Opinião

Um esboço sobre a teoria remuneratória do serviço público

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15 de fevereiro de 2023, 7h07

O procurador Lucas Furtado Fabrício, há alguns dias, em resposta a pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, sobre a extensão da remuneração pelo trabalho extraordinário aos procuradores, provocou o TCU a analisar o tema. Segundo seu entendimento, "o pagamento do adicional por 'alegação de excesso de trabalho' ora questionado se dá em flagrante ofensa à isonomia  e em acentuado contraste com a remuneração de quase a totalidade do funcionalismo público".

Conforme escreveu, "todos sabemos que vários órgãos públicos estão abarrotados de demandas, nem por isso, os servidores fazem jus a adicionais. Ao contrário, são demandados cada vez mais para que o serviço público seja prestado de forma eficiente e tempestivamente. Por que membros do Ministério Público e Juízes são diferentes?".

O caos da política de recursos humanos parece ter se normalizado e, de tempos em tempos, as mesmas críticas eclodem. Há mais de 30 anos, o professor José Afonso da Silva [1] já criticava que "a má política de recursos humanos de todos os níveis de governo possibilitou enormes distorções no sistema remuneratório do serviço público, de tal sorte que alguns servidores, por diversos meios, legais até, ou mesmo na via judicial, obtiveram vencimentos muito acima da média do funcionalismo, enquanto a massa dos servidores públicos sempre esteve mal remunerada".

A remuneração pelo trabalho extraordinário, o acúmulo de trabalho, é vetusta. O § 2º do artigo 38 da Lei nº 8112/1990 já a previa, de forma tímida e elitista, para o servidor que substituir titular de cargo comissionado uma "retribuição pelo exercício do cargo ou função de direção ou chefia ou de cargo de Natureza Especial, nos casos dos afastamentos ou impedimentos legais do titular, superiores a trinta dias consecutivos, paga na proporção dos dias de efetiva substituição, que excederem o referido período".

O único questionamento a essa restrição foi feito na ADI nº 5519 pela Anfe [2], que ficará adstrito, se procedente, aos Advogados Públicos Federais. A PGR, que poderia reivindicar o direito a todos servidores, emitiu parecer negativo naquela ocasião. 

Todavia, em tempos que as reações contra o establishment levou a democracia ao limite, essa provocação ao TCU desperta questionamentos mais profundos sobre quem sai na frente e por que fazem jus e outros não.  

O sistema remuneratório da Constituição precisa de um mínimo de teorização. Não precisa ser profeta para prever, a partir desses movimentos, cenas de greves nacionais, disputas entre categorias e reivindicação por melhores salários, manchetes de jornais escandalizados com contracheques de seis dígitos. Dèjá-vu. Dessa vez, o difícil é prever onde esse movimento vai parar, quando a polarização parece distanciar os brasileiros de qualquer consenso sobre assuntos da vida pública. Mais uma vez, José Afonso da Silva redigiu que "em consequência dessas distorções, os governantes, em vez de implementar uma política de pessoal condizente com o interesse público, passaram a buscar mecanismos para tolher esses abusos de uns poucos. Com isso se vão enxertando na Constituição minúcias regulatórias despropositadas, e nem sempre eficazes enquanto perdurar essa desastrosa política de recursos humanos no serviço público".

A Constituição já traz, independente de lei, um mínimo de racionalidade sobre o sistema. Ela se vale do termo "espécies remuneratórias", no inciso XIII do seu artigo 37, como gênero que compreende quaisquer estipêndios, como o subsídio, o vencimento (singular), os vencimentos (plural) e a remuneração, pago aos servidores públicos.

A utilização de palavras parecidas, a exemplo de "vencimento" (no singular) e "vencimentos" (no plural), para designar conceitos distintos, ou a utilização de conceitos de palavras distintas se referindo ao mesmo conceito, como "vencimentos" (no plural) e "remuneração", é uma das causas da má interpretação e aplicação do texto da Constituição.

