Opinião

Desatenção contribui para erros judiciários e altos índices de encarceramento

Autor

  • Marcelo Semer

    é desembargador do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo); autor de "Sentenciando Tráfico — O Papel dos Juízes no Grande Encarceramento" (Tirant lo Blanch) e "Os Paradoxos da Justiça: Judiciário e Política no Brasil" (ed. Contracorrente).

14 de fevereiro de 2023, 12h06

Sob o fundamento de que o erro judiciário mais comum, que contamina uma imensidão de prisões injustas, é a falha no reconhecimento pessoal, o Conselho Nacional de Justiça divulgou recentemente um substancioso relatório propondo condições mínimas para a sua execução.

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O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) produziu um anteprojeto de lei, com paradigmas para a validade da diligência (como a necessidade de que quatro pessoas sejam perfiladas ao lado de quem está para ser reconhecido) e um compêndio de pesquisas sobre as precárias condições em que o ato vem sendo aceito pelos juízes.

O grupo de trabalho, capitaneado pelo ministro Rogério Schietti Cruz, partiu dos acórdãos do Superior Tribunal de Justiça, que proporcionaram uma guinada na jurisprudência ao decidir que as recomendações da lei (o artigo 226, do Código de Processo Penal) deviam ser simplesmente cumpridas. Como a lei contém a expressão "se possível", as obrigações de solicitar à testemunha que descreva a pessoa a ser reconhecida e a de vê-la ao lado de outras vinham sendo solenemente ignoradas.

Embora não caiba ao CNJ fiscalizar ou corrigir questões jurisdicionais, verifica-se um esforço para a padronização de procedimentos cuja desatenção contribui para erros judiciários e a manutenção de altos índices de encarceramento. Não faz muito tempo, o órgão se empenhou em mutirões para julgamentos de pedidos de presos, firmou regras para controle de prisões provisórias e instalou audiências de custódia.

Mais recentemente, expediu resolução que condiciona a expedição de mandados de prisão à disponibilidade de vagas em regime semiaberto, para assim evitar o cumprimento de penas em regime mais grave — o que havia gerado a edição da súmula vinculante 56.

O relatório do CNJ põe o dedo na ferida de uma chaga do sistema penal. Os álbuns de suspeitos, com uma enorme predominância da população negra; o sugestionamento dos atos de reconhecimento, em que policiais fornecem antecipadamente fotos do suspeito; e reconhecimentos judiciais vitaminados pelo viés da confirmação.

O STJ, a seu turno, tem imposto uma nova jurisprudência em questões pungentes como a violação de domicílio, deslocando para a polícia a prova de sua legalidade (e, em razão disso, turbinando a utilização de câmeras corporais), ou a exigência de motivos mínimos para a realização de buscas pessoais.

O novo paradigma insta o juiz a exercer o seu papel de garantidor de direitos, não apenas sucumbir como um agente mantenedor da segurança. A crítica criminológica permitiu que se conhecesse as mazelas da aplicação da lei penal, vendida como um instrumento de proteção e liberdade, na lógica iluminista da razão e igualdade, mas que na prática se desenvolve com contundente seletividade.

Nada disso atua contra o fortalecimento dos mecanismos de segurança pública, em especial a recomposição da combalida investigação das polícias civis. Ao revés, a omissão dos juízes em apontar as insuficiências apenas desestimula a necessária atualização. O GT do Reconhecimento, aliás, é pródigo na proposição de protocolos modernos para a ação policial.

O governo e o Congresso tratarão de cobrir as lacunas que um evento como o 8 de janeiro costuma revelar, sobretudo em relação à adequação da Lei Antiterrorismo e os tipos penais da defesa do Estado democrático. Mas nada impede que também se aproveite uma situação inusitada, em que os mais rigorosos críticos dos direitos humanos e do garantismo são hoje os que mais forte reclamam pela contenção do poder punitivo e humanização do cárcere, ainda que por motivos particulares.

O acúmulo de lutas pela contenção de sistemas penais rígidos, seletivos e malcuidados justifica aproveitar essa janela de maior aceitação para se impor, por lei e por políticas públicas, um sistema mais humano a todos — o que implica também compromissos judiciários. A posição do Supremo Tribunal Federal, cujos membros devem ser renovados em cerca de um quarto no governo que entra, será um ponto essencial nessa trajetória.

*Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo

Autores

  • é juiz de Direito, escritor, mestre em Direito Penal e doutor em Criminologia, ambos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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