Tribuna da Defensoria

Ainda sobre a leitura do depoimento policial para fins de confirmação

Autor

  • Jaime Leônidas Miranda Alves

    é defensor Público do Estado de Rondônia. Ex-defensor público do Amapá mestrando em Direito pela Univali (Universidade do Vale do Itajaí) professor universitário. especialista em Direito Público pela PUC-MG (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) e em Direito Constitucional pela Ucam (Universidade Cândido Mendes).

14 de fevereiro de 2023, 8h00

Um tema que já deveria ter sido pacificado no âmbito do processo penal diz respeito à impossibilidade de leitura, por quem quer que seja, do depoimento policial para a testemunha com mera finalidade confirmatória.

Nesse caso, não é necessário sequer fazer o jogo de palavras, utilizando o termo "(im)possibilidade" porque isso sugestionaria a existência de uma dúvida acerca da lisura desse procedimento. Não há qualquer dúvida.

O processo penal, como Denis Sampaio menciona nas suas aulas [1], é um instrumento pelo qual o Ministério Público, titular da ação penal, atua unidirecionalmente com o objetivo de confirmar uma hipótese descrita na denúncia. Por outro lado, cabe à defesa a tarefa de infirmar a hipótese ou, tão importante quanto, demonstrar que existem outros caminhos fáticos possíveis, não havendo como se ter certeza sobre a dinâmica dos fatos.

Esse processo (necessariamente dialético) de confirmação/refutação de hipóteses tem seu clímax na audiência de instrução e julgamento. E não poderia ser diferente, haja vista que, conforme reclama o artigo 155, CPP, salvo enumeradas exceções, é necessário, para fins de proferimento de uma sentença condenatória, de prova judicializada.

E o momento para judicialização da prova é na audiência de instrução e julgamento.

Enfrentemos, então, o argumento aventado, explicando porque não é lícita a prática de leitura do Ministério Público do depoimento policiais para fins de confirmação.

O ponto de partida, como não poderia ser outro, é o Código de Processo Penal.

O artigo 204 do Código de Processo Penal estabelece: Artigo 204. O depoimento será prestado oralmente, não sendo permitido à testemunha trazê-lo por escrito.

O depoimento é, portanto, necessariamente oral e, para além disso, espontâneo. Daí porque o exame direto ter como principal característica as perguntas abertas: possibilitar que as testemunhas, de maneira oral e espontânea, tragam a sua versão dos fatos, sem amarras.

Após esse processo é que o juiz vai analisar se há prova suficiente para condenação ou não.

Pode-se alegar que o parágrafo único do mesmo dispositivo possibilita que a testemunha faça breve consulta a apontamentos. Isso, diferente do que pode ser alegado, não é um permissivo para a leitura do depoimento policial para fins de confirmação.

Ainda que a testemunha traga consigo apontamentos escritos para breves consultas, se optar por fazê-lo, ainda está-se preservando o caráter da espontaneidade do depoimento, que é totalmente solapado se o depoimento se limitar a confirmar aquilo que disse em outra oportunidade.

Além de ilegal, essa prática vulnerabiliza de sobremaneira o standard probatório, cujo cuidado deve ser o epicentro da atuação defensiva, como ensina a Defensora Pública Lara Teles Fernandes [2].

Quando o membro do Ministério Público lê o depoimento para que a testemunha apenas o confirme, não há como saber, de verdade, se esta, de fato, se recordou do objeto de questionamento, ou apenas está confirmando aquilo porque sabe que disse em outra oportunidade. E essa diferença é assaz importante no processo penal.

Se o artigo 155 do Código de Processo Penal veda a condenação exclusiva com base em elementos de informação, a leitura do depoimento para fins de confirmação, não é outra coisa que, desrespeitando a um só tempo a oralidade e a espontaneidade, uma tentativa de modificar a natureza jurídica do elemento, que, em tese, passaria de elemento de informação para prova, possibilitando, assim, uma condenação. Ilegal, diga-se de passagem [3].

Na defesa dessa prática (repisa-se, ilegal), pode-se sugestionar que o processo é público, de sorte que não haveria óbice à leitura de um dos seus elementos, como o depoimento prestado na fase policial.

Essa tese, apesar de tentadora, não pode ser acolhida.

Uma das principais regras procedimentais que regem a colheita da prova oral, a fim de garantir o seu controle de qualidade encontra-se prevista no artigo 212 do Código de Processo Penal.

Nesse dispositivo, há a vedação de quaisquer das partes perguntar às testemunhas:

1

Perguntas que possam induzir a resposta.

2

Perguntas que não tenham relação com a causa.

3

Perguntas que importem na repetição de outra já respondida.

Concentremo-nos a análise na primeira vedação. São vedadas perguntas que possam induzir a resposta. Sem ressalva, sem exceção. A fim de garantir a qualidade da prova, nenhuma espécie de pergunta que tenha o condão de induzir a resposta pode ser aceita.

E quando se tem isso em mente fica simples confirmar a tese levantada de início: nada tem maior capacidade de induzir a resposta do que ler algo que a testemunha disse em outra oportunidade para que ela apenas confirme. Isso às vezes é bem disfarçado. Às vezes não. Fato é que essa prática é viciada, e não por preciosismo, mas como garantia da qualidade da produção da prova oral.

E ao que parece, cabe cada vez mais à Defesa esse controle.

 


[1] SAMPAIO, Denis. Técnicas de inquirição de testemunhas. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DstGP5JNR_4. Acesse em 9 fev. 2023.

[2] FERNANDES, Lara Teles. Prova testemunhal no processo penal: uma proposta interdisciplinar de valoração. 2. Ed. Florianópolis: Emais Editora, 2020.

[3] TALON, Evinis. E se o MP lê o depoimento da testemunha e pergunta se ela o confirma?. Disponível em: https://evinistalon.com/mp-le-o-depoimento-da-testemunha-e-pergunta-se-ela-o-confirma/. Acesso em: 09 fev. 2023.

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