O conceito de subsídio, que foi introduzido pela Emenda Constitucional 19, de 1998, na tentativa de simplificar e de racionalizar o sistema remuneratório, também não ajudou muito. Ao tentar definir, como "parcela única", a remuneração fixada em retribuição ao exercício do cargo por um membro de Poder, por detentor de mandato eletivo, por ministros de Estado e por secretários estaduais e municipais, a Constituição também vedou o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, conforme artigo 39, §4º, da Constituição Federal.

Parcela é parte de um todo. O subsídio é único no sentido de ser a parcela paga em valor fixo, com habitualidade, como contraprestação ao trabalho, que é fixada para atender necessidades com "moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social" (artigo 7º, IV, da CF), de acordo com a complexidade e peculiaridades do cargo e requisitos para sua investidura (artigo 39, §1º, da CF).

Existem outras parcelas em que se decompõe a remuneração do agente público. Com efeito, a Emenda Constitucional 47, de 2005, cerca de dois anos após a instituição de um teto autoaplicável pela Emenda Constitucional 41, de 2003, ressalvou do mesmo teto e, consequentemente do conceito de subsídio, "as parcelas de caráter indenizatórios previstas em lei".

"Indenizar é tornar indene, sem dano". A ministra Carmén Lúcia ainda defendeu, no julgamento do RE nº 606.358, que  "se não houve dano, não há que se falar em indenização, por óbvio. Aí é português. E, no entanto, sob o nome de verba indenizatória se paga o que não deve". Para essas parcelas, deveria incidir o princípio da realidade. Como a opinião pública vai reagir à diárias, que visam apenas cobrir transporte, alimentação e hospedagem, em valores superiores a um salário mínimo? Essas parcelas deveriam ser acompanhadas de uma prestação de contas e devolução dos valores do que não cobrir as necessidades de trabalhar em outro domicílio.

Além das parcelas indenizatórias (artigo 37, §11º, da CF), a Constituição reconhece a possibilidade de pagamento de parcelas que dizem respeito aos direitos sociais do servidor público (artigo 39, §3º, da CF), a exemplo da gratificação pelo acúmulo de ofícios ou jurisdição [3], e também parcelas de caráter privado, como prêmios de produtividade (artigo 39, §7º, da CF).

O regime do subsídio tornou-se, assim, mais amplo até que o regime de vencimentos, na medida em que este abrangia quaisquer vantagens previstas em lei, incluídas as indenizações legais, (artigo 41 e 49 da Lei 8.112, de 1990), ao passo que o subsídio passou a comportar parcelas indenizatórias, sociais e privadas.

As referidas normas constitucionais têm eficácia plena e aplicabilidade imediata. Mas, isso não significa que não possam ser objeto de regulamentação, até mesmo para lhes expandir eficácia, na teorização de Virgílio Afonso da Silva [4] sobre os direitos fundamentais. Podar excessos, com base no princípio da realidade, saber que o teto é teto e não piso [5], incorporar alguns auxílios, como alimentação, ao subsídio, como ocorre com o salário-mínimo, e tornar claro que a indenização é paga na extensão do dano, são um bom começo para a regulamentação que, esperançosamente, está por vir .

 


[1] SILVA, José Afonso da. Comentários contextuais à Constituição, p. 346.

[3] A retribuição pelo trabalho extraordinário, entre os integrantes das carreiras do funcionalismo federal, está prevista na Lei nº 13.024/14, na Lei nº 13.093/15, na Lei nº 13.094/15, na Lei nº 13.095/15, na Lei nº 13.096/15, no projeto de Lei nº 7.836/14, em favor, respectivamente, de todo Ministério Público da União, da magistratura federal e da Defensoria Pública da União (Resolução nº 103/2014 do CSDPU).

[4] SILVA, Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. Revista de Direito do Estado 4. 2006. pág. 45.

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