o percurso intelectual de identificação do problema, cunhagem de estratégias de enfrentamento, execução e avaliação.

Não se está com isso sustentando um engessamento institucional como condição necessária ao bom desenvolvimento e execução de políticas públicas  mas advertindo em relação a um efeito deletério da orientação clássica de que o princípio de especialização funcional determina necessariamente o realinhamento de competências, e portanto, a multiplicação de estruturas administrativas em relação à qual já adverti igualmente em ensaio anterior.

O que se tem visto Brasil afora, é uma combinação da pressão social pelo reconhecimento de temas ou problemas públicos, com forças outras, típicas do ambiente da política  e o resultado é a fragmentação ainda maior das estruturas de governo, com a criação de novas órgãos, novos centros de competência, tudo visto como supostamente amparado pela técnica jurídica, por força da especificação de novas áreas de ação ou novos segmentos sociais merecedores de ação pública própria. Uma leitura mais apressada deste tipo de iniciativa gerará uma compreensão de que se tenha sempre e necessariamente um avanço  um olhar específico asseguraria em tese, sempre e sempre, um resultado mais qualificado. Essa leitura, todavia, parece desconsiderar os reflexos que essa mesma fragmentação possa ter, no desenvolvimento de políticas públicas, ainda que mais abrangentes, que já se tenha em curso.

Primeiro argumento de advertência quanto ao imperativo de revisitação dessa estratégia, está em que ela expressa mais uma vez a pouca aproximação entre Direito (Administrativo) e Políticas Públicas. Afinal, se é indispensável à compreensão das últimas, como nos advertia o professor Fabrício Motta, a abertura às conexões interdisciplinares, parece claro que a vetusta lógica da especialização funcional não pode ser aplicada ainda a partir de uma matriz que desconhece essas mesma relações. Uma hipervalorização da especialização funcional pode conduzir à visão de túnel e à perda de aprendizado potencial útil a outras áreas correlatas. Sempre se poderá dizer que o antídoto ao risco aqui indicado é a construção de relações de articulação entre essas mesmas estruturas de governo. É verdade, mas isso traz um custo adicional na velocidade da oferta de resposta institucional. Há um trade-off oculto (na melhor das hipóteses) quando se opta pela hiperespecialização funcional; esse trade-off é de ser considerado quando da decisão  e isso extrapola a resposta tradicional do Direito do critério da especialização funcional.

Segundo argumento a sugerir o repensar este mesmo critério de orientação da organização administrativa diz respeito ao risco potencial de paralisação, ou perda substancial de qualidade no campo das políticas públicas em andamento, a cada vez que se empreende à segmentação dos centros de competência. Isso porque, como indicado acima, o ambiente de formulação da política pública condiciona, evidentemente, seu desenho. Numa perspectiva puramente operacional, a política pública "x" tem a configuração "y" porque ela está confiada ao órgão "z"  que tem recursos próprios, ou que tem quadro de pessoal suficiente à sua execução, ou que tem um acervo de experiências em problemas públicos assemelhados, etc. Dificilmente essas questões operacionais são consideradas quando da decisão pela criação de novas estruturas  e isso pode concretamente sobrestar o andamento de uma determinada política pública, porque o órgão "k", recentemente criado, simplesmente não existe no orçamento público, ou não dispõe de programas de trabalho aptos a receber recursos que financiamento a política pública.

A decisão de governo que empreende à simples individualização de uma determinada pauta política (a expressão aqui se usa no seu sentido mais positivo e respeitoso, como é de se dar no ambiente democrático), conferindo-lhe a atenção reconhecida a um órgão próprio pode representar, por vezes, um passo regressivo no tratamento daquele mesmo segmento social.

Em conclusão, é de se ter em conta que o ecossistema em que uma determinada política pública foi concebida e vem encontrando execução, não é um indiferente para o seu sucesso. Esse é mais um ponto de necessário realinhamento quando se pensa um conceito típico do Direito (competência) a partir de uma perspectiva que se reconhece deva ela estar delineada em favor da otimização do resultado da ação estatal  e portanto, das políticas públicas que estejam em curso.  

O projeto de conciliação entre Direito e Políticas Públicas se constitui empreitada ambiciosa, e não se resolverá pela simples captura pelo Direito da expressão  sem o reconhecimento dos pontos de tensão entre as duas áreas de conhecimento, e a construção de mecanismos próprios à harmonização necessária. Some-se a isso a necessidade de pensar os caminhos de aproximação a partir da perspectiva de futuro, como se tem no debate quanto à reformulação do ensino jurídico; mas também do presente, eis que as arestas ainda existentes e a aguda juridicização da vida pública podem fazer pender a balança em favor do Direito ainda por tempo demais.

 


[2] BUCCI, Maria Paula Dallari. Método e aplicações da abordagem direito e políticas públicas (DPP). REI-Revista estudos institucionais, v. 5, nº 3, p. 791-832, 2019 e DE SOUZA, Matheus Silveira; BUCCI, Maria Paula Dallari. O estado da arte da abordagem direito e políticas públicas em âmbito internacional: primeiras aproximações. REI-Revista Estudos Institucionais, v. 5, n. 3, p. 833-855, 2019.

[3] Informações sobre as atividades da Rede Direito e Políticas Públicas podem ser encontradas em @rede_dpp.

Autores

  • é professora da Universidade Federal de Goiás, visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School, pós-doutora em Administração pela Ebape-FGV, doutora em Direito pela Universidade Gama Filho, procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

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